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Devido processo administrativo versus devido processo criminal

Agenda 25/01/2010 às 00:00

Não se pode confundir o devido processo administrativo (ou disciplinar) com o devido processo criminal. Naquele apura-se uma infração administrativa (que só possibilita sanções administrativas). Neste apura-se uma infração, que está sujeita às mais drásticas sanções estatais (pena ou medida de segurança). Em virtude dessas diferenças, parece natural que também os devidos processos sejam distintos. As garantias que norteiam o segundo (devido processo criminal) são muito mais densas que as que permeiam o primeiro (devido processo administrativo). A ampla defesa, por exemplo, não tem (em ambos os campos) a mesma dimensão.

É o contraditório que fundamenta a existência da defesa, isto é, que a torna possível. Por força do princípio da ampla defesa ela deve ser plena, a mais abrangente em cada caso concreto. Em outras palavras: a defesa precisa ser efetiva. O contraditório torna a defesa possível; a ampla defesa a transforma em efetiva (em defesa plena). Os princípios do contraditório e da ampla defesa, como se vê, previstos no art. 5º, inc. LV, da CF, são complementares.

A ampla defesa (constitucionalmente assegurada – CF, art. 5.º, LV), no devido processo criminal, compreende – tal como reconhece a communis opinio doctorum –, a autodefesa e a defesa técnica. Esses dois aspectos fazem parte da possibilidade de se defender. Dispõe, a propósito, o art. 261 do CPP que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. Complementa o art. 263: Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvando o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação. A diferença essencial entre autodefesa e defesa técnica é a seguinte: a primeira é dispensável; a segunda é imprescindível. A possibilidade de se defender é complementada pela possibilidade de recorrer (CF, art. 5.º, LV). Ambas (possibilidade de se defender e possibilidade de recorrer), paralelamente à autodefesa e à defesa técnica, revelam o conteúdo essencial (o núcleo duro) da ampla defesa.

Defesa ampla é a mais abrangente possível. A mais plena possível. Não pode haver cerceamento infundado, sob pena de nulidade do processo. Segundo a súmula 523 do STF: No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu. Notando o juiz que a defesa vem sendo absolutamente deficiente, o correto é tomar a iniciativa de reputar o acusado indefeso, intimando-o para constituir um outro defensor (ou nomeando defensor, em caso de defensor dativo ou se o acusado não o constitui).

Defesa ampla, destarte, envolve: (a) autodefesa; (b) defesa técnica e (c) defesa efetiva. Além desses três conteúdos agrega-se um quarto: (d) defesa por qualquer meio de prova (inclusive por meio da prova ilícita, que só é admitida pro reo, para comprovar sua inocência) (Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de processo penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 21).

Como integrantes da primeira (da autodefesa) podem ser citados: (a) o direito de audiência, ou seja, o direito de ser ouvido (sobretudo no ato do interrogatório); (b) o direito a intérprete ou tradutor; (c) o direito de presença (right to be present) nos atos processuais – que envolve o direito de confronto com as testemunhas e vítimas; (d) o direito de participação contraditória (dialética) real na audiência, isto é, na colheita da prova, por meio de reperguntas ou, onde o ordenamento jurídico permite, da cross examination, esclarecimentos, indagações, questionamentos etc.; (e) o direito de comunicação livre e reservada com o seu defensor, bem como (f) o direito de postulação pessoal. Também faz parte da autodefesa o direito de não auto-incriminação.

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A defesa técnica, de outro lado, tem que ser exercida por quem tem habilitação técnica (advogado devidamente inscrito na OAB). Estagiário não pode incumbir-se dela durante o processo. Pode o estagiário praticar alguns atos, mas não cuidar da defesa do acusado. E se houver absolvição com trânsito em julgado? Nada pode ser feito. Prevalece a absolvição, porque não existe revisão criminal pro societate.

No processo administrativo (disciplinar) a defesa técnica por advogado é dispensável (nisso reside uma das grandes diferenças entre o devido processo criminal e o administrativo). Não se pode confundir o processo penal com o processo disciplinar (ou seja: o devido processo criminal com o devido processo disciplinar). A jurisprudência brasileira vem definindo os contornos do processo disciplinar, nestes termos: "A Seção [Terceira, do STJ], ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu que a notificação para a audiência de oitiva de testemunha no processo administrativo disciplinar deve ser realizada com antecedência mínima de três dias (art. 41 da Lei n. 9.784/1999, aplicada subsidiariamente a Lei n. 8.112/1990). Quanto à presença de advogado, aplicou a súmula vinculante n. 5 do STF, que dispõe: "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição". Logo não há que se falar em prejuízo à amplitude da defesa e ofensa ao contraditório. Por fim, entendeu que o excesso de prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar não é causa de sua nulidade quando não demonstrado prejuízo à defesa do servidor. MS 12.895-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 11/11/2009".

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Devido processo administrativo versus devido processo criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14229. Acesso em: 18 nov. 2024.

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