Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Considerações sobre um desconhecido Direito de Família e as dificuldades do advogado familiarista

Exibindo página 3 de 4
Agenda 28/11/2009 às 00:00

4. A PREFERÊNCIA DOS VÍNCULOS AFETIVOS SOBRE OS VÍNCULOS BIOLÓGICOS

Uma grande mudança que se percebe atualmente nos vínculos familiares se refere à prevalência dada pela atual legislação, bem como pelo atual Direito como um todo, dos vínculos afetivos sobre os vínculos biológicos, certamente pelo fato de que a figura paterna (normalmente o ente ausente) pode ser adequadamente suprida por outra pessoa, do mesmo sexo daquela ausente, na vida de uma criança ou adolescente, conforme ensinamentos da Psicologia moderna.

Ou seja: na formação de uma família entre ascendentes e descentes, a vinculação biológica é um elemento eventual, enquanto a vinculação afetiva torna-se um elemento essencial.

Nessa linha de intelecção, a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional.

Aliás, não apenas sob as vestes jurídicas. Também sob o prisma da Psicologia, o afeto se evidencia como uma verdadeira ‘âncora do sentido’, conferindo-lhe ‘um lastro decisivo de certeza, sustentado pela imagem do corpo’. A partir disso, demonstra-se, pelo afeto, uma verdade, ‘a da paixão que a linguagem impõe ao ser’, conforme o esclarecimento de Marcus André Vieira.

Dessa forma, afirma-se a importância do afeto para a compreensão da própria pessoa humana, integrando o seu ‘eu’, sendo fundamental compreender a possibilidade de que dele (do afeto) decorram efeitos jurídicos, dos mais diversos possíveis. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nélson. Direito das famílias, 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2.008, p. 25).

Ao encontro do entendimento da indiferença entre a vinculação biológica e a afetiva, encontra-se assim redigido o artigo 1.593 do Código Civil Brasileiro:

Artigo 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou outra origem.

Comentando este artigo legal, a Dra. Lúcia Maria Teixeira Ferreira, Promotora de Justiça Titular da 9ª Curadoria de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, teceu comentários preciosos a respeito, relembrando, com muita propriedade, a vinculação advinda da reprodução assistida heteróloga:

É de se ponderar que a expressão ‘outra origem’, em substituição ao termo ‘adoção’, traz uma nova classificação para as relações de parentesco. Além do parentesco natural e da adoção, temos relações de parentesco entre pessoas que não têm essas formas de vínculo, como, por exemplo, o que ocorre quando se lança mão de técnica de reprodução assistida heteróloga.

Como sustentado anteriormente, atualmente se consagram novos valores referentes ao vínculo de filiação, nos quais ganha contorno e conteúdo a idéia de que a paternidade e a maternidade não são apenas relações jurídicas, ou meramente biológicas, sendo fundamental a presença do afeto nas relações paterno-filiais.

Segundo o ilustre Professor Luiz Edson Fachin, ‘a disciplina jurídica das relações de parentesco entre pais e filhos não atende, exclusivamente, quer valores biológicos, quer juízos sociológicos. É uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos ou abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos’. Fachin nega um conceito unívoco de paternidade, revelando, ‘através do significado plural das relações paterno-filiais, a ampliada dimensão e relevância da nova tendência do direito de família’.

Têm-se, assim, no art. 1.593 do novo Código, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar. (FERREIRA, Lucia Maria Teixeira. Das relações de parentesco. In: LEITE, Heloísa Maria Daltro [coord.]. O novo direito civil – do direito de família. 1. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, ps. 175-176).

A vinculação sócio-afetiva é hoje uma realidade latente, sendo a adoção o seu exemplo clássico, e, acaso se indague que a adoção não é uma regra absoluta de convivência harmônica entre adotantes e adotado, da mesma forma a vinculação biológica também não o é.

Em tema tão intrincado, em que várias verdades se superpõem, mister é estabelecer – ou ao menos tentar – um critério para a identificação dos vínculos de parentalidade. Até o advento da Constituição Federal, prevalecia o critério da verdade legal, ou seja, alguém era filho porque a lei assim ordenava, mesmo que todos soubessem que não era filho biológico do marido da mãe. A lei concedia o exíguo prazo de dois meses para o marido "contestar a legitimidade do filho de sua mulher" (CC/1916, 178, parágrafo 3º). A mudança foi radical. Agora a lei afirma que a ação é imprescritível (CC 1.601), privilegiando a verdade biológica. Cresce o movimento para emprestar maior importância ao critério socioafetivo, que se sobrepõe à verdade presumida e também à verdade biológica, pois tem por base um valor maior: o vínculo de afetividade que o constituiu. Tem prevalência até sobre a coisa julgada, pois nada deve obstaculizar o estabelecimento de vínculo jurídico para chancelar uma verdade que não existe. Comprovada a posse do estado de filho, não há como destruir o elo consolidado pela convivência, devendo a justiça, na hora de estabelecer a paternidade, sempre respeitar a verdade da vida, constituída ao longo do tempo. (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.009, p. 351).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Todavia, a diferenciação agora é que, ao contrário da adoção, onde os laços familiares do adotado com sua antiga família são extintos, os modelos atuais de vinculação socioafetiva, em linha de princípio, podem ou não extinguir esse laço anterior, variando conforme seja o tão conhecido melhor interesse da criança ou do adolescente.

Exemplo de um caso onde o reconhecimento do vínculo socioafetivo não altera o vínculo anterior se pode observar na recente Lei nº 11.942, de 17 de abril de 2.009, a qual, modificando o artigo 57 da Lei de Registros Públicos, autoriza o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta, pois, em tal situação, teve-se a intenção tão somente de declarar a existência do forte vínculo afetivo entre os interessados, eximindo-se naturalmente de adentrar nas questões envolvendo os vínculos biológicos, haja vista ser questão pouco estudada e menos ainda debatida na justiça brasileira, servindo apenas como um fator de estímulo a manter intactos e premiar dois seres vinculados pelo afeto, no caminho trilhado pelo Estado na proteção da família em sentido amplo.

Todavia, em boa hora e com retidão e coragem poucas vezes vista na evolução do direito pátrio, já se tem notícia do indeferimento de ações de investigação de paternidade onde, não obstante tenha sido reconhecida a vinculação biológica, havia uma filiação socioafetiva preexistente, de forma tal que concluiu-se pela impossibilidade de buscar-se o reconhecimento de uma paternidade já reconhecida no mundo de fato e de direito.

Ação de filiação socioafetiva. Improcedência. Se a família afetiva transcende os mares do sangue, se a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, se a autêntica paternidade/maternidade não se funda na verdade biológica, mas sim, na verdade afetiva, a ponto de o direito atual autorizar que se dê prevalência à filiação socioafetiva, esta só pode ser reconhecida quando baseada no afeto, e não somente no interesse patrimonial. Se o autor, que possui pai e mãe biológicos e registrais, e com a mãe estabeleceu relação parental afetiva (somente não o fazendo com o pai porque já era falecido), não pode pretender o reconhecimento de uma filiação que não é espontânea e não foi voluntariamente assumida pelos alegados "pais de criação", pretensão que vem permeada de interesse exclusivamente econômico. Precedentes. (OITAVA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 70023288251. Relator: José S. Trindade. Porto Alegre, 08.05.2008).

Responsabilidade civil. Indenização. Danos Morais. Paternidade afetiva. Consanguinidade. A responsabilidade civil assenta-se em pressupostos (ação ou omissão culposa, dano e nexo de causalidade) que se somam, de modo que, ausente um deles, não há falar em dever de indenizar. A perda da fruição das benesses da vida, a ausência e a carência de afeto que o pai biológico poderia ter proporcionado ao filho, cuja relação consangüínea veio a ser conhecida em juízo, mediante ação investigatória de paternidade e depois da maturidade e idade adulta (mais de 40 anos), não serve como causa de pedir da ação de indenização por danos morais, sobretudo como no caso presente em que a requerente nasceu, cresceu e desenvolveu-se dentro de uma família, com todos os paradigmas de um crescimento psicologicamente sadio e de formação do caráter. O elemento caracterizador do estado de filiação é o vínculo afetivo, privilegiado pela Constituição Federal, resultando ter-se como verdadeira paternidade aquela que se funda no afeto, podendo coincidir, ou não, com a paternidade biológica. Prevalência dos vínculos afetivos desenvolvidos em família sobre as questões de ordem genética e patrimonial. Apelo improvido. (NONA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 70011497393. Relatora: Íris Helena Medeiros Nogueira. Porto Alegre, 08.06.2005).

Espera-se, assim, que tal reconhecimento da supremacia dos vínculos afetivos sobre os biológicos seja urgentemente reconhecida por todo o Judiciário, privilegiando a família eleita pelas partes e não aquela imposta por situações naturais e nem sempre desejadas pelos interessados, o que representará inquestionavelmente fonte de prevenção de inúmeros conflitos nas varas de Família.


5. A ARBITRAGEM E A MEDIAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA

Pela legislação nacional atual, bem como pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a arbitragem, como medida alternativa ao Poder Judiciário para solução de conflitos, ainda não é utilizada em nosso país para solução das lides nascidas do Direito de Família.

Outrora questionada perante o Supremo Tribunal de Justiça, haja vista que uma lei inferior estaria a supostamente impedir que um cidadão recorresse ao Judiciário para proteção de seus direitos – teoricamente em flagrante violação ao disposto no artigo 5º., inciso XXXV, da Constituição (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) – este órgão máximo do Judiciário nacional decidiu pela constitucionalidade de todos os dispositivos da lei arbitral nacional, lei essa que, textualmente, somente existe para discutir direitos disponíveis, o que não é o caso da quase totalidade dos debates familiares existentes em nossos tribunais.

Todavia, se a Lei de Arbitragem brasileira – Lei nº 9.307/96 – descreve, em seu artigo 1º, que somente será aplicada a direitos patrimoniais disponíveis, nada impede que se faça outra norma específica para aplicá-la aos litígios nascidos no Direito de Família, ou, mais simplesmente, que simplesmente se faça uma lei para, reformulando o já mencionado artigo 1º da lei já existente, suprimir a restrição a direitos patrimoniais disponíveis, permitindo, assim, a adequação de tal procedimento arbitral aos conflitos familiares.

Não se nega que tal modificação legislativa traria grande contribuição para a celeridade processual, haja vista o notório caos do Poder Judiciário brasileiro. Todavia, a grande vantagem dessa nova modalidade de solução alternativa de conflitos familiares, ou melhor, a grande verdade dessa modificação, seria o reconhecimento de uma realidade já reinante em todos os estudos destinados a explanar a superioridade da solução extrajudicial dos litígios familiares, qual seja, a confirmação de que as salas de audiências, onde o extinto casal se digladia pelos mais variados temas, onde os contendores sentam-se face a face acompanhados de advogados preocupados muito mais em uma vitória judicial – seja lá o que isso venha a significar para cada um – do que em buscar a efetiva pacificação, é um sistema ineficaz, muitas vezes incapaz de proferir uma decisão justa, sendo, acima de tudo, ampliador das disputas existentes.

Quanta vantagem seria possível se obter se, na composição da figura de um árbitro plúrimo, onde a decisão, que poderia ser obtida pelos votos de três membros (permissão outorgada pelo parágrafo 3º. do artigo 13 da Lei da Arbitragem), fosse proferida, v.g., por um jurista especializado, um psicólogo e um assistente social. Seria a mais perfeita aplicação da interdisciplinaridade no campo do Direito de Família. As chances de reconciliação – uma cautela sempre providencial – contra a extinção precoce de uma unidade familiar ou, mantida a intenção de extinção, em favor da conciliação dos contendores para acordarem em exercer amigável e conscientemente os direitos e obrigações de uma guarda compartilhada, por exemplo, nada mais é do que o cumprimento do escopo constitucional de proteção integral à família, e, nas questões envolvendo menores, a decisão do que for melhor ao infante estará em condições muito mais adequadas de ser encontrada e aplicada do que em salas de audiência, ainda que nestas se utilize das superficiais e exíguas avaliações psicossociais.

Nesse delicado ramo do direito, as questões sociais e as condições psicológicas devem ser valoradas para melhor se compreender a realidade das partes. Cada vez mais é indispensável mesclar o direito com outras áreas do conhecimento que têm na família seu objeto de estudo e identificação. Nessa perspectiva, a psicanálise, a psicologia, a sociologia, a assistência social vêm se inserindo no direito das famílias e desenvolvendo um trabalho muito mais integrado. O aporte interdisciplinar, ao ampliar a compreensão do sujeito, traz ferramentas valorosas para a compreensão das relações dos indivíduos, sujeitos e operadores do direito, com a lei. (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.009, p. 82).

Todavia, ante a ausência de norma expressa a respeito, não se aplica a arbitragem no Direito brasileiro.

Seria muito bom que houvesse uma mudança legislativa assegurando às famílias o direito de, mediante o pacto antenupcial ou no contrato de união estável, inserirem em seus termos a cláusula compromissória para o caso de uma eventual extinção litigiosa da entidade familiar, de forma a ficarem mais asseguradas de que a decisão sobre o fim do relacionamento seja feita de acordo com a lei e com o pleno respeito aos mais legítimos anseios dos ex-consortes.

Não se pode esquecer que a doutrina especializada, trilhando caminhos que a legislação já permite, abraça efusivamente a ideia da intervenção interdisciplinar para auxílio na solução das lides do Direito de Família, sendo exemplar a figura da Mediação, a qual, não obstante não detenha o poder decisório que se mostra como a grande vantagem da Arbitragem, ainda assim traz resultados altamente relevantes.

A mediação apresenta-se, destarte, como mecanismo auxiliar relevante para o julgamento das causas de família, em especial no primeiro grau de jurisdição, aproximando a ciência do Direito da realidade viva da vida.

Outrossim, a variada carga de conflitos humanos (afetivos, sexuais, emocionais...) que marca, particularmente, o Direito de Família e, ao mesmo tempo, a proteção constitucional da vida privada de cada uma das pessoas envolvidas, são argumentos fortes para o uso da mediação familiar.

Em determinados conflitos (como relativos à guarda e visitação dos filhos, v.g.), a mediação familiar se apresenta com resultados amplamente favoráveis às partes e ao Judiciário, uma vez que ao indicar um perito par ter contato com as partes o magistrado sairá da rigidez da ciência jurídica e considerará ‘as partes como seres em conflito, esvaziando a disputa inesgotável do perde/ganha. Trata-se de dever ético do analista e perito impedir os litigantes de se digladiarem e usarem os filhos como mísseis em suas batalhas’, consoante a lúcida observação de Alba Abreu Lima.

De fato, ‘as causas de família requerem sensibilidade e conhecimentos específicos para ajuda às famílias’, evidenciando um caráter interdisciplinar, multirreferencial, que imporá a participação de outros setores do conhecimento para dirimir o conflito de forma mais efetiva e eficaz. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nélson. Direito das famílias, 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2.008, ps. 23-24).

A utilização de meios alternativos para solução dos conflitos familiares, assim, mostra-se significativa e amplamente desejável, devendo tornar-se um hábito para os operadores do direito no intuito principal de desarmarem seus clientes/gladiadores para que o fim a pacificação dos ex-componentes de um lar desfeito seja sempre o melhor possível, irradiando bons sinais para a prole eventualmente existente.

Sobre o autor
Roberto Lins Marques

Advogado militante. Pós-graduando em Direito Civil. Ex-membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG .Graduado no Curso de Formação de Governantes da Escola de Governo do Triângulo Mineiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Roberto Lins. Considerações sobre um desconhecido Direito de Família e as dificuldades do advogado familiarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2341, 28 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13927. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!