Inicialmente, no plano teórico, observa-se que o direito ambiental está hoje voltado tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente stricto sensu; ora, a junção progressiva desses dois ramos do direito é a implementação jurídica de uma filosofia do homem moldado pelo ecossistema que está construindo, numa sucessão sem fim de causas e efeitos.
Marie-Angèle Hermitte [01]
1. Introdução
O princípio da precaução desenvolveu-se inicialmente a partir de sua adoção e aplicação pelo direito alemão desde o começo da década de 1980. Gradativamente passou a direcionar e ser adotado em diversas declarações e tratados internacionais.
A finalidade do princípio da precaução é a proteção ambiental através da cautela. Sua definição consiste em aplicar medidas precautórias em casos nos quais haja risco de significativos impactos ambientais negativos, mesmo em situações nas quais exista o desconhecimento científico acerca da sua probabilidade de ocorrência. Sua aplicação advém, assim, da conjugação da incerteza científica somada à possibilidade de riscos ambientais graves.
Como afirmam Freestone e Hey, o princípio da precaução é um dos princípios norteadores de um grande número de instrumentos ambientais tanto de caráter global quanto regionais, bem como suas principais diretrizes são cada vez mais utilizadas em regimes nacionais e internacionais [02]. Do mesmo modo, asseveram que o princípio "... tem sido tão amplamente aceito em instrumentos internacionais e, de forma crescente, em nacionais, que poucos, atualmente, tentariam negar sua importância" [03].
Dentre os tratados e declarações internacionais que reconhecem o princípio da precaução, destacam-se: Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Exaurem a Camada de Ozônio (1987), Declaração Ministerial de Bergen sobre Desenvolvimento Sustentável da Região da Comunidade Européia (1990), Convenção sobre Cursos de Água Transfronteiriços (1992), Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas (1992), Convenção-Quadro sobre a Diversidade Biológica (1992), Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e o Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios (1992), Convenção de Paris para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico (1992), Convenção de Helsinque sobre a Proteção do Meio Marinho, na Zona do Mar Báltico (1992), Carta Européia de Energia (1994), Tratado de Haia sobre a Conservação sobre Pássaros Aquáticos Migratórios Africanos (1995), Protocolo de Biossegurança (2000), Tratado de Maastricht da Comunidade Européia 31 1141247 (1992), Convenção de Sofia sobre a Cooperação para a Proteção Sustentável do Rio Danúbio (1994), Convenção de Roterdã sobre a Proteção do rio Reno (1998), entre outros.
Diante da dimensão presente que o princípio da precaução assumiu na ordem jurídica internacional como princípio de política ambiental, cabe perquirir como tem sido feita a sua implementação ou, como definem Freestone e Hey, analisar a "segunda geração" de estudos e pesquisas sobre o tema, baseados nos desafios decorrentes dessa implementação. Trata-se, como explicam, de demonstrar que "o desafio é modificar as instituições e os mecanismos técnicos. É um desafio para nosso modo de ver o mundo e para nosso entendimento sobre o papel da ciência e o ônus da prova" [04].
Dessa forma, ao contrário da primeira fase do desenvolvimento do princípio da precaução, caracterizada por estudos e pesquisas relacionados à sua definição e evolução, este artigo tem como foco de atenção a chamada "segunda geração" de estudos sobre o princípio. Buscar-se-á, assim, analisar, tanto através de alguns tratados internacionais, quanto da jurisprudência e posicionamentos de diferentes organismos e países, o modo pelo qual o princípio da precaução tem sido aplicado e em que estágio de desenvolvimento sua implementação se encontra.
2. A implementação do princípio da precaução na ordem internacional
Expõe Platiau que "o princípio da precaução foi uma das mais ousadas inovações jurídicas do século XX, mas a sua efetividade permanece comprometida em função das diferentes percepções que a sociedade civil global, a comunidade científica, os juristas e os tomadores de decisão têm sobre o seu conteúdo e a sua aplicação" [05].
De um lado está o surgimento, o desenvolvimento e a inserção do princípio da precaução no direito ambiental internacional. De outro, o momento da sua implementação. Neste, com muito mais evidência se verifica a força dos interesses envolvidos, tornando-se explícitas as diferentes posturas dos diversos atores internacionais em relação à aplicação efetiva da proteção ambiental através da precaução.
Do confronto entre o princípio da precaução teoricamente considerado e a sua aplicação efetiva, surgem as dificuldades e diferenças que ensejam os desafios postos para a sua implementação.
Os desafios para a compreensão e criação de consenso internacional surgem a partir dos vários sentidos e interpretações atribuídos ao princípio na doutrina e jurisprudência internacionais, as quais não chegaram ainda a concluir qual o estatuto jurídico do princípio. Além disso, a variedade de definições dadas ao princípio nas várias convenções internacionais que o adotaram, bem como a multiplicidade de termos utilizados para lhe conceituar, além da grande e diversificada variedade de aplicações que se lhe tentam dar, aumentam a complexidade do tema.
Igualmente, a existência no contexto de regulação internacional de um paradigma dominante econômico e tecnológico, não ambiental [06], acrescenta mais um fator relevante para análise acerca da efetiva implementação do princípio da precaução.
Nesse contexto, o princípio da precaução tem uma função muito difícil, voltada a servir como um instrumento conciliador entre o direito ambiental internacional e o direito econômico internacional, ramos com interesses bastante distintos e inúmeras vezes antagônicos [07].
Assim, a fim de demonstrar os desafios descritos como limitantes à implementação do princípio da precaução, serão utilizados casos concretos de sua aplicação como meio de exemplificar a sua prática no âmbito internacional.
Previamente, porém, convém destacar a evolução do princípio da precaução no contexto jurídico internacional para se entender o valor que ele assume atualmente.
2.1. Estatuto jurídico do princípio da precaução
Ressalta-se que, para compreender o status jurídico do princípio da precaução, faz-se necessário verificar o seu valor diante das fontes tradicionais do direito internacional. Nesse sentido, Sadeleer analisa quatro etapas do desenvolvimento do princípio no direito internacional, descritas por quatro estágios, isto é, o princípio como regra não-cogente, como direito consagrado em convenções internacionais, como direito internacional consuetudinário e como princípio geral de direito internacional [08].
Inicialmente, anota-se que o princípio da precaução foi inserido no âmbito internacional através de diversas declarações internacionais relativas ao meio ambiente. No entanto, apesar da grande importância dessas declarações para o desenvolvimento e consagração internacional do princípio da precaução, convém distinguir-se que os princípios enunciados nesses instrumentos não são cogentes e não substituem as fontes tradicionais do direito internacional. Por isso, tais regras não podem obrigar os seus signatários.
A despeito disso, o fortalecimento do princípio da precaução prosseguiu e continua a ganhar força por sua repetição em declarações relativas à proteção ambiental.
Do mesmo modo, o princípio da precaução se consagrou também por sua adoção em diversas convenções internacionais. Através delas o princípio galgou um novo e diferente passo na ordem jurídica. Vários acordos bilaterais e multilaterais relacionados ao meio ambiente o inscrevem em seus textos desde o início da década de 1980, particularmente acordos sobre temas como a poluição atmosférica e marinha, a pesca e a biossegurança.
Entretanto, como não há uma homogeneidade na forma como o princípio da precaução foi enunciado nas diversas convenções que o adotaram, torna-se difícil verificar sua validade como regra de direito positivo convencional, em especial porque apenas pode ser considerado como tal quando é afirmado pelo próprio dispositivo da convenção, o que não aconteceu em muitos casos [09].
Além disso, é preciso observar se as convenções que o reconheceram prevêem expressamente normas de execução do princípio que garantam autonomia para sua aplicação. Caso o princípio da precaução não determine ações específicas, apesar de estar incluído na parte operativa do texto internacional e ter caráter de padrão legal, será considerado como princípio geral [10].
Ademais, diante da consagração do princípio da precaução em muitas convenções internacionais, questiona-se se o princípio pode ser considerado um direito internacional consuetudinário. Quanto a este aspecto, grande é o debate entre os juristas internacionais. Entre aqueles que entendem que o princípio da precaução ainda não constitui um costume internacional, destaca-se Varella e Platiau, para os quais "o princípio da precaução não é aceito como parte do direito costumeiro em razão de suas diversas interpretações e dos efeitos variados segundo suas aplicações recentes" [11]. Ao contrário, assegura Sadeleer que "conforme a maioria dos autores, não há dúvida de que o princípio da precaução reveste desde já o estatuto da regra internacional costumeira, mesmo que essa interpretação permaneça ainda controversa, no âmbito da doutrina" [12], posicionando-se ele próprio:
(...) nos permitem afirmar que a prática estatal expressa, por sua repetição, a convicção da maioria dos membros da comunidade internacional, de que aceitam que o princípio da precaução é um princípio de direito costumeiro, ao aplicarem as medidas de precaução em diferentes domínios, como a poluição atmosférica, a gestão dos recursos pesqueiros e a conservação da biodiversidade. A repetição desse princípio em cinqüenta protocolos e convenções, no espaço de uma dezena de anos, constitui inegavelmente a prova da consolidação de uma prática constante, imutável e efetiva, em um nível universal e regional, num momento em que os riscos se revelam graves ou irreversíveis [13].
Outros entendem que o debate acerca do princípio da precaução ser ou não direito costumeiro internacional não é mais relevante, vez que o princípio, para a maioria das intenções e propósitos, já direciona muitos instrumentos ambientais, bem como é cada vez mais utilizado internacional e nacionalmente [14].
Quanto à aceitação do princípio da precaução como princípio geral do direito reconhecido pelas nações civilizadas, não há nenhuma decisão da Corte Internacional de Justiça que faça referência expressa ao princípio da precaução como uma fonte formal do direito internacional. Dessa maneira, o princípio ainda não é reconhecido como parte dessa forma de fonte normativa.
2.2. A adoção do princípio da precaução por tratados internacionais
O reconhecimento da importância do princípio da precaução no âmbito internacional foi sendo esboçado a partir da década de 1980, e ao longo desse período até os dias atuais fez-se materializar por sua inclusão em diversos tratados e convenções internacionais, bilaterais e multilaterais, principalmente a partir de 1992, quando foi consagrado pela Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
O princípio da precaução foi adotado na redação final da maioria dos acordos internacionais ambientais posteriores a 1992. Apesar disso, esses acordos se distinguem na forma como definem e utilizam o princípio [15]. Isto pode ser verificado através da comparação entre algumas convenções, todas com a mesma finalidade, evitar a degradação ambiental também pela utilização do princípio da precaução, porém com diferenças quanto à definição de seus elementos constitutivos.
Para tanto, utilizar-se-á o enunciado sobre o princípio da precaução adotado em duas convenções emblemáticas e de grande importância para o direito ambiental internacional, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e a Convenção-Quadro sobre a Diversidade Biológica, ambas de 1992.
Dispõe a Convenção-Quadro sobre a Diversidade Biológica em seu preâmbulo:
Observando também que quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça. .. [16]. (Grifou-se).
Já a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas conceitua o princípio em seu artigo 3º, a seguir transcrito:
As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível [17]. (Grifou-se).
Como pode ser visto, algumas diferenças existem entre os dois textos. Como destacado, a Convenção sobre a Biodiversidade inscreve o princípio da precaução em seu preâmbulo, ao contrário da Convenção sobre o Clima, que o adota como dispositivo. Como conseqüência disso, o princípio da precaução na Convenção da Biodiversidade funciona como um guia, um direcionamento, para a interpretação do tratado como um todo, ao contrário do dispositivo indicado na Convenção do Clima, que constitui uma obrigação jurídica.
Outrossim, as citadas convenções divergem quanto à gravidade do risco exigido para deflagrar a aplicação do princípio da precaução. Na Convenção sobre a Biodiversidade basta que a ameaça à diversidade biológica seja de sua sensível redução ou perda, enquanto a Convenção sobre o Clima aumenta o grau de exigência, impondo a presença de ameaças de danos sérios ou irreversíveis.
Além disso, enquanto a Convenção sobre a Biodiversidade nada menciona quanto aos custos das medidas a serem adotadas para a precaução, a Convenção do Clima preconiza que as mesmas devem ser eficazes em função dos custos e visar o menor custo possível.
A exigência feita pela Convenção do Clima de ameaças de danos sérios ou irreversíveis, somada ao critério de proporcionalidade de custos das medidas a serem implementadas, caracterizam, segundo Nardy, uma versão atenuada do princípio da precaução [18].
Diferentes abordagens sobre o princípio da precaução estão presentes nas diversas convenções internacionais que o reconhecem, cada uma delas versando à sua maneira, de forma que há grande variedade das definições e termos utilizados para descrevê-lo e da força que lhe é atribuída. Nesses tratados, ora o princípio aparece como uma abordagem precautória, ora como um princípio, ora figura no preâmbulo do acordo, ora em seu dispositivo, neste caso ainda divergindo quanto a ser uma obrigação geral ou específica [19] [20].
Apesar da existência de toda essa variedade, gerada principalmente pela complexidade dos aspectos que o princípio da precaução aborda, em especial da incerteza científica e da dimensão dos interesses envolvidos na sua aplicação, o princípio é válido. Ele cumpre sua função de questionar as práticas atuais e sua eficácia para a proteção ambiental, bem como de guiar a adoção de políticas ambientais com tal fim e impulsionar um número cada vez maior de medidas para a sua implementação.
Portanto, considerando-se que o princípio da precaução é relativamente recente e que, não obstante o sucesso alcançado em seu reconhecimento mundial, ainda está em construção, o fato de existirem diversas definições conceituais não impede a sua consagração como um princípio legal [21].
2.3. Implementação do princípio da precaução por organismos internacionais, EUA e jurisprudência internacional
As diversas organizações internacionais existentes abordam de forma distinta o princípio da precaução, o que demonstra a concomitância e também os contrastes envolvidos na análise do princípio por diferentes espaços de resolução de conflitos, bem como o quanto elementos políticos estão intrinsecamente relacionados a essa análise e podem influenciar a avaliação do princípio da precaução [22].
Parte-se, assim, da análise da interpretação e dos posicionamentos tomados pelos vários organismos internacionais para se buscar compreender o sentido e a extensão da aplicabilidade do princípio da precaução.
Embora as convenções internacionais caracterizem o princípio da precaução como aquele que dispensaria a certeza científica na aplicação de medidas de cautela contra danos graves ao meio ambiente, a sua implementação esbarra no caráter vinculante das decisões judiciais proferidas pelos órgãos de jurisdição internacional, competentes para confirmar a sua aplicabilidade nos casos concretos.
O princípio da precaução já foi invocado várias vezes diante de diferentes órgãos internacionais de resolução de conflitos. Entretanto, a maioria das decisões proferidas tem demonstrado muita reserva quanto à aplicação direta e autônoma do princípio [23].
Por outro lado, a permanente ambigüidade existente entre a oferta de recursos naturais, objeto da atividade comercial entre os povos, e o vital interesse da era moderna na preservação da fonte dessas riquezas (o meio ambiente), faz limitar a sedimentação e eficácia do princípio da precaução, como um princípio geral de direito internacional.
Os diversos estudos já realizados sobre a aplicação do referido princípio de direito ambiental no âmbito internacional, diretamente ligado às relações comerciais, recaem os olhos para a força das regras do "capital" em contraponto às regras sociais e ambientais, e chegam a demonstrar que as decisões internacionais ainda não reconhecem o princípio da precaução como fonte geral de direito, dando a entender serem recalcitrantes as tentativas de elevá-lo a tal patamar, ante os argumentos de que, em suma, as regras comerciais existentes ainda são um mal necessário ao desenvolvimento da humanidade e à distribuição de riqueza.
Inobstante tal constatação, inequívoco afirmar que do mesmo modo como o caminho percorrido pela história da humanidade determina as suas "épocas ou períodos", com suas regras de conduta, assim também a própria natureza o faz. Portanto, diante dos seus sinais, certamente estar-se a poucos passos de se testemunhar a prática internacional do princípio da precaução ambiental.
As regras ambientais atuais enfrentadas pelos órgãos internacionais estão a merecer melhor aplicação, como outras regras de direito internacional público, mas, por serem ainda relativamente novas e, por vezes, consideradas barreiras econômicas, aquelas sofrem ainda mais quando tentam se tornar eficazes vinculando-se aos novos princípios de direito ambiental.
2.3.1. A Organização Mundial do Comércio
Vejamos, a guisa de ilustração, como reagiu a Organização Mundial do Comércio (OMC), uma das mais importantes organizações internacionais atualmente, frente às questões em que o reconhecimento da autonomia do princípio da precaução foi colocado em exame.
Vale lembrar, inicialmente, que no âmbito da OMC, a problemática da implementação do princípio da precaução se originou com as controvérsias cujo objeto dizia respeito à segurança sanitária, precisamente no Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS).
Assim, a evolução daquele conceito que foi sendo inserido nos textos que regulavam as transações comerciais entre as partes internacionais acabou por ser reconhecido pela OMC através dos artigos 3.3 e 5.7 [24] do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPC).
Esse acordo desenvolveu-se, segundo estudos, "em torno da idéia de prova ou de justificativa científica" [25], mas apresentando também a "fórmula" do já utilizado regime de exceções, criado pelo Acordo Geral de Tarifas de Comércio – GATT (artigos XX e XXI) e que já reconhecia outras importantes preocupações, não eminentemente comerciais, nas relações entre os seus signatários, e que por isso dava a opção a essas partes de tomarem medidas de proteção, desde que cientificamente justificadas.
Citam-se os artigos 3.3 e 5.7 do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPC), pois os mesmos foram invocados, por exemplo, na reclamação realizada pela Comunidade Européia no caso da carne com hormônios, oriunda dos Estados Unidos e Canadá, submetida a questão à OMC [26], inicialmente junto ao Grupo Especial e, finalmente, ao seu Órgão de Apelação.
Também se destaca que o princípio da precaução foi abordado em mais duas ocasiões perante a OMC, uma em um caso envolvendo medidas que afetavam a importação do salmão [27], invocado pela Austrália, e outro pelo Japão, referente a medidas que afetavam os produtos agrícolas [28].
No caso dos hormônios, a base de fundamentação utilizada pela Comunidade Européia foi de que a fonte de direito seria consuetudinária, invocando assim aqueles artigos como precursores do reconhecimento do princípio da precaução.
Não obstante a argumentação da Comunidade Européia ao se basear no princípio da precaução, a OMC preferiu não reconhecê-lo como princípio geral de direito, numa situação em que este pudesse, então, sobrepor-se ao texto do acordo, abstendo-se ao final de reconhecer a sua autonomia, e preferindo decidir-se pela materialidade do texto.
A interpretação do princípio da precaução, nesse caso, como em outros, tem passado, para os atores internacionais, como um norte de comportamentos em matéria ambiental, mas ainda afastada da possibilidade de materializar-se como norma reguladora.
Se por um lado houve evolução nas relações ambientais internacionais entre os Estados, o comércio continua a utilizar-se dos antigos mecanismos protecionistas, agora com a possibilidade de invocar à sua conveniência comercial, e não ambiental, o princípio da precaução. Isso certamente tem pesado nas decisões dos órgãos competentes.
Ademais, para que não restem dúvidas acerca desse ponto de vista, vejamos ainda algumas decisões já emanadas da Corte Internacional de Justiça, somando-as ao corolário do direito ambiental internacional e do princípio da precaução como fonte daquele.
2.3.2. A Corte Internacional de Justiça
Em duas ocasiões o princípio da precaução foi invocado perante a Corte Internacional de Justiça, a qual, em ambas, recusou-se a estatuir sobre seu fundamento [29].
A primeira delas refere-se aos testes nucleares no atol de Mururoa.
Em 1995 a França realizou no atol de Mururoa, um conjunto marítimo situado no Oceano Pacífico, na região da Polinésia Francesa, testes nucleares subterrâneos, e a Nova Zelândia provocou e levou o caso a julgamento perante a Corte Internacional de Justiça. Esta, no entanto, manifestou-se favoravelmente à França.
A nova Zelândia sustentara que os testes realizados pela França introduziriam no meio marinho material radioativo, e que por isso deveriam ser apresentadas provas científicas cabais de que os referidos testes não ocasionariam danos irreversíveis ao meio ambiente, respeitando-se assim o princípio da precaução e, particularmente, a distribuição antecipada do ônus da prova.
Entretanto, a maioria da Corte, sem adentrar no mérito da aplicação do princípio da precaução, negou o pedido da Nova Zelândia. Apesar disso, embora a Corte tenha evitado o mérito, não ficou o princípio da precaução quedado in albis, já que três dos juízes que a compunham o exortaram nos seus respectivos votos.
A segunda ocasião na qual a Corte Internacional de Justiça pode avaliar a aplicação do princípio da precaução ocorreu no caso Gabcíkovo-Nagymaros, cujo veredicto foi dado em 1997. A questão foi levantada pela Hungria, que sustentou o princípio da precaução e a proteção do meio ambiente a fim de se eximir de obrigações decorrentes de um acordo bilateral com a Eslováquia para a construção de um sistema de barragens. Alegavam que as normas de direito internacional, em especial o princípio da precaução, impostas após o acordo entre as partes, impossibilitavam a execução do tratado.
A Corte não se pronunciou diretamente sobre a aplicação do princípio da precaução. Optou por julgar o caso a partir da teoria da responsabilidade civil [30], sem permitir que o princípio da precaução fosse incorporado à doutrina do estado de necessidade, apesar de haver citado várias convenções internacionais aplicáveis ao caso concreto [31].
Para Sadeleer, a reserva por parte da Corte de se manifestar expressamente sobre princípios gerais de direito como fonte formal do direito internacional advém do "fato de seu acionamento ser tributário do consentimento dos Estados e de que, enunciando de maneira demasiado audaciosa os novos princípios, colocariam em risco sua credibilidade" [32], asseverando que tal consagração desagradaria os interesses de certas pessoas.
2.3.3. A Corte de Justiça das Comunidades Européias
Diversos casos relativos à aplicação do princípio da precaução já foram levados à jurisdição da Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE), entre eles o caso da vaca louca, gerado pelo embargo francês à carne bovina inglesa, e o caso Mondiet [33], no qual se discutiu um regulamento do Conselho da Europa acerca do limite de comprimento de certas redes de pesca.
Na questão citada sobre as redes, a Corte deu ganho de causa ao Conselho da Europa, fortalecendo seu poder discricionário de aplicação do princípio da precaução, não apenas porque o reconheceu no caso concreto, bem como porque não impôs ao Conselho posteriores justificativas para a manutenção de medidas restritivas.
Conclui-se que a Corte de Justiça das Comunidades Européias tem privilegiado a adoção do princípio da precaução, visto que o admite nos casos de incerteza científica associada a questões de preservação ambiental.
2.3.4. Tribunal Internacional para o Direito do Mar
O Tribunal Internacional para o Direito do Mar tem reconhecido em suas decisões o princípio da precaução. Dentre elas pode-se citar o caso Atum, ocorrido em 1999, no qual argumentou a necessidade de cautela e precaução para evitar danos sérios aos estoques de atum, bem como a presença de incerteza científica no caso e a urgência da adoção de medidas de preservação [34].
No caso da usina MOX, julgado em 2001, a Irlanda utilizou o argumento da precaução contra o governo do Reino Unido para contestar a autorização de despejo de lixo nuclear na costa irlandesa a ser feito pela referida usina. A Irlanda exigia que o Reino Unido demonstrasse que a atividade não causaria danos ambientais e à saúde humana.
Os argumentos que sustentavam a posição da Irlanda eram basicamente três: pesquisas deveriam ter sido feitas em áreas não costeiras e que, portanto, não fossem transfronteiriças, evitando não só a poluição do meio ambiente, como também danos a terceiros; não havia estudo de impacto ambiental suficiente; e que a inversão do ônus da prova faz parte do princípio da precaução invocado, e, por isso, deveria ser aplicado a fim de que a prova de ausência de risco ambiental recaísse sobre os pretensos poluidores.
A despeito do caráter de precaução e prudência sustentado na decisão do Tribunal, o qual estabeleceu que as partes cooperassem e adotassem medidas para impedir a degradação ambiental marinha, deixou de determinar a suspensão das atividades da usina.
Ressalta-se, portanto, a presença de dois pontos de vista a serem considerados nesses casos de não reconhecimento do princípio da precaução como fonte geral de direito: primeiro, do ponto de vista ambiental, de que ainda não se está dando prioridade internacional necessária à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, em prol de certas formalidades; segundo, do ponto de vista comercial, não se está creditando ao Estado que invoca determinada medida baseada no princípio da precaução a seriedade necessária para distingui-la de uma medida protecionista comercial.
2.3.5. Estados Unidos da América
Os EUA manifestam-se de forma bastante antagônica em relação ao princípio da precaução. Sua aceitação ou descrédito dependem dos interesses americanos em cada questão levantada, influenciados pela fonte econômica ou ambiental. Enquanto na ordem internacional negam o reconhecimento do princípio em determinados pontos, como no caso dos hormônios na OMC, em outros são seus defensores, a exemplo das negociações do regime de mudanças climáticas [35]. Por outro lado, na ordem interna a aceitação do princípio é forte e a tendência à sua aplicação crescente.
Apesar de existirem também divergências no âmbito nacional quanto à extensão da aplicabilidade do princípio da precaução, um caso bastante ilustrativo sobre sua utilização advém de suas Cortes. Trata-se de decisão da Corte de Apelação mantida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Tennessee Valley Authorithy v. Hill, segundo a qual se optou por defender o peixe snail darter, ameaçado de extinção, interrompendo-se a construção de uma hidrelétrica no Pequeno Rio Tennesse, quando esta já estava quase 80% concluída [36].
2.3.6. Jurisprudências diversas e adoção do princípio da precaução pelo direito internacional
Vários Estados fora da União Européia inseriram o princípio da precaução dentro de seu direito nacional [37], a exemplo da Lei Colombiana n. 99, de 1993, que o considerou como um princípio constitucional. Ao contrário de países como o Reino Unido, na tradição do direito continental, os tribunais estão mais acostumados ao desenvolvimento e à aplicação de direitos de grande alcance [38]. Cita-se, por exemplo, uma decisão Filipina (Minors Oposa vs Secretary of the Department of Environment and Natural Resources) que levantou o princípio dos direitos das futuras gerações. Também na Colômbia, Costa Rica, Argentina, Chile, Equador, Peru, Índia e Paquistão decisões importantes foram dadas sobre o direito a um meio ambiente sadio [39].
Outrossim, Freestone e Hey salientam que nos países do common law os legisladores procuram evitar interpretações amplas do princípio [40]. Ilustra-se esta afirmação com um caso na Inglaterra em que se requisitou à Corte Suprema que embargasse a construção de um cabo de energia suspenso em uma aérea residencial, sob a alegação da aplicação do princípio da precaução, tendo em vista o risco ainda incerto de os cabos causassem câncer nas crianças. A Corte, entretanto, apesar de reconhecer que o direito da União Européia era vinculante para o Reino Unido e que o Tratado de Maastricht continha o princípio da precaução, preferiu não adotá-lo [41].
Ao contrário, na Austrália, no caso Leach v National Parks and Wildlife Service, em 1994, adotou-se o princípio da precaução para impedir a aprovação de um projeto de uma estrada que passava sobre o habitat de uma espécie de sapos ameaçados de extinção e que poderia lhes causar riscos [42]. Por outro lado, em um caso no Paquistão, os tribunais locais exigiram, antes de autorizar a construção de uma linha de transmissão de alta voltagem que envolvia riscos à saúde humana, a formação de uma comissão para avaliar com maior profundidade os riscos relevantes [43].
Do mesmo modo, a Itália a Suíça, diante da incerteza científica quanto aos riscos à saúde humana gerados pelas emissões de radiofreqüência, adotaram medidas precautórias caracterizadas pela restrição da instalação de estações de base de celulares por emitirem ondas de rádio superiores a determinado limite [44].
2.5. Medidas de implementação do princípio da precaução
Numa tentativa de gerar equilíbrio entre os interesses envolvidos, introduziu-se na definição do princípio da precaução a adoção de medidas economicamente viáveis, como está exposto, por exemplo, no princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Tal noção busca funcionar como um fator de equilíbrio entre as partes envolvidas. Acontece que para entender qual o sentido dessa noção é preciso analisar a natureza das medidas a serem implementadas. Desse modo, questiona-se se o curso das ações a serem adotadas deve enfocar ações imediatas que busquem evitar os riscos ou ações para enfrentar os seus efeitos, na medida em que os danos forem ocorrendo [45].
Existe divergência entre os países quanto à natureza das medidas a serem aplicadas. Expõe-se como exemplo a questão das alterações climáticas do planeta, na qual os EUA, através do governo Bush, ao contrário da maior parte dos países, que têm como meta impedir que as mudanças antropogênicas do clima ocorram, declararam que adotarão medidas economicamente viáveis apenas para reduzir os possíveis efeitos negativos verificados, não procurando exercer medidas para cessar a ameaça identificada de impactos catastróficos em alguns locais de seu território decorrentes de alterações climáticas [46].
Ainda quanto a medidas, convém mencionar a utilização presente de diversos procedimentos para a implementação do princípio da precaução. Dentre eles destaca-se alguns: a manutenção de um corpo técnico permanente para fornecer informações científicas e tecnológicas, estabelecido pela Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas [47]; o desenvolvimento pela Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártida de limites precautórios como meio de garantir que a cadeia alimentar não seja danificada pelo aumento da pesca [48]; a autorização de decisão por dois terços dos Estados-partes em caso de falta de consenso sobre a emissão de substâncias que exaurem a camada de ozônio, fixado pelo Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Exaurem a Camada de Ozônio (1987) [49]; Procedimento de Justificação Prévia, exigido pela Convenção de Oslo [50]; reconhecimento de uma listagem precautória feito na Resolução das partes da Convenção CITES [51]; exigências determinadas pelo órgão de licença ou planejamento sobre o uso da Melhor Tecnologia Disponível (MTD) ou Melhor Prática Ambiental (MPA), presentes nos novos avanços industriais para implementar tecnologias limpas [52]; o fornecimento de subsídios às empresas que necessitam adotar medidas onerosas para o controle da poluição atmosférica, determinado pelo Clean Air Act, na Holanda; exigência de fundos de compensação a serem pagos pelos empreendedores como garantia para eventuais custos potenciais de reconstituição em caso danos futuros não-previstos, adotado pela Autoridade Marinha do Parque da Grande Barreira de Corais na Austrália [53].
Esses procedimentos demonstram a tentativa e mesmo efetiva aplicação da precaução na prática, adaptada às mais distintas situações concretas, todas com o objetivo de proteção ambiental, e, em alguns casos, como na exigência de fundos de compensação dos empreendedores, demonstram a compatibilização entre interesses ambientais e econômicos.