O DIREITO DOS POVOS QUILOMBOLAS - A ADI 3.239
Passemos, pois, já de posse da discussão teórica anteriormente realizada, a enfrentar uma questão de nossa realidade social, cultural e jurídica. Comecemos pela análise da ADI 3.239.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade cumulada com pedido de concessão de medida cautelar inaudita altera pars – ADI 3.239 – foi proposta pelo Partido da Frente Liberal, PFL, partido político brasileiro, em 24 de junho de 2003. Conforme se verifica na petição inicial, a citada ADI busca a manifestação do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade do Decreto n° 4.887/2003.
Após indicar o ato normativo que busca impugnar e sua legitimidade, o autor apresenta quatro teses como embasamento de seu pedido. São elas: o "uso indevido da via regulamentar", a "desapropriação inconstitucional", a "configuração inconstitucional dos titulares do direito à propriedade definitiva" e, por fim a "configuração inconstitucional das terras em que se localizavam quilombos".
Inicialmente, o primeiro argumento apresentado pelo autor trata do uso indevido da via regulamentar. Neste, o Presidente da República ao editar o Decreto 4.887/2003 estaria invadindo esfera reservada à lei, uma vez que o citado decreto estaria regulando direitos e deveres entre particulares e a administração pública. Ademais, estaria onerando o erário público ao definir a indenização aos proprietários de terras onde se localizam os quilombos.
A leitura do art. 84 da Constituição da República Federativa do Brasil, artigo esse que delimita a competência privativa do Presidente da República, deve ser cuidadosa em seus incisos IV e VI:
Art. 84 – Compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
IV – sancionar, publicar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
[...]
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a)organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar em aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b)extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
A análise desses dois incisos desconstrói o argumento apresentado pelo autor. Segundo o inciso IV, os decretos cabem para desdobrar as leis, explicitar a lei diante de condições fáticas específica para a fiel execução das leis. Nesse sentido, percebe-se a formação de duas unidades normativas: originariamente, existiriam as leis e, posteriormente, os decretos, como meio para a fiel execução das leis. Como bem apresenta o autor, o decreto seria "instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente de lei formal". Deve-se ressaltar que o próprio autor apresenta os instrumentos originários em sentido lato, ou seja, lei formal. Não trata, nesse sentido, de lei específica; cabendo desta feita disposições constitucionais ou qualquer outro instrumento normativo originário.
Ora, se cabe aos decretos a necessária regulamentação para execução de leis, esquece o autor da existência da Convenção n° 169 da OIT. Conforme dissemos anteriormente, tal Convenção, cujo conteúdo é de proteção aos de direitos humanos, foi assinada pelo Presidente da República e ratificada pelo Congresso Nacional. Dessa forma, a Convenção, conforme o art. 5°, §3 da Constituição da República, adquire força de emenda constitucional.
Conforme apresenta Flávia Piovesan, a natureza jurídica interna das normas internacionais protetivas de direitos humanos podem ser agrupadas em quatro teorias: normas internacionais supra-legais, constitucionais, infraconstitucionais superiores a lei ordinária e lei ordinária. Segundo a autora:
[...] além da concepção que confere aos tratados de direitos humanos natureza constitucional (concepção defendida por este trabalho) e da concepção, que, ao revés, confere aos tratados status paritário ao da lei federal (posição majoritária do STF), destacam-se outras duas correntes doutrinárias. Uma delas sustenta que os tratados de direitos humanos têm hierarquia supraconstitucional, enquanto a outra corrente defende a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos.
A discussão ganha novos contornos com a inserção do parágrafo §3° no artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo esse artigo, acrescentado pela Emenda Constitucional n° 45/2004
Art. 5° - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§3° - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Em 3 de dezembro de 2008, o Ministro Celso Mello modificou sua compreensão anterior, passando a considerar as normas dos tratados internacionais de direitos humanos como normas de nível constitucional (RE 466.343-SP, sobre a impossibilidade de aplicação da prisão civil pela aplicação do Pacto de San José). Entretanto, a posição do Ministro foi vencida. A maioria dos Ministros acompanhou o voto-vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que considerou as normas dos tratados de direitos humanos como sendo normas de nível supralegal, ou seja, abaixo da Constituição, mas acima de toda legislação infraconstitucional.
Entretanto, para a discussão do caso agora estudado (ADI 3.239), não importa se a Convenção n° 169 da OIT, instrumento internacional normativo de proteção dos direitos humanos, possui natureza jurídica de norma constitucional ou supralegal. A partir do reconhecimento desta norma de direitos humanos, não há de se falar de invasão da esfera privativa a lei pela edição do Decreto 4.887/2003. Esse veio a regulamentar a existência de lei formal originária – no caso em voga, norma constitucional (segundo a doutrina majoritária de direito internacional) ou norma supralegal (segundo posicionamento majoritário do STF). Seguindo a construção do próprio autor, percebe-se a existência de uma originária unidade normativa, a lei – aqui, no caso, a Convenção n° 169 da OIT como norma brasileira – e de uma unidade normativa secundária – o Decreto n° 4.887/2003 que veio regulamentar a lei originária.
Como segundo argumento, o autor traz uma pretensa "desapropriação inconstitucional". Propõe o autor que:
"não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer frente às futuras indenizações. As terras são, desde logo, por força da Lei Maior, dos remanescentes das comunidades quilombolas que lá fixam residência desde 5 de outubro de 1988."
Ainda,
"sendo a propriedade, desde a promulgação da Constituição, dos remanescentes, incorre em vício de inconstitucionalidade qualquer norma que determine a expropriação das áreas, bem como o uso de recursos públicos, para a transferência posterior aos titulares do direito originário de propriedade definitiva. Ademais a pretensa desapropriação a que se refere o dispositivo regulamentar não se enquadra em nenhuma das modalidades a que se refere o art. 5°, XXIV, do texto constitucional, bem como não se enquadra em nenhuma das leis que a regem.
O pensamento pela desapropriação inconstitucional remete a dois principais pontos, conforme transcrito. Em um primeiro momento, defende o autor que não seria possível desapropriar terras, promovendo despesas públicas, pois estas já seriam propriedade das comunidades quilombolas. Em outro ponto, argumenta que seria impossível a desapropriação, visto inexistir no caso em voga situações de necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, conforme disposto pelo art. 5° XXIV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Ora, resta infundado o segundo ponto argumentativo. Sabe-se que as hipóteses de necessidade ou utilidade pública e interesse social são oferecidos pela legislação federal na Lei 4.132/62 e no Decreto-Lei 3.365/41. Nesse sentido, observa-se a Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962. Em seu segundo artigo, a referida lei estabelece os casos de interesse social, cujos incisos I e III prevêem:
I - o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;
[...]
III - o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola.
Percebe-se, nesses dois incisos, pleno cabimento da desapropriação motivada por interesse social. Considerando a existência de uma propriedade notoriamente pertencente aos territórios quilombolas, hoje, sob a posse de particulares, configura-se a hipótese de um bem explorado sem a correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população que possa suprir por seu destino econômico. Plenamente cabível é a desapropriação por interesse social embasada no estabelecimento de colônia de povoamento e trabalho agrícola. [06]
Retornando ao primeiro ponto, manifesta-se o autor da ADIN pela impossibilidade de promover despesas públicas, desapropriando terras que já seriam de propriedade das comunidades quilombolas. Por esse pensamento, entende o autor que as terras ocupadas pelas comunidades de remanescentes de quilombos no momento da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil já seriam propriedade das comunidades, cabendo apenas ao estado emitir os respectivos títulos.
Trata-se de uma tese de difícil sustentação. Ora, todas as terras imprescindíveis para a manutenção física, social e cultural das comunidades de remanescentes de quilombos que, porventura, às vésperas da promulgação da Constituição fossem invadidas por agentes externos às comunidades, seriam retiradas de seu domínio? A análise da Convenção n° 169 da OIT ratificada pelo estado brasileiro demonstra a clara divergência entre a busca do legislador e o argumento do autor. É claro o artigo 14, item 1, da referida Convenção:
"Artigo 14
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes."
É incabível o argumento que apenas as terras que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988 sejam de propriedade das comunidades de remanescentes de quilombos. A Convenção n° 169, conforme apresentado, amplia o conceito de terras e define claramente que os territórios devem ser compreendidos com "a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma forma". Nesse sentido, exclui-se do critério de interpretação da extensão territorial das comunidades de remanescentes de quilombos a data de promulgação da Lei Maior. Faz-se necessário considerar o caráter sistêmico do ordenamento pátrio, onde deve-se analisar a proteção dos bens culturais imateriais formadores da identidade brasileira e as diversas normativas de proteção dos direitos humanos.
Como terceiro argumento, apresenta o autor uma configuração inconstitucional dos titulares do direito à propriedade definitiva. Merece transcrição a linha de raciocínio utilizada:
" O Decreto n.° 4887/2003 elege como critério essencial para a identificação dos remanescentes titulares do direito a que se refere o art. 68 do ADCT a auto-atribuição. Em outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado. É o que disciplina o seu art. 2°. [...]. A Toda Evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional. Segunda a letra da Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos. [...]. Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não aos remanescentes -, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aqueles efetivamente beneficiados pelo art. 68 da ADCT e realizar, por vias oblíquas uma reforma agrária sui generis. Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição. De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava (sic), á época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional "suas terras" constante do art. 68 do ADCT. Esta a lúcida manifestação de Cláudio Teixeira da Silva, [...]. Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país."
Anteriormente a qualquer consideração a ser feita sobre a argumentação criada pelo autor, deve-se ressaltar grave erro histórico. As comunidades formadas, chamadas de quilombos, não compreendiam apenas escravos fugidos. Faziam parte das comunidades escravos que buscavam afastar-se dos desmandos dos senhores de engenho. Porém, as comunidades quilombolas buscavam, acima de qualquer outro ponto, manter as características culturais, econômicas, sociais e religiosas que, à época, eram proibidas pelo governo português.
Feita essa consideração, passamos a analisar a argumentação utilizada pelo autor. Percebe-se total falta de conhecimento deste ao tratar das comunidades tradicionais. Sob uma perspectiva positivista, poderíamos considerar a clara disposição da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. O primeiro artigo da citada Convenção, ao tratar da aplicabilidade, define que a "consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". A ratificação realizada pelo estado brasileiro já desconstruiria o argumento utilizado pelo autor.
Porém, afastando-nos da simplória defesa positivista, merece o tema uma análise sócio-jurídica. O artigo 216 da Constituição da República constitui como "patrimônio cultural brasileiro os bens de cultura material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Dentro desse gênero, incluem-se, nos dois primeiros incisos, as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver. Compreende tal artigo da Constituição uma clara proteção aos diversos grupos étnicos que auxiliaram na construção da identidade brasileira hoje existente. Ora, sabido que todos somos iguais, respeitadas as diferenças, inexiste melhor forma de compreender o sentimento de pertença a um grupo de a auto-atribuição. Ademais, de forma simplista e equívoca, o autor exclui (ou ignora), na construção de seus argumentos, as outras áreas do saber. Na seara da antropologia, ciência de vital importância para a compreensão do homem, é inequívoca a afirmação que a auto-atribuição é traço imprescindível para identificar a pertença a um grupo.
Como último argumento, o autor trata da configuração inconstitucional das terras em que se localizavam os quilombos. Ataca, nesse sentido, os §§ 2° e 3° do artigo 2° do decreto n° 4.887/2003, acreditando haver uma "excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados". Merece a transcrição do argumento utilizado pelo autor:
"Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural. As atividades econômicas, bem assim a reprodução física da comunidade não ocorreram necessariamente nas áreas onde efetivamente se localizaram os quilombos. Atividades econômicas como a caça e a pesca eram comuns entre os quilombolas, o que demonstra que o desenvolvimento da comunidade também se deu fora dos limites do próprio quilombo."
Acerta o autor ao afirmar que as áreas de reprodução física da comunidade não ocorreram necessariamente onde localizaram os quilombos. Porém, esquece-se de considerar o respeito à diversidade, condão norteador da normativa internacional de proteção dos direitos humanos. Fora vencida a concepção que comunidades tradicionais, como ameríndios, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e outros tantos, precisam se integrar da "sociedade pasteurizada" hoje vivenciada. Tais grupos não precisam se integrar, haja visto que é no mínimo uma pretensão egoística acreditar que as práticas e concepções culturais dessa sociedade uniformizada e europeizadas são em alguma medida mais corretas que as práticas das comunidades tradicionais.
A pretensão do estado brasileiro, com o Decreto 4.887/2003, reside em propiciar a necessária proteção das comunidades quilombolas. Tal proteção só é possível garantindo o espaço necessário para a reprodução física da comunidade. Não há como se falar nessa proteção mantendo os grupos em espaços restritos, onde suas atividades básicas de alimentação, práticas religiosas, culturais não podem ser realizadas já que não estão em seu espaço físico.
É estranha a postura do autor, na medida em que defende essa dicotomia entre terras ocupadas e necessárias para a reprodução física. Como seria possível a manutenção de uma comunidade se não serão respeitadas suas características mais básicas, como religião, alimentação própria, práticas culturais?