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Ministério Público e (im)parcialidade.

Da necessidade de uma visão imparcial da questão

Agenda 14/12/2009 às 00:00

É corrente na doutrina a afirmação de que o Ministério Público, ao atuar perante as ações penais de iniciativa pública, é órgão imparcial [01]e, por esse motivo, tanto lhe importaria a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente.

Neste sentido, é a lição de PACELLI DE OLIVEIRA: "Enquanto órgão do Estado e integrante do Poder Público, ele tem como relevante missão constitucional a defesa não dos interesses acusatórios, mas da ordem jurídica, o que o coloca em posição de absoluta imparcialidade diante da e na jurisdição penal. (...) Portanto, a imparcialidade deverá permear toda a atividade do Ministério Público, em todas as fases da persecução penal, incluindo a fase pré-processual, reservada às investigações". [02]

Com a devida vênia, não há como aderir à tal entendimento que ressoa, no mínimo, falacioso e que concede ao órgão acusador estatal uma característica que não lhe é inerente, inexeqüível do ponto de vista fático e inconcebível teoricamente.

O primeiro argumento é histórico. Para isso, é preciso lembrar que o nascimento do Ministério Público possui relação direta com a adoção do sistema acusatório, da maneira como o conhecemos atualmente, eis que após as barbaridades ocorridas durante a época em que predominou o "sistema inquisitório puro", o Estado retoma a adoção do modelo acusatório, no entanto com um novo molde, onde o Leviatã mantém consigo a titularidade do poder de penar, não mais a repassando para os cidadãos.

Por essa razão surge o Ministério Público que assume a persecução penal, possibilitando a manutenção da imparcialidade do julgador, com o fim do juiz inquisidor, e mantendo com o próprio Estado a titularidade da persecução penal. Nasce, portanto, da imperiosa necessidade de divisão do poder Estatal. O Estado continua sendo o legitimado exclusivo para acusar e julgar, mas para isso, cria outro órgão, fazendo com que tais atividades vitais fossem desempenhadas por aparelhos estatais distintos, sem prejuízo, desse modo, para a imparcialidade do julgador.

É por isso que afirma CARNELUTTI que o Ministério Público é um juiz que se faz de parte. Por isso, ao invés de ser uma parte que "sobe", é um juiz que "desce" [03],ou seja, retira-se o poder de acusação do "juiz inquisidor", passando-o para um órgão distinto, fabricado para tal desiderato, é uma função do juiz do sistema inquisitivo que "desce" e passa para o Parquet.

O Ministério Público é "parte fabricada", que possui como escopo, possibilitar a conservação da persecução penal com o Estado, garantindo, ainda, a imparcialidade do juiz, já que os atos instrutórios e toda a persecução penal são titularizados por órgão distinto do responsável pelo julgamento do acusado.

O segundo argumento é semântico. Ora, a afirmação de que o Ministério Público é "parte imparcial" inicia com uma impropriedade lingüística. Quem é parte não pode ser imparcial, e vice-versa. [04] Criticando veementemente o entendimento da imparcialidade, o mestre processualista CARNELUTTI indaga que "No es como reducir un círculo a un cuadrado, construir una parte imparcial?". [05]

O terceiro argumento é sistêmico. Como se sabe, o núcleo fundante dos sistemas processuais penais é a gestão da prova. Enquanto que no sistema acusatório a gestão da prova está nas mãos das partes (princípio dispositivo), no sistema inquisitório a gestão das provas está nas mãos do julgador (princípio inquisitivo). Assim, a "característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado". [06]

Evidente, portanto, que no sistema inquisitório o magistrado tem sua imparcialidade fragilizada, já que por ser um juiz ator, e não espectador, ele vai atrás das provas tão-só para legitimar a sua versão, já escolhida antecipadamente como a verdadeira. No sistema acusatório o magistrado deve estar alheio à gestão da prova, função essa das partes: Ministério Público e Defesa. E como se sabe, a colheita de prova é antagônica à imparcialidade. Deste modo, as partes, por terem a função de administrarem as provas, estão longe de serem imparciais.

A iniciativa probatória rompe a imparcialidade, já que essa é uma tarefa que "não é neutra, pois sempre se deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada". [07] Ademais, como recorda MALAN, a prática forense demonstra que as partes dificilmente requerem as mesmas diligências, isso porque elas pretendem "comprovar teses diametralmente opostas, já sabendo, de antemão e com elevado grau de certeza, qual o resultado que suas diligências probatórias trarão (ou poderão trazer) aos autos". [08]

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Ressaltado que qualquer atividade instrutória compromete a imparcialidade, deve-se constatar que o Ministério Público, órgão encarregado no sistema acusatório de acusar o imputado, gerindo as provas, buscando a legitimação de sua inicial acusação, não pode ao mesmo tempo ser, ao fim e ao cabo, imparcial. De fato, como sintetiza perfeitamente o tema LOPES JR., "não existe investigador imparcial, seja ele juiz ou promotor". [09]

Por último, mas não menos importante, há um argumento funcional. Conforme ensina TORNAGHI, além da impossibilidade da imparcialidade do acusador, há a desnecessidade desse qualificativo: "não há que se falar em imparcialidade do Ministério Público, porque então não haveria necessidade de um Juiz para decidir a acusação (...) No procedimento acusatório, deve o promotor atuar como parte, pois se assim não for, debilitada estará a função repressiva do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu nem o de Juiz, e sim o de órgão do interesse punitivo do Estado". [10]

Ressalte-se que o contraditório é condicionante da decisão judicial. Apenas com a análise da tese e da antítese é que o juiz chegará a uma síntese, qual seja, a sentença penal. O defensor é um "raciocinador parcial" e, por esse motivo, não pode e nem deve ser imparcial seu adversário, leia-se o Ministério Público. A parcialidade dos oponentes é o preço que se paga para se obter a imparcialidade do juiz. [11] Tentar conceber o membro do Ministério Público como imparcial é contrariar a sua razão de ser no processo, é contrariar a sua função.

Dúvidas surgem quando se analisa o fato do Ministério Público, apesar de ser parte acusadora, poder ao final do processo, após analisar as provas, requerer a absolvição do acusado. Talvez seja esse o argumento mais utilizado por aqueles que sustentam a suposta imparcialidade do promotor de justiça criminal.

Sem embargo, tal argumento peca ao confundir imparcialidade com estrita observância da legalidade e da objetividade. [12] O Ministério Público é defensor da ordem jurídica, zelando pela aplicação escorreita da mesma. Sendo assim, tal qual a atividade de qualquer ente público, esta deve ser, antes de tudo, fulcrada na legalidade e no respeito às leis [13].

A missão institucional do Parquet impede que em sua função acusatória venha persistir na condenação de um inocente, já que estaria violando a ordem jurídica constitucional baseada na Dignidade da Pessoa Humana e no Estado Democrático de Direito, que proíbe não somente o simples início de uma ação penal sem razoáveis indícios de autoria e materialidade, mas também, diante uma interpretação lógica, proíbe a persistência de ações penais desarrazoadas. Logo, não é por ser imparcial que o órgão ministerial requer a absolvição, mas por respeitar o ordenamento jurídico que é de onde extrai a legalidade e legitimidade de seus atos.

MARQUES vai além, ao afirmar que a possibilidade do promotor de justiça requerer a absolvição do réu "longe de destruir a qualificação do Ministério Público como parte, mais lhe realça essa qualidade". [14] Já LOPES JR., citando JAMES GOLDSCHMIDT, afirma que o problema de exigir imparcialidade de uma parte acusadora significa cair no mesmo erro psicológico que fez desacreditar o processo inquisitivo, qual seja, o de crer que uma mesma pessoa possa exercer duas funções tão antagônicas como acusar e julgar. [15]

Enfim, a sustentada imparcialidade do membro do órgão parquetário é uma ilusão construída e que, apesar de constantemente repetida, não possui qualquer sustentabilidade prática nem teórica.

Por fim, há que se reconhecer que ou se realiza de forma plena a acusação, o que por si só compromete a imparcialidade [16], ou se é imparcial e não se acusa. Nesse sentido CARNELUTTI conclui ao afirmar que "Ahora bien, aquello de que el juez tiene principalmente necesidad en la discusión, es que la parte sea parte; en una palabra, tiene necesidad de su parcialidad". [17]

Remata-se a questão com o inevitável afastamento da tese da imparcialidade do Ministério Público, que, no entanto, atua respeitando a ordem jurídica, sendo apenas seu dever requerer absolvição do inocente, não representando tal ato qualquer demonstração de imparcialidade do mesmo.

O membro ministerial deve buscar as provas para legitimar sua acusação, deve contrapor os argumentos da defesa, deve permitir a imparcialidade do juiz que só será alcançada com o afastamento do julgador da gestão da prova. Não deve o Parquet preocupar-se em ser parcial, eis que jamais será, mas deve sim procurar respeitar o ordenamento jurídico, em especial a Constituição.

Desfeito o mito da imparcialidade do Ministério Público, poderia afirmar-se que tal distinção seria de menor importância, diferenciação acadêmica sem qualquer relevância. No entanto, esse é mais um daqueles ranços de arbitrariedade e legitimação do poder acusatório, em detrimento de uma retirada de legitimidade do direito de defesa, provocando um desequilíbrio entre as partes.

Se quem acusa é imparcial, ao chegar ao fim da instrução criminal, a persistência na acusação em face do imputado, demonstraria a existência de consideráveis motivos, já que assim como o juiz, o promotor seria "imparcial", apenas diferenciando-se do magistrado por não ser ele quem vai prolatar a sentença. É quase uma tentativa de inversão da presunção de inocência do imputado por uma suposta presunção de legitimidade da acusação, eis que essa é realizada por um sujeito processual que, como o magistrado, seria imparcial. Ademais, é uma diferenciação legitimante da acusação que desnivela a paridade de armas, eis que a defesa sempre será parcial. São os códigos a serviço de uma legitimação da realidade do Direito Processual Penal.

Em análise instigante do papel da linguagem (código) como legitimante do processo penal, Dean Fábio Bruno de Almeida ensina que "Todavia, diante da complexidade destes códigos, os envolvidos no jogo de linguagem não têm consciência da interação de fatores psicossociais contidos no mais simples processo de comunicação. É justamente através da manipulação destes fatores que a linguagem transforma-se em um poderoso instrumento de controle e dominação, por parte daqueles que controlam a utilização dos códigos simbólicos. (...) Assim, torna-se indispensável o emprego da linguagem pelo poder dominante que almeja legitimar-se através do discurso retórico falacioso, o que só pode ser obtido quando as palavras são ‘adequadamente’ manipuladas. (...) Este monopólio da fixação do sentido, atualmente nas mãos da Empresa-Estado, atinge o senso comum teórico dos juristas, intervindo diretamente no estabelecimento do sentido de legitimidade dos princípios, das normas, das interpretações e da própria realidade concreta, inerentes ao Direito Processual Penal" [18]

Ratifica o nosso entendimento KARAM quando afirma que "é exatamente a enganosa concepção do Ministério Público como ‘parte imparcial’-como se fosse possível superar tão clara contradição entre tais termos – que induz ao desequilíbrio, fazendo ao lado acusatório aparecer, mesmo diante de magistrados, como mais sério, mais comprometido com o direito e, assim, mais digno de credibilidade, superior a quem, no processo, se defende." [19]

Enfim, sejamos, no mínimo, imparciais ao analisar a questão!


Notas

  1. Como assinala Aramis Nassif, não há que se confundir "neutralidade" com "imparcialidade". Ninguém é neutro, nem o juiz é neutro. Explicando a diferença entre os termos, argumenta: "Distinguem-se, e faz o alerta, neutralidade e imparcialidade: A primeira,(...), refere-se às questões ideológicas do magistrado, sua herança psicossocial, sua formação política, etc., apanhadas com intenção ontológica. A segunda, (...), descreve a necessária postura no comando no processo, como gestor das relações interpares". (NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2005, p. 74).
  2. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 369.
  3. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el processo penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo Buenos Aires: Libreria el foro, p. 213.
  4. Dicionário Aurélio. Parte: Cada uma das pessoas que se opõem num litígio (gn.).
  5. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el processo penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo Buenos Aires: Libreria el foro, p. 211.
  6. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In, Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro-São Paulo: 2001, p. 24.
  7. PRADO, Geraldo. O Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 141.
  8. MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 73.
  9. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. 1. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 76.
  10. TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. 2ª edição. 1987, p. 271.
  11. Afirma Carnelutti que "Sem dúvida, isso das duas verdades, a verdade da defesa e a verdade da acusação, é um escândalo; mas é um escândalo do qual o juiz tem necessidade, a fim de que não seja um escândalo o seu juízo". CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 1ª ed. Campinas: Russel Editores, 2008, p. 45
  12. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. 1. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 66.
  13. E não se diga que o fato do Código processual penal prever a exceção de suspeição do membro ministerial demonstraria a imparcialidade do mesmo, mas não, tal exceção tem como argumento não a suposta quebra da imparcialidade, mas o devido respeito à legalidade e objetividade da atuação do MP.
  14. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processo penal. Campinas: ed. Bookseller, 1997, pp. 51;52.
  15. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. 1. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 66
  16. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el processo penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo Buenos Aires: Libreria el foro, pp. 211-217.
  17. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el processo penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo Buenos Aires: Libreria el foro, pp. 211-217.
  18. ALMEIDA, Dean Fábio Bruno, "O direito processual penal e a manipulação da crença em sua legitimidade", In, Direito penal e processual penal, uma visão garantista. Gilson Bonato (Coord). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 56;58;65.
  19. KARAM, Maria Lúcia. "O direito à defesa e a paridade de armas". In: Processo penal e democracia. Estudos em homenagem aos 20 anos da constituição da república de 1988. Geraldo Prado e Diogo Malan (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 403.
Sobre o autor
Gabriel Escorcio Sabino

Estudante. Estagiário oficial do MP/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SABINO, Gabriel Escorcio. Ministério Público e (im)parcialidade.: Da necessidade de uma visão imparcial da questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2357, 14 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14011. Acesso em: 23 nov. 2024.

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