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A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

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Agenda 24/01/2010 às 00:00

3 O PERDÃO JUDICIAL E OS CRIMES CULPOSOS DE TRÂNSITO

Conforme visto no primeiro capítulo, o perdão judicial é o instituto jurídico pelo qual o juiz, mesmo reconhecendo a existência de todos os elementos para condenar o acusado, deixa de aplicar a pena, devido à existência de circunstâncias especiais previstas em lei. Trata-se de direito subjetivo do acusado e é causa de extinção da punibilidade prevista no art. 107, IX do Código Penal Brasileiro.

Essa causa extintiva da punibilidade é de aplicação restrita aos casos legais, não se admitindo a todas os delitos, recaindo somente sobre aqueles especificados expressamente em lei. Não se admite que o julgador possa estender as hipóteses de perdão judicial aos casos não indicados expressamente em lei, pois se tratando de renúncia estatal ao direito de punir, somente o Estado pode assim proceder mediante específica disposição de lei nesse sentido.

O art. 121, § 5º e o art. 129, § 8º do Código Penal Brasileiro, inseridos pela Lei nº 6.416/77, possibilitam a aplicação do perdão judicial nos casos de homicídio culposo e lesão corporal culposa, quando as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

O art. 300 do Projeto de Lei n° 73/94, de onde se originou o Código de Trânsito Brasileiro, também possibilitava a aplicação do perdão judicial nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor:

Art. 300. Nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal o juiz poderá deixar de aplicar a pena se as conseqüências da infração atingirem, exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta, do condutor do veículo. [05]

Entretanto, esse artigo foi vetado pelo Senhor Presidente da República, não havendo previsão legislativa expressa autorizando a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito.

Devido a ausência de previsão legislativa expressa autorizando o juiz a aplicar o instituto, parte da doutrina sustenta que o perdão judicial é inaplicável aos crimes culposos de trânsito, porém existe uma forte corrente doutrinária e jurisprudencial que considera possível a aplicação do instituto nesses casos.

Assim, vive-se uma insegurança jurídica decorrente dessa ausência de previsão legislativa expressa, que provoca divergências doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, pois diante de um caso concreto, não se sabe qual direito será aplicado pelo juiz da causa, se irá possibilitar ou não a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito.

3.2 Da impossibilidade de aplicação do instituto aos crimes culposos de trânsito

Considerando que o perdão judicial é de aplicação restrita aos casos expressos em lei, tem-se que o perdão judicial não pode ser aplicado aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor (arts. 302 e 303 do CTB), pois não há disposição legislativa expressa autorizando a aplicação do instituto nesses casos.

Esse entendimento é reforçado pela interpretação dada ao art. 291, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, que determina a incidência subsidiária apenas das normas gerais do Código Penal, sendo que a aplicação do perdão judicial aos casos de homicídio culposo e lesão corporal culposa está enunciada apenas na parte especial deste Código.

Aguiar (2004, p. 207) apresenta um outro argumento contrário à aplicação do perdão judicial aos crimes culposos previstos no CTB: "sendo o perdão judicial uma regra excepcional, que cria um privilégio consistente na dispensa de pena, inadmissível é o uso da analogia em seu manejo".

Analisando o problema sobre outro enfoque, Souza (1983, p. 470) apresenta crítica aos fundamentos da concessão do perdão judicial aos crimes de trânsito:

O perdão judicial é, pois, fruto de uma mentalidade acomodada e indulgente; uma mentalidade que não considera o acidente de circulação como crime, nem o seu autor como criminoso; uma mentalidade que pouco ou nada tem a ver com os objetivos preconizados pelas campanhas de prevenção de acidentes, pelos princípios de direção defensiva e por uma superior política de segurança do trânsito, que deveria vigorar em sua plenitude em todos os setores da vida nacional.

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Parte da jurisprudência, apoiada nos argumentos citados acima, passou a vedar a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito. É o que se aprende do seguinte julgado:

PERDÃO JUDICIAL – Código de Trânsito Brasileiro – Concessão ao agente condenado pelo delito do art. 302 da Lei nº 9.503/97 – Inadmissibilidade:

- É inadmissível a concessão do perdão judicial ao agente condenado pelo delito do art. 302 da Lei nº 9.503/97, uma vez que inexiste tal previsão no Código de Trânsito Brasileiro para os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa, sendo certo que o referido benefício constitui causa extintiva da punibilidade, de aplicação restrita aos casos legais, recaindo somente sobre as infrações especificamente indicadas na Lei, conforme dispõe o inciso IX do art. 107 do CP. [06]

3.3 Da possibilidade de aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito

Apesar de inexistir previsão legislativa expressa permitindo a aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, a maior parte da doutrina e da jurisprudência aceita como legítima essa possibilidade.

Na oportunidade em que analisou esse tema, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o perdão judicial é cabível nos crimes previstos nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro:

PROCESSO PENAL – ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO – PERDÃO JUDICIAL – CONCESSÃO – BENEFÍCIO QUE APROVEITA A TODOS.

- Sendo o perdão judicial uma das causas de extinção de punibilidade (art. 107, inciso IX, do C.P.), se analisado conjuntamente com o art. 51, do Código de Processo Penal, que preceitua que "o perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos...", deduz-se que o benefício deve ser aplicado a todos os efeitos causados por uma única ação delitiva. O que é reforçado pela interpretação do art. 70, do Código Penal Brasileiro, ao tratar do concurso formal, que determina a unificação das penas, quando o agente, mediante uma única ação, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não.

- Considerando-se, ainda, que o instituto do Perdão Judicial é admitido toda vez que as conseqüências do fato afetem o respectivo autor, de forma tão grave que a aplicação da pena não teria sentido, injustificável se torna sua cisão.

- Ordem concedida para restabelecer a decisão de 1º grau. [07]

Esse entendimento é fundamentado nas razões do veto ao art. 300 do Projeto de Lei Federal nº 73/94, que originou o CTB; na interpretação dada ao art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro e no princípio constitucional da igualdade.

O Senhor Presidente da República manifestou-se da seguinte forma ao vetar o art. 300 do Projeto de Lei nº 73/94: "O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente". [08]

Assim, percebe-se que o veto presidencial visou justamente possibilitar a aplicação do perdão judicial disciplinado no Código Penal aos crimes culposos de trânsito, por entender que essa forma é mais abrangente que a descrita no art. 300, pois este artigo possibilitaria a aplicação desse instituto apenas se as conseqüências da infração atingissem, exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta do condutor do veículo.

O artigo vetado traria rol taxativo de vítimas, excluindo, por exemplo, amigos ou namoradas de eventuais agentes, e não permitiria o perdão judicial nem mesmo nos casos em que as lesões atingissem o próprio agente. Já, o perdão judicial disciplinado no Código Penal não possui tal desvantagem, por isso optou-se em aplicá-lo também aos crimes culposos de trânsito.

Quanto ao art. 291 do CTB, ele determina a aplicação subsidiária das normas gerais do Código Penal aos crimes cometidos na direção de veículos automotores previstos na legislação de trânsito. Assim, parte da doutrina entende que se deve aplicar subsidiariamente apenas as normas descritas na parte geral do Código Penal, não se aplicando, portanto, as disposições contidas nos arts. 121, § 5º e 129, § 8º. (STOCO, 1997).

Entretanto, a posição majoritária é que o art. 291 manda aplicar as normas gerais do Código Penal e que estas não se restringem à parte geral desse código, havendo normas gerais descritas também na parte especial do Código Penal. Além disso, o perdão judicial está previsto de forma genérica no art. 107, IX do Código Penal, sendo apenas regulado em situações particulares na parte especial.

Argumenta-se também que vedar a aplicação do instituto aos crimes culposos descritos no CTB é inconstitucional por ofensa ao princípio constitucional da igualdade.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo que todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, vedando-se discriminações arbitrárias.

Segundo Moraes (2005, p. 32), "para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminativas, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos".

Dessa forma, entende-se que possibilitar ao agente que pratique homicídio culposo ou lesão corporal culposa descritos no Código Penal a aplicação do perdão judicial e vedar a aplicação desse instituto ao agente que pratique homicídio culposo ou lesão corporal culposa na direção de veículo automotor é injustificável e sem razão, ferindo ao princípio da igualdade, por submeter pessoas que estão na mesma situação jurídica a tratamento desigual sem nenhuma razão aparente.

Não se pode afirmar que a dor experimentada por um agente que, conduzindo imprudentemente uma bicicleta com sua filha na garupa, dá causa a morte desta (art. 121, §3º do Código Penal) é maior, menor ou diferente que a dor sofrida por um agente que conduzindo da mesma forma uma motocicleta dá causa a morte da passageira que é sua filha (art. 302 do CTB).

Nos artigos 121, § 5º e 129, § 8º do Código Penal a dispensa da sanção penal estatal ocorre, pois as finalidades retributiva e preventiva da pena já foram alcançadas por obra do próprio fato. Assim, de acordo com este mesmo fundamento, deve ser dispensado da pena aquele motorista que já sofreu gravemente a punição pelas próprias conseqüências de sua conduta culposa.

No Código de Trânsito Brasileiro o crime previsto no art. 302 do CTB foi definido como "Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor" e o crime previsto no art. 303 do CTB como "Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor". Assim, esses crimes são remetidos em relação aos tipos penais autônomos de homicídio culposo e lesão corporal culposa definidos no Código Penal, pois utilizam em sua definição o nomen juris destes crimes.

Jesus (2006, p. 52) considera que o fato desses crimes serem remetidos em relação aos crimes definidos no Código Penal também constitui argumento favorável à aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito, pois "As referências ‘homicídio culposo’ e ‘lesão corporal culposa’, emprestadas às figuras especiais dos crimes de circulação de veículos, carregam as elementares, causas e circunstâncias daqueles tipos".

Na realidade, como visto anteriormente, os crimes definidos nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro são especiais em relação aos crimes descritos nos artigos 121, § 3º e 129, § 6º do Código Penal, pois contêm todos os elementos destes e uma especializante normativa que é o fato de o delito ocorrer na direção de veículo automotor.

Desse modo, não havendo vedação expressa, as mesmas normas aplicáveis aos delitos genéricos são também aplicáveis aos delitos especiais, devendo o perdão judicial ser aplicado aos crimes culposos de trânsito sempre que as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária, tal como ocorre com os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa definidos no Código Penal.


Notas

  1. TAMG - AC - Rel. Edeberto Santiago - RT 605/374
  2. TACRIM-SP - AC - Rel. Camargo Aranha - JUTACRIM 50/311
  3. Disponível em <http://www.denatran.gov.br>. Acesso em 07 out. 2007.
  4. BRASIL. Conselho nacional de trânsito. Resolução nº 166, de 15 de Setembro de 2004, institui a Política Nacional de Trânsito. Disponível em <http://www.denatran.gov.br>. Acesso em 07 out. 2007
  5. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 73/94. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em <http:// www.senado.gov.br> Acesso em 10 jun. 2008.
  6. Apelação nº 1.252.261/2 - TJSP - 2ª Câmara - Relator: Osni de Souza - 28/6/2001 - V.U. (Voto nº 3.142).
  7. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 14348/SP. Julgamento 03/04/01. Publicação 20/08/01. Relator Exmo. Sr. Min. William Patterson. Decisão por maioria.
  8. BRASIL. Presidência da República. Mensagem 1056, de 23 de Setembro de 2007. Disponível em <http://www.presidencia.gov.br>. Acesso em 10 jun. 2008.
Sobre o autor
Gabriel Costa de Jesus

Policial Rodoviário Federal. Bacharel em Direito pela UNIMONTES. Pós-graduado em Ciências Criminais pela UNAR. Presidente de JARI e secretário de Comissão de Defesa de Autuação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Gabriel Costa. A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2398, 24 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14231. Acesso em: 26 dez. 2024.

Mais informações

Título original: "A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, ambos definidos no Código de Trânsito Brasileiro".

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