SUMÁRIO:1. O "fenômeno Jobim" - 2. A relação da atividade jurisdicional com a governabilidade na visão dos Ministros do STF - 3. Breve perfil dos Ministros - 4. Conclusão.
1. O "fenômeno Jobim"
É notável a oportunidade política proporcionada ao governo, nos dois mandatos do Presidente Lula, de nomear de modo legítimo nada menos que oito Ministros que atualmente compõem SETE lugares no Supremo Tribunal Federal - STF. Foram eles (do mais recente ao mais antigo): Min. Dias Toffoli (que recentemente foi nomeado para ocupar a vaga do saudoso Min. Menezes Direito), Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Cezar Peluso. Remanescem na Corte a Ministra Ellen Gracie e o Ministro Gilmar Mendes, que foram indicados pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Ministro Marco Aurélio (que foi indicado pelo Presidente Fernando Collor) e o Ministro Celso de Mello, indicado pelo Presidente José Sarney.
Objetivamos demonstrar o perfil dos Ministros da Suprema Corte brasileira, especialmente levando-se em consideração as respectivas orientações adotadas em torno da relação entre a governabilidade e o Poder Judiciário. Esta relação deve existir ou não? Caso sim, até que ponto? No sentido do comprometimento ou da independência?
Entendemos que tal relação deve limitar-se ao campo institucional. No ambiente decisório próprio do Judiciário ele não deve ter influência exclusiva ou preponderante, sob pena de inaceitáveis distorções, como adotar de modo ilegítimo na tomada da decisão judicial os critérios imanentes da decisão política ou até mesmo transformar o Judiciário numa espécie de "segunda instância" do governo.
Subjacente ao tema proposto verifica-se desde logo enorme imbricação do argumento oriundo do pragmatismo jurídico ou do conseqüencialismo e a preocupação crescente com a governabilidade no discurso dos Ministros. Ousamos dizer que esta tendência politicamente orientada no discurso dos Ministros (não no sentido partidário) [01] e, de modo geral, na colocação institucional da Corte diante dos demais ramos políticos e da sociedade civil parece ser herança deixada pelo Ministro Nelson Jobim. [02]
Neste sentido, o (então) Ministro (do STF) Nelson Jobim, em entrevista que concedeu ao jornal Valor Econômico, foi perguntado: "O senhor defende maior segurança jurídica e desenvolvimento econômico do país. O Judiciário deve julgar de olho nas contas públicas?" Em resposta, o Ministro explicou que:
"Quando só há uma interpretação possível, acabou a história. Mas quando há um leque de interpretações, por exemplo cinco, todas elas são justificáveis e são logicamente possíveis. Aí, deve haver outro critério para decidir. E esse outro critério é exatamente a conseqüência. Qual é a conseqüência, no meio social, da decisão A, B ou C? Você tem de avaliar, nesses casos muito pulverizados, as conseqüências. Você pode ter uma conseqüência no caso concreto eventualmente injusta, mas que no geral seja positiva. E é isso que eu chamo da responsabilidade do Judiciário das conseqüências de suas decisões" (grifamos). [03]
Parece que a chamada "responsabilidade do Judiciário das conseqüências de suas decisões" foi definitivamente introjetada pela maioria dos Ministros do STF, mesmo depois da saída do Ministro Jobim. Ele atribui à conseqüência o peso do critério determinante nas hipóteses em que há um leque de interpretações justificáveis e logicamente possíveis.
Estaríamos de pleno acordo se o Ministro tivesse expressado que tal critério seria determinante se – e unicamente quando – estivesse corroborando os argumentos jurídicos centrais do debate posto e fosse reconduzido ao texto constitucional (preferencialmente de maior peso axiológico). [04]
No seio acadêmico, em excelente dissertação, Lucas Borges de Carvalho contrapõe o argumento pragmático ou conseqüencialista, tal como defendido pelo Ministro Jobim na entrevista apontada e por Posner em sua obra, às lições de Dworkin. Ao final, conclui que estas são mais condizentes com a realidade brasileira, apesar de não terem sido prestigiadas na maior parte das decisões do STF sobre algumas das mais relevantes questões nacionais que julgaram no período compreendido entre 1990 e 2005. [05]
Além disso, Diego Werneck Arguelhes também produziu notável dissertação na qual propõe alguns balizamentos para o uso do argumento pragmático ou conseqüencialista na tomada da decisão judicial, inclusive partindo do ponto inicial proporcionado por reflexões a partir da orientação do Min. Jobim anteriormente assinalada. [06]
2. A relação da atividade jurisdicional com a governabilidade na visão dos Ministros do STF
Em interessante série de entrevistas realizadas em 2006 pela Revista Consultor Jurídico e jornal Estado de S. Paulo com os Ministros do STF, uma indagação é particularmente relevante e merece destaque neste momento. Referiu-se à relação entre o Poder Judiciário e a governabilidade. Vale dizer, se o STF é responsável também pela governabilidade e deve levá-la em conta (e, caso sim, em que medida) quando do julgamento de questões jurídicas relevantes.
Naquela ocasião, os Ministros (que então compunham a Corte) posicionaram-se de maneira sólida no sentido de que a preocupação com a governabilidade do país não deve orientar as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal. Todos colocaram a governabilidade em patamar inferior e, por conseguinte, subordinado aos elevados ditames constitucionais. Este sim, o verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade no exame das questões jurídicas de relevo nacional que lhes são submetidas.
Neste sentido, paradigmático foi o entendimento do Ministro Celso de Mello, hoje decano da Corte, que reconheceu a possível preocupação com a governabilidade. Embora tenha afirmado que ela deve ser levada em consideração nas decisões do STF, registrou que esta preocupação, contudo, situa-se abaixo do dever maior de preservar o que denominou de "intangibilidade" da Lei Maior. De fato, ele ressaltou que: "Atos de governo fundados em razões de pragmatismo político ou de mera conveniência administrativa não podem justificar, em hipótese alguma, a ruptura da ordem constitucional". [07]
Com efeito, desde muitos anos o Ministro mantém-se absolutamente hígido na sua convicção acerca da necessidade de preservar o núcleo intangível da Constituição. Quando cuida de matéria tributária, por exemplo, ele é suficientemente claro quando afirma que: "O fundamento do poder de tributar reside, pois, em essência, no dever jurídico de estrita fidelidade dos entes tributantes ao que dispõe, imperativamente, a Constituição da República". [08]
Na mesma linha de raciocínio, o Ministro Marco Aurélio ressaltou que privilegiar a governabilidade na atividade interpretativa peculiar do Judiciário implicaria em verdadeira inversão de valores que, de maneira perigosa, poderia levar a "autorizar quaisquer meios para justificar supostos fins". [09] Em outra ocasião, o Ministro deixou claro que: "Nós não julgamos preocupados com os cofres públicos, e sim com os fundamentos da Constituição". Enfim, aplicando o seu entendimento à seara tributária, ele explicou que: "O Supremo não é órgão governamental. Quando suspende um tributo, é porque ele era cobrado à margem da Constituição". [10]
Em outra entrevista concedida a Rui Nogueira, o Ministro Marco Aurélio foi indagado sobre esta questão e respondeu o seguinte:
"É explícito, acompanhando-se as sessões plenárias da corte (STF), que o Ministro Jobim, mesmo antes de chegar à presidência do Supremo, sempre evidenciou preocupação com a governabilidade. Já o sr. não tem um pingo de preocupação com isso. A taxa de politização não decorre desse perfil do Ministro Jobim, expressa com mais clareza com a chegada dele ao comando do STF?
São, realmente, óticas diametralmente opostas. Eu parto do pressuposto de que a governabilidade existe quando se observa, acima de tudo, a Constituição. Não podemos inverter valores, muito menos aqueles que são invertidos para potencializar questões momentâneas e isoladas, decorrentes, muitas vezes, da política governamental em curso. Há valores perenes, que são ditados pela Constituição Federal. O juiz que ocupa uma cadeira no Supremo não está engajado em nenhuma política governamental. A responsabilidade dele é de guarda da Constituição". [11]
Coerentemente os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que se notabilizam na prolação de tantos e constantes votos sempre rechaçando os abusos e arbítrios do Poder Público, especialmente quando a questão de fundo versa sobre matéria tributária, mantêm esta orientação de respeito à função precípua da Suprema Corte de guarda da Constituição da República. Daí porque a sua intangibilidade não pode ser abalada e a ordem constitucional rompida, mesmo que seja possível a preocupação com a governabilidade como um compromisso menor, como são os atos de governo fundados em razões de pragmatismo político ou de mera conveniência administrativa. Admitir o entendimento contrário implicaria, por conseguinte, na autorização do uso subversivo de quaisquer meios para a justificação de supostos fins. Além disso, tal subversão indesejada poderia transformar o STF em órgão governamental ou limitar a sua atuação como "segunda instância de governo". [12]
Igualmente, o Ministro Cezar Peluso reconheceu que as decisões do Supremo Tribunal Federal não devem ter como objeto específico levar em conta a governabilidade, embora certamente impliquem conseqüências graves no plano institucional. Reconheceu que deve haver uma avaliação dessas conseqüências e resultados quando do julgamento de questões de interesse nacional. Todavia, assim agindo, o Tribunal não toma qualquer posição política em relação à governabilidade e tampouco atua de maneira política no sentido de interferir nos outros Poderes. Neste sentido:
"A governabilidade não é um objeto especifico da competência do Supremo. Todas as decisões do Judiciário, em particular as decisões do Supremo, implicam conseqüências graves no plano institucional, sem dúvida nenhuma. Isto não significa que, quando avalia essas conseqüências, o Supremo esteja tomando alguma posição política em relação à governabilidade". [13]
De acordo com a sua compreensão, é ínsito à natureza própria da interpretação constitucional que a tomada da decisão judicial já contemple certa valoração dos resultados das posições (jurídicas) possíveis. Na medida em que ela promove uma reconstrução intelectual, implica necessariamente na avaliação dos resultados, que devem ser ponderados em função da realidade social. Esta atividade do STF, contudo, não deve ser entendida como uma atitude política, já que se submete aos parâmetros elevados da Lei Maior em torno dos quais deve se centralizar o debate colocado sob julgamento. [14]
O Ministro Carlos Britto explicitou que a preocupação do Supremo Tribunal Federal deve ser com a "governabilidade constitucional", isto é, como instrumento de governo a Constituição governa quem governa. Do contrário, se o Tribunal julgar de maneira cúmplice com a governabilidade, então escaparia de sua função típica e passaria a desenvolver função executiva. Neste sentido:
"O compromisso do Supremo é com a governabilidade constitucional. Isso porque a Constituição já é um instrumento de governo e o certo é que ela governa quem governa. O juiz deve decidir com os olhos postos na Constituição e na realidade palpitante da vida. Um olho na missa e outro no padre. Mas se passar a decidir acumpliciadamente com a governabilidade desse ou daquele chefe do Poder Executivo, desapegado das pautas constitucionais, aí passará a co-exercer função executiva. Não mais jurisdicional" (grifamos). [15]
A fórmula engendrada pelo Ministro é realmente cautelosa, já que reconhece a necessidade de que a decisão judicial seja tomada com os olhos postos na Constituição e na realidade da vida, ou seja, "um olho na missa e outro no padre". Isto não implica, todavia, no desapego às normas constitucionais, o que levaria à mera substituição da função jurisdicional pela executiva. É que a Constituição já é em si mesma o maior instrumento de governo que, por isso, "governa quem governa". Diante disso, o compromisso da Corte é com a chamada "governabilidade constitucional".
Igualmente categórico foi o Ministro Eros Grau, para quem o Supremo Tribunal Federal deve concentrar-se na sua missão constitucional (de guarda da Constituição). Daí porque é o governo que deve se adequar ao texto normativo, e não o STF flexibilizá-lo em proveito do governo (e de suas necessidades momentâneas ou permanentes). Portanto, o enquadramento do governo como adequado decorre deste elevado mister que incumbe à Suprema Corte. [16]
O Ministro Ricardo Lewandowski asseverou que o "Supremo não deve levar em conta a governabilidade no varejo". Aqui, evidencia-se a sua preocupação com o papel político do STF no sentido de preservar a estabilidade e o funcionamento das instituições, como órgão que ocupa o ápice da estrutura judiciária brasileira. [17]
Curiosamente, na entrevista concedida pelo Ministro Gilmar Mendes, a relação entre a governabilidade e o Judiciário não foi objeto de questionamento específico pelo repórter. [18] A Ministra Ellen Gracie e o Ministro Joaquim Barbosa não concederam entrevistas para esta série. Os Ministros Dias Toffoli (que sucedeu o saudoso Min. Menezes Direito) e Cármen Lúcia ainda não integravam a Corte naqueles dias.
Apenas para ilustrar com maior completude o ambiente encontrado pelos Ministros Dias Toffoli (e, antes dele, Menezes Direito) e Cármen Lúcia (que ingressaram por último), destacamos ainda a entrevista para essa série que foi concedida pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Ele reconheceu de maneira clara a formação de certa lógica de conseqüências na sua convicção, mas a situou em plano secundário. No seu entender, o papel do STF é "garantir princípios e regras de processo democrático que se puseram acima das maiorias conjunturais". [19]
Diante do exposto, a orientação explicitada pelos Ministros foi uníssona no sentido de que o valor mais importante na hermenêutica constitucional levada a efeito pela Suprema Corte é o respeito incondicional pelos ditames constitucionais. Nesse sentido, todos compartilharam do entendimento de que a superioridade constitucional se sobrepõe naturalmente às circunstâncias passageiras e momentâneas. Com isso, busca-se aflorar o lado do STF que se dedica a proteger os direitos dos cidadãos e, por conseguinte, leva ao maior aperfeiçoamento das instituições e das liberdades públicas. [20]
3. Breve perfil dos Ministros
Aduzimos breve perfil traçado sobre a orientação ou tendência dos votos de cada um dos Ministros que atualmente compõem o STF, agora limitada ao campo tributário: contribuinte em contraposição ao Fisco; e setor privado contraposto ao Poder Público. [21]
Os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio caracterizam-se pelas suas personalidades firmes e intransigentes contra os abusos do Poder Público, mostrando-se tendencialmente mais favoráveis ao contribuinte (em oposição ao Fisco) e ao setor privado (em contraposição ao Poder Público). Em seus julgamentos, caracterizam-se por serem doutrinadores, na medida em que buscam novas abordagens e soluções inovadoras com ênfase nas teses jurídicas. O Ministro Ricardo Lewandowski caracteriza-se pelo vigor de suas posições e nos seus julgamentos também se mostra mais favorável ao contribuinte de um lado, e ao Poder Público de outro. Na aplicação da lei, caracteriza-se em seus julgamentos por ser mais doutrinador e legalista (que privilegia o direito formal e a segurança jurídica). Esta também é a orientação predominante da Ministra Cármen Lúcia, que se tem caracterizado pelo perfil jurisprudencialista, valorizando a harmonia das soluções construídas no colegiado. [22]
Em patamar intermediário e que tem oscilado no trato de matéria tributária, destacam-se os Ministros Cezar Peluso e Carlos Britto. De fato, consoante a pesquisa realizada pelo Anuário da Justiça (nas três edições publicadas até o momento), o Ministro Cezar Peluso se mostra favorável ao contribuinte de um lado, e ao Poder Público do outro (caracterizado pelos votos que proferiu como legalista, doutrinador e jurisprudencialista). Por sua vez, no Anuário da Justiça 2009 o Ministro Carlos Britto se mostra favorável ao Fisco de um lado e ao setor privado do outro. Caracteriza-se por ser mais doutrinador na prolação dos seus votos. No Anuário da Justiça 2008 o Ministro mostrou-se novamente mais favorável ao Fisco e consta equivalência de metade de suas decisões favoráveis ao Poder Público e metade favorável ao setor privado, caracterizando-se essencialmente como doutrinador e jurisprudencialista. No Anuário da Justiça 2007 ele mostrou-se mais favorável ao contribuinte e ao Poder Público (aplicando a lei de modo legalista). [23]
A Ministra Ellen Gracie e os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Eros Grau possuem perfis nitidamente conservadores em matéria tributária, geralmente alinhando-se aos interesses governamentais, já que se mostram francamente mais favoráveis ao Fisco e ao Poder Público. Em seus julgamentos, enquanto a Ministra Ellen Gracie e o Ministro Joaquim Barbosa caracterizam-se por serem legalistas nos seus votos, o Ministro Gilmar Mendes caracteriza-se por ter um perfil mais doutrinador e o Min. Eros Grau tem variado nas suas decisões como jurisprudencialista, doutrinador e legalista. [24]
4. Conclusão
Articulando as entrevistas dos Ministros que foram destacadas anteriormente a respeito do comprometimento ou da independência do Poder Judiciário frente à governabilidade com a pesquisa sobre as principais orientações ou tendências de voto (limitadas principalmente ao tema tributário), verificamos que, ao menos em tese todos são uníssonos no sentido de diminuir eventual relação frente à necessária supremacia constitucional que deve imperar nas decisões do Judiciário de modo geral e do STF de maneira particular.
Sabemos que as eventuais oscilações são desejadas no desenvolvimento do pensamento humano. O pensamento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal acerca de certa matéria tributária não deve fugir de tal regra. É curioso perceber, no entanto, que no plano prático, por vezes, a maioria dos Ministros parece se deixar influenciar por argumentos pragmáticos ou conseqüencialistas que, em última instância, se prestam predominante ou exclusivamente a sustentar a (des)necessária ingerência de noções sobre a governabilidade (como a preocupação com as contas públicas) no julgamento de relevantes questões jurídicas de alcance nacional. [25]
Cabe acompanhar como se movimentará o Supremo Tribunal Federal nesse particular aspecto de sua ampla atividade judicante nesse ano (eleitoral) de 2010: quando julgar matéria tributária será ativista e se colocará em posição de independência ou adotará perfil mais contido colocando-se em posição de comprometimento com a governabilidade?