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A crise do Poder Judiciário.

Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos

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Agenda 23/10/2009 às 00:00

Somente uma análise da realidade organizacional do direito, através dos tribunais, contribuirá para o entendimento, ainda que breve, das dificuldades sofridas pelos países de modernidade tardia.

1.CONSIDERAÇOES INICIAIS

O presente trabalho tem a intenção de elaborar breves reflexões acerca da crise vivenciada pelo Poder Judiciário, que apresenta realidades distintas entre países centrais e semi-periféricos.

Com efeito, poucas são as obras (para não dizer raras) que se dedicam ao tema, optando os teóricos por realizar uma abordagem mais ampla, em geral, se referindo à crise do Estado.

Destarte, ainda assim, é comum perceber que a literatura dos países semi-periféricos trata a crise estatal vivenciada por esses países de modo semelhante ao que ocorre nas nações mais desenvolvidas, o que constitui grave equívoco.

Partindo desse contexto, a ideia é dividir a abordagem em três momentos, o que se entende fundamental para a compreensão do tema central – o Judiciário frente aos países centrais e semi-periféricos.

Na primeira parte do estudo, trabalhar-se-á a transição paradigmática estatal desde o Estado Liberal, da qual nasce a noção de Estado de Direito, até a crise do Estado-Providência, contexto que os países centrais acreditam estar vivenciando atualmente.

No segundo capítulo, por seu turno, será preciso se dedicar especificamente ao tratamento dispensado ao Poder Judiciário nos países centrais, desde o liberalismo, passando pelo modelo social e chegando ao momento de crise, o que, como asseverado acima, não costuma ser tema de debate na melhor doutrina.

Somente na terceira parte, então, será possível contrastar o que ocorre nos países desenvolvidos, com a realidade do Judiciário nos países semi-periféricos, entendidos nesse trabalho como aquelas nações em estágio de desenvolvimento, como o Brasil e maior parte dos países da América Latina.

É importante registrar que esse último momento proposto no estudo, além de apresentar, em breves linhas, o diferencial entre países semi-periféricos e centrais, assim como analisar o tratamento dispensado especificamente ao Judiciário, também se preocupará com a crise desse poder sob um enfoque direcionado – a magistratura.

Para tanto, se terá como fundamento teórico a obra do Professor Álvaro Filipe Oxley da Rocha [01], autor que, exclusivamente, escreveu acerca da crise do Judiciário nos países semi-periféricos sob o ponto de vista dos magistrados.

Acredita-se, com efeito, que para trabalhar com eficácia a crise jurisdicional, é necessário partir dos tribunais, manifestação latente do Poder Judiciário e que, por consequência, têm os juízes como personagens principais.

Somente uma análise da realidade organizacional do direito, através dos tribunais, contribuirá para o entendimento, ainda que breve, das dificuldades sofridas pelos países de modernidade tardia.

Desse modo, a intenção maior é, uma vez verificada a impossibilidade de nações periféricas serem tratadas de modo igual aos países desenvolvidos, constatar que a crise do Judiciário também não é a mesma e que, somente a partir da elucidação das verdadeiras dificuldades, será possível superá-las.


II. BREVE EVOLUÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NOS PAÍSES CENTRAIS

A ideia central desse capítulo é abordar o Poder Judiciário frente aos países centrais. Para tanto, é preciso considerar que dito poder recebeu tratamento diferenciado nos dois modelos principais de Estado vivenciado pelos países centrais, mais especificamente os europeus, o que será demonstrado a seguir, a partir do contraponto entre judiciário no Estado Liberal e Judiciário no Estado-Providência, ou do Bem-Estar Social.

2.1. O Judiciário no modelo liberal

2.1.1. Considerações sobre o Estado Liberal

O liberalismo teve sua origem na Inglaterra, no Bill of Rigths imposto pelo Parlamento à Coroa, em 1689, e se estendeu à América do Norte, manifestando-se na declaração conjunta de independência assinada pelos estados americanos em 04 de julho de 1776. Mas, além da história política inglesa, seu fundamento está também no Iluminismo francês do século XVIII. As ideias liberais culminaram na Revolução Francesa de 1789 e, consequentemente, na Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem, considerada síntese do Estado democrático.

É a partir da consagração desse paradigma que emerge a noção de Estado de Direito, impondo aos liames jurídicos estatais a concreção do ideário liberal no que diz com o princípio da legalidade, divisão de poderes e garantia dos direitos individuais.

No mesmo sentido, ou seja, entendendo o Estado Liberal como o primeiro Estado jurídico, Paulo Bonavides [02] aduz que o liberalismo alcançou sua experimentação história na Revolução Francesa. A burguesia, classe dominada, em princípio e, em seguida, classe dominante, formulou os princípios filosóficos de sua revolta social, generalizando-os como ideais comuns a todos os componentes do corpo da sociedade. Mas, alerta Bonavides, no momento em que se apoderou do controle político, a burguesia já não mais se interessou em manter na prática a universalidade daqueles princípios, como apanágio de todos os homens. Só os sustentava de maneira formal, uma vez que, no plano político, eles se conservavam como princípios constitutivos de uma ideologia de classe. Foi essa contradição, portanto, a mais profunda na dialética do Estado moderno, segundo o autor.

Ainda acerca da burguesia, é preciso esclarecer que esta inaugurou seu poder político como classe e, nesse ponto, as doutrinas contratualistas representaram um importante instrumento teórico para os revolucionários franceses, pois a burguesia reivindicava uma Constituição, exatamente porque o contrato social encontrava sua explicitação na Constituição.

De outro lado, o contratualismo trazia a ideia de indivíduo, tanto em Hobbes, quanto em Locke. O consentimento deveria ser dado pelo indivíduo. Mais especificamente quanto a Locke, deve-se a ele, inegavelmente, a propagação da teoria dos direitos e liberdades políticas, uma das bandeiras do liberalismo.

A respeito das definições referentes ao liberalismo, há um quadro referencial unívoco que caracteriza o movimento liberal: a ideia de limites.

Com efeito, Norberto Bobbio, brilhantemente descreve a imposição de limites trazida pelo Estado Liberal. De acordo com o doutrinador italiano [03], o liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes, quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de Direito, enquanto o segundo, é o Estado Mínimo.

Diz Bobbio [04] que, na doutrina liberal, Estado de Direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente e, portanto, em linha de princípio, invioláveis.

A despeito da ideia de limites ao poder estatal, verificada como característica essencial do liberalismo, Roy Macridis, citado por Lenio Streck e Bolzan de Morais [05], remete aos elementos identificadores daquele paradigma estatal, vislumbrando três núcleos principais: moral (valores e direitos básicos atribuídos à natureza do ser humano), político (direitos políticos) e econômico (direitos econômicos – economia de mercado livre e de propriedade - privada).

No núcleo moral, dizem aqueles autores [06], estão localizadas as liberdades pessoais. Homens e mulheres devem, para o modelo liberalista de Estado, viver sob leis gerais e abstratas, previamente conhecidas. O núcleo político, por seu turno, carrega direitos políticos relacionados à representação, tais como o sufrágio, eleições, opção política, e assim por diante. Por fim, o núcleo econômico é representado pelo capitalismo e tem como seus pilares a propriedade privada e a economia de mercado livre de controles estatais [07].

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A respeito dessa esfera econômica, como sustenta Celso Ribeiro Bastos [08], se procurou, no liberalismo, suprimir toda interferência do Estado na regulação da economia. A lei da oferta e da procura (lei econômica e não jurídica) se encarregaria de colocar os preços em níveis justos sem deixar de estimular o empresário a produzir cada vez mais e por menores preços. A tímida intervenção do Estado na economia, pois, acabou resultando em um dos maiores acontecimentos históricos do século XIX, a Revolução Industrial.

Tal fato significou uma época de progresso econômico, crescimento populacional, abertura de novos mercados consumidores e novas invenções mecânicas. Entretanto, também foi responsável pelo aumento da miséria entre o proletariado, pelas grandes concentrações de riquezas em mãos de uma minoria, e pelo surgimento de trustes, cartéis e sindicatos.

A Revolução Industrial, portanto, foi uma das causas que levou o liberalismo à decadência. Com o surgimento das máquinas, a necessidade de trabalhadores nas fábricas diminuiu consideravelmente, culminando na disponibilidade de mão-de-obra. Os empresários, consequentemente, passaram a oferecer baixos salários e a utilizar o trabalho de mulheres e crianças.

Através da Revolução Industrial, foi apresentado ao mundo um novo tipo de homem até então desconhecido: o operário de fábrica. O aparecimento das máquinas produziu o desemprego em massa. O trabalho humano passou a ser negociado como mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura, e o operário se viu compelido a aceitar salários ínfimos e a trabalhar mais de quinze horas por dia para ganhar o mínimo necessário à sua subsistência [09].

A partir dessa nova realidade, os trabalhadores perceberam que deveriam reunir-se na busca de melhores condições de trabalho e melhores salários. Foi nessa época que surgiram os primeiros conflitos trabalhistas. Também em razão da Revolução Industrial nasceu o direito de greve, como forma de reivindicação.

O Estado, que até aquele momento, somente assistia a esse cenário histórico, limitando-se a policiar a ordem pública, viu-se, portanto, obrigado a intervir. E assim, em virtude do retorno, por parte do Estado, a atividades que haviam saído da esfera de sua competência no liberalismo, foram sendo alterados os rumos deste modelo.

Comungando do pensamento de Lenio Streck e José Luis Bolzan de Morais [10], pode-se afirmar que os rumos do Estado Liberal se modificaram a partir de meados do século XIX, quando aquele passou a assumir tarefas positivas, prestações públicas, a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à cidadania, ou a agir como ator privilegiado do jogo sócio-econômico.

Na medida em que o Estado foi ampliando sua esfera de atuação, começou a desaparecer o Estado Mínimo e, gradativamente, a surgir o Estado Social, em sentido amplo.

Com efeito, é possível vislumbrar a passagem do Estado Liberal (Estado Mínimo) para o Estado Social a partir da tensão entre os núcleos político (democracia representativa, constitucionalismo, sufrágio, Estado de Direito) e econômico (capitalismo, livre mercado, liberdade contratual) porquanto, em meio a todas as mudanças já comentadas, a convivência entre os dois projetos (político e econômico) tornou-se difícil, especialmente porque a democracia e o capital tinham (têm) propostas distintas, sendo a democracia includente e o capital excludente.

Somente através do pacto social seria possível a convivência, em um mesmo espaço, de propostas tão contraditórias, acreditando-se que o ajuste poderia ser feito através de um capitalismo de produção – que necessita de consumidores para sobreviver.

Não é por acaso que o comunismo russo surgiu como solução extremista, diametralmente oposta ao liberalismo [11]. O Estado Liberal, eivado de erros doutrinários, teve que enfrentar as ideias marxistas, as quais, no dizer de Sahid Maluf [12], proliferaram como sementeira lançada em terreno fértil.

2.1.2. O Poder Judiciário no liberalismo

Como visto alhures, é no Estado Liberal que emerge a noção de Estado de Direito, o qual tem em seu cerne a lei. Sendo assim, é justamente no liberalismo que Poder Judiciário encontra a consolidação do modelo judicial moderno [13].

No Estado de Direito são abandonadas as concepções anteriores, nas quais os cidadãos eram vinculados a uma autoridade divina ou a um único senhor, dotado de poderes absolutos e arbitrários.

Mas, ao contrário do que, em um primeiro momento se possa pensar, havia, nesse paradigma, uma especial relevância do Poder Legislativo sobre os demais. Com efeito, se o objetivo no Estado era garantir a plena liberdade do indivíduo e assegurar seus direitos fundamentais, eram as leis que exerciam papel de maior destaque, pois representavam o modo legítimo de conter o poder estatal.

Nesse sentido que se afirma [14] que a neutralização política do poder judiciário decorre do princípio da legalidade.

Outrossim, os mesmos teóricos afirmam que o Poder Judiciário era retroativo – acionado retroativamente com o objetivo de reconstituir uma realidade normativa plenamente constituída – e reativo – só atua quando solicitado pelas partes ou por outros setores do Estado [15].

Ainda, como o indivíduo adquire papel nuclear no liberalismo, os procedimentos judiciais, por óbvio, também terão a característica de privilegiar as individualidades.

De outro lado, o desenvolvimento da economia capitalista provocou, como já visto, o agravamento das desigualdades sociais, o que gerou grandes debates acerca da necessidade de implantação de um modelo de justiça distributiva. Mas, o Poder Judiciário, alheio a tudo isso, mantinha seu ideal de justiça retributiva, privilegiando soluções minimalistas [16].

Por fim, quando às características mais relevantes do Judiciário no Estado Liberal, vale apresentar a síntese proposta por Boaventura de Sousa Santos e outros, quanto aos limites enfrentados por aquele poder [17]:

a independência dos tribunais se assentava em três dependências férreas. Em primeiro lugar, segundo o princípio da legalidade; em segundo lugar, a dependência da iniciativa, vontade ou capacidade dos cidadãos para utilizarem os tribunais, dado o caráter reativo da intervenção destes; em terceiro lugar, a dependência orçamentária em relação ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo na determinação dos recursos humanos e materiais julgados adequados para o desempenho cabal da função judicial.

Tais são, efetivamente, os "limites" caracterizadores do modelo liberal, conforme visto no capítulo antecedente, os quais são considerados por Álvaro Filipe Oxley da Rocha [18] como redes de dependência que neutralizam politicamente os tribunais.

Vistos assim, os aspectos mais relevantes do Poder Judiciário no Estado Liberal, é preciso conhecer como se portavam os tribunais em outro modelo, sucessor do liberalismo nas nações desenvolvidas – o Estado Social.

2.2. O Judiciário no modelo social

2.2.1 Considerações sobre o Estado Social

O Estado Social é o Estado Contemporâneo [19], uma expressão do Estado moderno que incorpora a função social como uma de suas características fundantes. É a partir da função social que nascem as políticas públicas, outra característica social-estatal.

O Estado Contemporâneo deixa de ser apenas responsável pela paz e segurança e passa a prover, efetivamente, a igualdade. É um Estado de compromisso.

Contudo, é equivocado afirmar que existe uma completa ruptura entre o Estado Liberal e o Estado Social. Na verdade, o Estado Social representa uma das fases do liberalismo, que se mostra como liberalismo clássico ou em sentido estrito (tema do item anterior) e liberalismo social (aqui analisado). Há, com efeito, apenas um "aprimoramento" das concepções liberais clássicas pelas concepções sociais.

Nesse sentido, Manuel García-Pelayo [20] sustenta que, em termos gerais, o Estado Social significa, historicamente, a intenção de adaptar o Estado tradicional (liberal burguês) às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com seus novos e complexos problemas, mas também com suas grandes possibilidades técnicas, econômicas e organizativas para enfrentá-los.

O Estado Social, para o autor [21], não é nem socialista, nem capitalista, no sentido clássico do conceito. Corresponde, isto sim, a uma etapa do neocapitalismo [22] que se manifesta pela necessidade de resolver problemas irresolúveis dentro da estrutura do Estado Liberal.

A justiça distributiva, ou seja, o Estado distribui bens jurídicos de caráter material, com conteúdo jurídico, é uma das qualificações do Estado Social, segundo García-Pelayo [23], o que indica sua característica substancial. Com efeito, de acordo com o espanhol, objetiva-se, nesse modelo, assegurar a justiça legal formal, e também a material.

Mais especificamente no que tange ao Estado-Providência, tal pode ser identificado, segundo José M. Mayán Santos [24] como o conjunto de atividades realizadas pelos governos para proporcionar à sociedade atual e futuro um conjunto de prestações diferentes e de qualidade, que incluam políticas sanitárias, educacionais, econômicas, etc., com a finalidade de satisfazer plenamente a seus membros, evitando os conflitos em relação à falta de estabilidade e de uma política social apropriada.

Tal faceta é resultado das políticas definidas a partir das grandes guerras e da crise da década de 1930, embora sua formulação constitucional tenha se dado originalmente na segunda década do século XX (México, 1917, e Weimar, 1919) [25].

Uma das características pertinentes a este paradigma é o fato de atuar de modo intermediário entre um Estado totalmente intervencionista e um Estado completamente absenteísta. O compromisso maior do Estado do Bem-Estar Social é justamente a busca da realização do bem-estar social.

Outrossim, o personagem principal nesse modelo é o grupo, que se corporifica diferentemente em cada movimento social [26].

Para Lenio Streck e José Luis Bolzan de Morais [27] o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar Social [28] pode ser creditado a duas razões: uma de ordem política, através da luta pelos direitos individuais, políticos e sociais; e outra de natureza econômica, em razão da transformação da sociedade agrária em industrial.

Enquanto nos Estados liberais os direitos individuais tornaram-se o fundamento das estruturas constitucionais, no novo modelo, os direitos individuais foram postos ao lado dos direitos sociais e coletivos, disciplinando as relações entre capital e trabalho, tratando da Previdência Social, da função social da propriedade, dentre outros

Tomando, de outro lado, a caracterização do Estado do Welfare State, pelo ângulo econômico, pode-se afirmar que este modelo constitui uma experiência concreta da total disciplina pública da economia, assumido como modelo de futuros objetivos autoritários da política econômica e, ao mesmo tempo, criando hábitos e métodos dirigistas dificilmente anuláveis [29].

A função social, de outra banda, constitui a finalidade primordial do Estado do Bem-Estar Social.

Como assevera César Pasold [30], a função social do Estado Contemporâneo implica em ações que, por dever para com a sociedade, o Estado execute, respeitando, valorizando e envolvendo o seu sujeito, atendendo ao seu objeto e realizando os seus objetivos, sempre com a prevalência do social e privilegiando os valores fundamentais do ser humano.

Outro ponto a ser destacado, refere-se à noção de igualdade, preconizada pelo Estado do Bem-Estar Social. Com efeito, enquanto no Estado Liberal, almejava-se a liberdade dos cidadãos, o Estado Social traz ínsito em si a ideia de igualdade.

Como assinala Dalmo de Abreu Dallari [31], no final do século XVIII consagrou-se a liberdade como o valor supremo do indivíduo, afirmando-se que se ela fosse amplamente assegurada, todos os valores estariam protegidos, inclusive a igualdade. Porém, a experiência demonstrou que tal regime, na realidade, só assegurava a liberdade para os que participassem do poder econômico, surgindo, assim, uma corrente doutrinária e política manifestando a convicção de que a liberdade como valor supremo era a causa inevitável da desigualdade. Os adeptos dessa linha de pensamento entendiam ser indispensável um sistema que assegurasse a igualdade de todos os indivíduos.

É preciso referir, contudo, que mesmo preconizando a igualdade, o Estado Social acabou limitando-se a seu âmbito formal/procedimental, e não material, como deveria efetivamente ocorrer.

E é assim, portanto, que se chega a uma tentativa de "materialização" do Estado social, sob a roupagem do Estado Democrático de Direito, o qual, na visão de Lenio Streck [32], representa uma ideia consolidada como um dos conceitos políticos fundamentais do mundo moderno.

O Estado Democrático de Direito significa um novo conceito, que tenta conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tem, esse paradigma, um caráter transformador, pois ao conteúdo da legalidade, busca-se a efetiva concretização da igualdade, não pela generalidade do conceito normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade [33].

Por tal razão, o paradigma formal/procedimental apresenta-se totalmente incompatível com políticas estatais que se destinam a efetivar direitos e garantias, individuais e coletivos, previstos nas Cartas Constitucionais.

No dizer de Lenio Streck [34], enquanto o modelo de direito do Estado Social decorre de uma crítica reformista do paradigma do direito liberal, o modelo de direito do Estado Democrático de Direito ultrapassa ambas as concepções. Nasce, portanto, um Estado engendrado no campo do direito constitucional e da ciência política, uma nova legitimidade, no interior da qual o direito assume a tarefa de transformação, até mesmo em face da crise do modelo de Estado Social, onde as políticas públicas começaram a se tornar escassas, questão que colocava em risco a realização dos direitos sociais fundamentais. A legitimidade, agora, advém da própria Constituição.

Traçando um paralelo entre os três modelos aqui analisados, Lenio Streck [35], sinteticamente, afirma:

se no paradigma liberal o Direito tinha a função meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado-Sociedade, no Estado Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Welfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão, em determinadas circunstâncias previstas nos textos constitucionais, passa para o Poder Judiciário ou os Tribunais Constitucionais.

O Estado Democrático de Direito, porém, também significa um ideal a ser atingido, de modo que alguns autores, dentre eles Boaventura de Sousa Santos e outros [36], preferem sequer entendê-lo como uma nova faceta da evolução estatal. Tais teóricos, no lugar de Estado Democrático de Direito, referem-se à crise do Estado-Providência, ou seja, consideram que não houve ainda um aprimoramento do Estado Social e que este se encontra efetivamente em crise.

De outro lado, ainda que outros autores consintam na formação do Estado Democrático de Direito, também vislumbram as crises, pelo que se torna inevitável comentá-las, o que será visto no próximo capítulo.

2.2.2. O Poder Judiciário no modelo social

Ao contrário do que ocorreu no modelo liberal, em que o Poder Legislativo predominava sobre os demais, no Estado Providência também um poder adquire papel de destaque: o Executivo.

Como efeito, o Estado assume a gestão da tensão que ele próprio cria, entre justiça social e igualdade formal e, dessa gestão são incumbidos todos os órgãos e poderes do Estado [37].

Ao contrário da predominância de litígios individuais, presentes no primeiro paradigma, nessa fase aparecem também os interesses coletivos e surge a necessidade de os mesmos serem tutelados pelo Judiciário.

Logo, embora tenha se destacado a importância do Executivo, os tribunais, nesse modelo estatal assumem papel diferenciado, pois têm suas funções significativamente ampliadas.

No dizer de Boaventura de Sousa Santos e outros [38], a juridificação do bem-estar social abriu caminho para novos campos de litigação nos domínios laboral, civil, administrativo e da segurança social e, assim, embora nuns países mais do que nos outros, houve o aumento exponencial da procura judiciária, o que resultou nem uma explosão de litigiosidade.

As respostas que foram dadas a esse fenômeno incluíram, basicamente, as seguintes reformas: informalização da justiça; reapetrechamento dos tribunais em recursos humanos e infra-estruturas, incluindo a informatização e a automatização da justiça; criação de tribunais especiais para a pequena litigação de massas, tanto em matéria civil como criminal; proliferação de mecanismos alternativos de resolução de litígios; e reformas processuais várias [39].

Ainda, outra mudança no perfil do Judiciário é verificada pelos autores no que tange à sua postura política. Deixam os tribunais de se imiscuírem e passam a ter de se integrar na sociedade.

A despeito de todas as considerações acerca do Poder Judiciário no Estado-Providência, urge frisar que os países centrais – os quais vivenciaram a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e, assim, todas as características apresentadas sobre o poder jurisdicional, aqui elencadas – já vivenciam uma outra realidade, chamada de crise do Estado-Providência. Nessa esteira, pois, o Poder Judiciário merece ser tratado também nesse contexto de crise.

Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. A crise do Poder Judiciário.: Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2305, 23 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13725. Acesso em: 22 dez. 2024.

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