Em adição ao que expus em artigo anterior publicado por Jus Navigandi em 09/02/2010 ("Aposentadoria do servidor público". Jus Navigandi nº 2414, disponível em: http://jus.com.br/artigos/14329), achei por bem abordar em maior profundidade a acumulação no serviço público.
Um das questões mais comum e frequentemente discutidas e controvertidas diz respeito à acumulação de aposentadorias e, em particular, de proventos da inatividade com os vencimentos do exercício de cargo público na ativa.
Como se sabe, na administração pública federal direta (incluídas as autarquias, apesar de constituir a administração pública indireta), desde dezembro de 1990, vige a Lei nº. 8.112 que revogou a legislação anterior (a Lei nº 1.711/1952). e, ex-vi de seu art. 243, transformou os funcionários celetistas em servidores públicos "estatutários".
Eu me referi à "confusão" trazida pela CF/88, em seu artigo 37, ao se disciplinar "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".
Aquele artigo 37 dá a entender, em muitos dispositivos, que quem quer que trabalhe "para o governo" (ainda que nas sociedades de economia mista ou empresas públicas) é "servidor público" – e assim esses empregados são expressamente chamados em alguns desses dispositivos.
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:"
Porém, mais uma vez, parece-me que o aspecto mais interessante é mesmo o diz respeito à (im)possibilidade de acumular dois cargos públicos (voltar ao serviço público, via concurso, após dele se aposentar) e, tanto quanto ou mais, a de cumulação de proventos com vencimentos.
Repetindo, dispõem os incisos XVI e XVII daquele art. 37:
"XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor; (incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; (incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas"; (redação dada pela Emenda Constitucional nº 34, de 2001).
"XVII - a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público;" (redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Eu dissera que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão ao julgar o RE 163.204/SP, quando decidiu que somente é lícita a cumulação de cargos públicos que fosse permitida na atividade.
O inteiro teor daquela decisão merece uma leitura e várias releituras. Constam ali nove Votos, alguns mais extensos que outros, que totalizam aproximadamente umas setenta páginas.
E, uma leitura atenta leva a que a vedação também se estenderia a vínculos de esferas diferentes.
Também parece tormentosa a conceituação do que seja cargo "técnico ou científico" aludido nas exceções do inciso XVI, b). Sempre sustentei que deveria ser algo ligado á profissão de nível superior que guardasse correlação com o outro cargo público ocupado.
Já escrevi que um médico, por melhor músico que seja, não poderia acumular um cargo público de médico com outro de professor de música, composição ou regência; que um advogado, por mais que domine uma língua estrangeira, não pode acumular seu cargo público na área jurídica com outro cargo público de professor daquele idioma; que um engenheiro, por maior que seja sua intelectualidade, se for engenheiro do Estado, não pode acumular esse cargo com outro público de professor na área da Literatura; etc.
Minha "lógica" baseava-se em que o permissivo legal seria uma autorização para que o profissional transmitisse sua experiência para as futuras gerações, ensinando aquilo que aprendera na sua área (o lógico seria que um profissional da área técnica ou científica pudesse ser, também, professor naquela sua especialidade; não que um já professor se tornasse também ocupante de cargo público técnico ou científico).
E havia o respaldo para tal entendimento nas redações dadas nas Constituições anteriores, como:
CF/46, art. 185: "É vedada a acumulação de quaisquer cargos, exceto a prevista no art. 96, nº I, e a dois cargos de magistério ou a de um destes com outro técnico ou científico, CONTANTO QUE HAJA CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horário" - destaquei
CF/67, art. 97:"É vedada a acumulação remunerada, exceto:
...
III – a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
...
§ 1º. Em qualquer dos casos, a acumulação somente é permitida quando haja CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horários."
EC 01/69, art. 99: "É vedada a acumulação remunerada de cargos e funções públicas, exceto:
....
III – a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
...
§ 1º. Em qualquer dos casos, a acumulação somente será permitida quando houver CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horários."
Essa condição (correlação de matérias entre o cargo técnico ou científico e o de professor), contudo, restou afastada no texto da CF/88, art. 37 XVI, como visto.
Cada Voto traz enfoques interessantes, por vezes analisando a mesma doutrina (ou o mesmo doutrinador) e chegando a conclusões opostas. Ou expressamente afirmando que, consoante o entendimento da Corte, desde sempre (são citados precedentes datados de 20 e 30 anos antes, sob a vigência de outras Constituições, inclusive) foi tradição do STF assim entender.
Há remissões às Constituições desde o Império. E considerações notadamente ao aspecto da moralidade, sempre exigido nas Cartas Magnas. Não deixa de ser, também, uma aula de Direito Constitucional comparado.
Alguns poucos excertos:
"A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, portanto, interpretando norma constitucional – art. 185 da Constituição de 1946 – igual à que está inscrita no art. 37, XVI, da Constituição de 1988, era no sentido de que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trata de cargos legalmente acumuláveis na atividade."
(....)
Tenho como acertada a lição do professor Ivan Barbosa Rigolin, a dizer que "o que se proíbe é o duplo ganho, mas é exatamente isso que parece interessar ao servidor aposentado que volta a ocupar posto público, e nesse sentido entendemos, a partir da nova Carta, proibida tal acumulação, se remunerada" ("O Servidor Público na Constituição de 1988", Saraiva, 1989, pág. 159). (....).
O que não é possível é a acumulação de proventos com vencimentos de cargos efetivos, cargos de carreira.
Não procede a afirmativa no sentido de que a Constituição apenas veda a acumulação de cargos públicos. Que a Constituição é expressa no estabelecer tal acumulação, não há dúvida. Partir dessa proibição para a afirmativa no sentido de que a Constituição permitiria a acumulação de proventos com vencimento, é ir longe demais."
(Voto do Relator, Min. Carlos Velloso)
"A tese jurídica que o recurso extraordinário quer ver derrubada pelo Supremo é a de que, em princípio, é possível começar nova carreira depois de haver esgotado, com a aposentadoria, outra carreira na função pública.
A esse respeito a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é monolítica. Foi fiel, em passado recente, àquilo que se disse em passado remoto. (....)"
(Voto do Min. Francisco Rezek)
"A Carta de 1988, fiel à tradição de nosso direito constitucional, revelado pela jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Federal, no art. 37, XIV (sic) manteve vedada a acumulação remunerada, sem sequer ressalvar, como fizera a EC 01/69, certas situações de aposentados, permitindo deduzir, por esse modo, que continuam eles sujeitos ao mesmo regime imposto aos servidores em atividade. (....).
Decorrência da modificação havida é que continua vedada a acumulação de proventos de mais de um cargo, bem como de proventos com vencimentos ou salários de outro qualquer cargo, emprego ou função, isso não apenas em relação à Administração Direta, mas também em face de autarquias , empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público, salvo as exceções das alíneas a, b e c, do mencionado inciso XIV. (sic).
Entendimento em sentido contrário levaria a ter-se de admitir a possibilidade de acumulação, não dos proventos de um só cargo, mas de dois ou até três, com vencimento de um outro, o que soaria como verdadeiro absurdo. (....) com o fito de ver duplicados os vencimentos, situação que, além de reveladora de acumulação, constituiria flagrante atentado ao princípio da moralidade, expressamente consagrado no art. 37, caput, da Constituição Federal."
(Voto do Min. Ilmar Galvão)
"Com efeito, impõe-se destacar, na análise do thema decidendum, que a Constituição revela-se inquestionavelmente hostil às acumulações remuneradas de cargos, funções ou empregos públicos. O texto da Lei Fundamental promulgada em 1988 instituiu, em seu art. 37, XVI, a regra geral da inacumulabilidade funcional. Essa tem sido a posição tradicional vigente no direito positivo nacional e consagrado, desde a Carta Federal de 1891 (art. 73), pelas sucessivas Constituições republicanas brasileiras (CF/34, art. 172; CF/37, art. 159; CF/46, art. 185; CF/67, art. 97 e CF/69, art. 99).
Tenho para mim (...) que contraria a tradição do direito positivo brasileiro, tanto quanto dissente da jurisprudência firmada no tema em questão pelos Tribunais, o argumento de que os aposentados, por não mais ocuparem cargos públicos, estariam excluídos da regra geral de inacumulabilidade."
(Voto do Min. Celso de Mello).
"Já foi dito, nesta assentada, e com procedência, que a tradição do constitucionalismo brasileiro é no sentido da vedação de acumulações. Esse tratamento à espécie veio, até nós, desde o sistema português. (....) O decreto de 16 de junho de 1824, do Príncipe regente, reforçou a proibição de acumulações. (...).
(...) Não cabe distinção entre vencimentos e proventos, para os efeitos de acumulação remunerada, salvo ocorrendo disciplina específica. (...) os provento são percebidos, pelo inativo, porque houve anterior exercício de cargo público. Daí resulta que só são acumuláveis proventos originários de desempenho, na atividade, de cargos acumuláveis. (...). Essa tem sido a tradição de nosso direito. (...).
(...)
Dessa sorte, penso que ao aposentado não se admite exercer novo cargo a não ser naquelas hipóteses em que, na atividade, poderia manter, cumulativamente, os dois vínculos funcionais. (...) O mesmo sucede com um engenheiro aposentado em cargo de sua especialidade, que não poderá exercer cargo de médico, embora detenha a dupla titulação universitária. Isso porque, na atividade, não são acumuláveis os cargos de médico e engenheiro. (...)
(...)
(...). A locução "acumulação remunerada" abrange vencimentos e proventos, pois estes guardam sempre remissão ao cargo público que foi exercido pelo inativo. A noção de proventos, portanto, se equipara à de vencimentos, para os efeitos de acumulação remunerada."
(Voto do Min. Néri da Silveira)
"Com efeito, (....), desde o momento em que não se admite o exercício de cargo público sem a percepção de remuneração, aludir à acumulação remunerada e cargos e funções públicas, se ela só se referisse aos servidores em atividade, seria pleonástico, pois toda a acumulação de cargos ou funções públicas na atividade é sempre remunerada.
Essa expressão acumulação remunerada deixa, porém, de ser pleonástica se se referir à hipótese em que o servidor está na inatividade quanto a cargo que ocupara antes da aposentadoria e ocupa cargo na ativa, o que é permitido desde que deixe de perceber seus proventos de aposentado, só percebendo a remuneração do cargo que atualmente exerce."
(Voto do Min. Moreira Alves)
A quem preferir, busque conhecer os argumentos contrários do Voto vencido.