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Inversão do ônus da prova: técnica de julgamento ou matéria de instrução?

O Código de Defesa do Consumidor surgiu para amenizar a verdadeira desigualdade existente nas relações consumeristas. Assim, evidenciada a hipossuficiência do consumidor em face de grandes empresas e a verossimilhança das suas alegações, tornou-se imprescindível a criação de normas protetivas, a fim de que seus direitos pudessem ser tutelados com eficiência.

Diante desse panorama, uma das mais importantes e eficientes técnicas de proteção é a inversão do ônus da prova. No entanto, a sua aplicação tornou-se objeto de discussão quanto ao momento adequado para a sua aplicação, ou seja, se se trata de técnica de julgamento ou matéria de instrução.

Compete a cada uma das partes o ônus de fornecer os elementos de prova das alegações de fato que fizer. Porém, existem situações que permitem a inversão do ônus da prova, para que seja possível sanar o conflito, decidindo-o em prol daquele que efetivamente tenha razão.

O artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, permite a inversão do ônus da prova quando o litígio versar sobre relações de consumo e a alegação do consumidor for verossímil, bem como ser ele hipossuficiente. Vejamos:

Art.6º São direitos básicos do consumidor:

[...]

VIII- a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; (grifo nosso)

A discussão inicia-se, porém, quanto ao momento em que deve ela ser determinada pelo juiz. A inversão deve ocorrer antes da sentença ou no momento do julgamento?

Doutrina e jurisprudência são bastante divergentes, havendo, nitidamente, duas correntes sobre o momento adequado para a inversão do ônus da prova.

João Batista Lopes é adepto à corrente que enquadra a inversão do ônus da prova como regra de julgamento, devendo ser proferida no momento da sentença. Nesse diapasão, ensina que:

À primeira vista, a inversão deveria ser definida por decisão proferida pelo juiz antes da instrução probatória, a teor do art.331 do CPC.

Entretanto, é orientação assente da doutrina que o ônus da prova constitui regra de julgamento e, como tal, se reveste de relevância apenas no momento da sentença, quando não houver prova do fato ou for ela insuficiente.

Diante disso, somente após o encerramento da instrução é que se deverá cogitar da aplicação da regra da inversão do ônus da prova. Nem poderá o fornecedor alegar surpresa, já que o benefício da inversão está previsto expressamente no texto legal. [01]

Também, coadunam-se a esse entendimento Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco, Nelson Nery. Este, especificamente, escreveu que:

[...] o juiz, ao receber os autos para proferir a sentença, verificando que seria o caso de inverter o ônus da prova em favor do consumidor, não poderá baixar os autos em diligência e determinar que o fornecedor faça a prova, pois o momento processual para a produção dessa prova já terá sido ultrapassado. [02] (grifo nosso)

Resta claro que essa parcela da doutrina entende a inversão do ônus da prova como técnica de julgamento, devendo o fornecedor, desde logo, fazer prova a respeito da inexistência do direito alegado pelo consumidor, bem como das circunstâncias extintivas, impeditivas ou modificativas desse direito, uma vez que há a possibilidade de ser o ônus invertido quando da prolação da sentença.

A jurisprudência, também, possui manifestações nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART.6º, VIII, DO CDC. REGRA DE JULGAMENTO.

- A inversão do ônus da prova, prevista no Art.6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é regra de julgamento;

- Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução não se compatibiliza com o devido processo legal. [03]

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - 2º GRAU DE JURISDIÇÃO - POSSIBILIDADE - CRITÉRIO DE JULGAMENTO.

Sendo a inversão do ônus da prova uma regra de julgamento, plenamente possível seja decretada em 2º grau de jurisdição, não implicando esse momento da inversão em cerceamento de defesa para nenhuma das partes, ainda mais ao se atentar para as peculiaridades do caso concreto, em que se faz necessária a inversão do ônus da prova diante da patente hipossuficiência técnica da consumidora que não possui nem mesmo a documentação referente ao contrato de seguro.

Agravo regimental improvido. [04] (grifo nosso)

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Verifica-se, assim, que essa primeira corrente prioriza o direito do consumidor, em detrimento do devido processo legal e, consequentemente, do contraditório. Entretanto, a segunda corrente alega que a inversão do ônus da prova deve ser entendida como matéria de instrução, tendo em vista que não se pode apenar a parte que não provou determinada alegação, sem que se tenha dado a ela a oportunidade de fazê-lo.

Fredie Didier esclarece o porquê se deve entender a inversão do ônus da prova como matéria de instrução:

[...] deve o magistrado anunciar a inversão antes de sentenciar e em tempo do sujeito onerado se desincumbir do encargo probatório, não se justificando o posicionamento que defende a possibilidade de a inversão se dar no momento do julgamento.

[...] Reservar a inversão do ônus da prova ao momento da sentença representa uma ruptura com o sistema do devido processo legal, ofendendo a garantia do contraditório. [05] (grifo nosso)

Compartilham desse entendimento Eduardo Cambi e Luiz Guilherme Marinoni. Este defende que se não se considerar a inversão do ônus da prova como matéria de instrução, mas como matéria de julgamento, significará a imposição de uma pena e, não a simples transferência de um ônus quando se tratar de hipótese de hipossuficiência do consumidor. [06]

Também a jurisprudência tem se manifestado quanto à inversão do ônus da prova como matéria de instrução, tendo em vista os princípios do contraditório e da ampla defesa, norteadores do sistema processual vigente.

TELEFONIA. DESCONSTITUIÇÃO DO DÉBITO. CERCEAMENTO DE DEFESA. Relação de consumo. Decretação da inversão do ônus da prova apenas por ocasião da prolação da sentença. Desrespeito ao contraditório e à ampla defesa. Parte que deve ser cientificada, até o momento da instrução processual, do ônus que lhe recai, munindo-se das provas que entender cabíveis. Sentença desconstituída. Recurso provido. [07] (grifo nosso)

APELAÇÃO CÍVEL - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO - POSTERIOR ALTERAÇÃO NA SENTENÇA - IMPOSSIBILIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVAS - CERCEAMENTO DE DEFESA. a) Tendo em vista a regra geral estabelecida no inciso I, do artigo 333, do CPC, a transferência do ônus da prova por ocasião da sentença causa inadmissível surpresa à parte em cujo ombro o ônus irá recair, já que impossibilitada restará a produção de provas, o que configura inescusável cerceamento de direito. b) Se o juiz profere decisão decretando a inversão do ônus da prova, eventual retratação, ainda que em agravo retido, deve se dar antes da sentença - e não nesta -, sob pena de cerceamento de direito de defesa. c) Se a especificação de provas se deu após o despacho que inverteu o ônus da prova, proferida decisão revogando aquela, há de se possibilitar às partes nova especificação. [08]

Outrossim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sua súmula nº91, já pacificou o seu entendimento, dispondo que "A inversão do ônus da prova, prevista na legislação consumerista, não pode ser determinada na sentença."

Conclui-se, assim, que considerar a inversão do ônus da prova como matéria de instrução em nada prejudica o direito do consumidor e, ainda, garante o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a isonomia, que deve valer tanto para a parte hipossuficiente quanto para o fornecedor. Nesse diapasão, o momento processual adequado para a inversão é após o término da instrução, mas antes da prolação da sentença. Assim, se após a instrução houver dúvida por parte do magistrado, deverá ele determinar a inversão e, depois de findo o prazo para a sua produção, sentenciar, considerando as novas provas trazidas aos autos.


Referências bibliográficas

CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e Relevância. Cit., p.418 e ss;

DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Bahia: Editora Podivm, Volume 2, 2ªed., 2008, p.81 e 83

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. III. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.82-84;

LOPES, João Batista. A Prova no Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2002, p.24/62 (capítulos de 2 a 9). Material da 1ª aula da disciplina Prova, Sentença e Coisa Julgada, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual Civil- Anhanguera- UNIDERP/ REDE LFG;

MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da Convicção e Inversão do Ônus da Prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponível em: <http://www.marinoni.adv.br>, Acesso em: 19 dez 2009;

NERY, JR., Nelson. Aspectos do processo civil no Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.1, p.217;

WATANABE, Kazuo. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5 ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998, p.735.


Notas

  1. LOPES, João Batista. A Prova no Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2002, p.24/62 (capítulos de 2 a 9). Material da 1ª aula da disciplina Prova, Sentença e Coisa Julgada, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual Civil- Anhanguera- UNIDERP/ REDE LFG;
  2. NERY, JR., Nelson. Aspectos do processo civil no Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.1, p.217.
  3. REsp nº949.000- ES (2007/0105071-8), 3 Turma do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Rel. Humberto Gomes de Barros, DJ 23/06/2008;
  4. AgRg nos EDcl no Ag 977795 / PR, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Rel. Sidnei Beneti, DJ 23/09/2008;
  5. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Bahia: Editora Podivm, Vol. 2, 2 ed., 2008, p.81 e 83;
  6. MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da Convicção e Inversão do Ônus da Prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponível em: www.marinoni.adv.br. Acesso em: 19 dez 2009;
  7. Rec. Cível nº71001464932, 1 T. Recursal Cível do Tribunal de Justiça do RS, Rel. João Pedro Cavalli Junior, Julgado em 6/12/2007;
  8. Apelação Cível nº 1.0024.03.161613-9/001, 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de MG, Rel. Pedro Bernardes, Julgado em 26/02/2008.
Sobre os autores
Renata Miranda Goecks

advogada, formada pela Universidade de Passo Fundo, pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Rede de Ensino UNIDERP/LFG, IBDP e Anhanguera

Fábio Reck Alves

advogado, formado pela Universidade de Passo Fundo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOECKS, Renata Miranda; ALVES, Fábio Reck. Inversão do ônus da prova: técnica de julgamento ou matéria de instrução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2368, 25 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14087. Acesso em: 18 dez. 2024.

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