Afirma RUI STOCO que "a noção de responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém por seus atos danosos" [01].
Essa idéia de responsabilidade pelos atos praticados é uma exigência natural imposta ao homem, surgindo, pois, como algo impregnado mesmo à natureza humana, para o bem de toda a sociedade.
CARLOS ALBERTO BITTAR adverte que "o ser humano, porque dotado de liberdade de escolha e de discernimento, deve responder por seus atos. A liberdade e a racionalidade, que compõem a sua essência, trazem-lhe, em contraponto, a responsabilidade por suas ações ou omissões, no âmbito do direito, ou seja, a responsabilidade é corolário da liberdade e racionalidade" [02].
Tal responsabilidade, outrora apenas moral, também pode assumir contornos jurídicos, sendo que a violação desses preceitos jurígenos regedores de conduta passa a configurar a ilicitude - e o dano praticado a outrem, em razão dessa ilicitude, por certo deve ser reparado. SILVIO RODRIGUES, então, com precisão, fixa que o princípio informador de toda a teoria da responsabilidade é aquele que impõe "a quem causa dano o dever de reparar" [03].
Daí se conclui que o tema pertinente à responsabilidade jurídica está umbilicalmente vinculado à reparação de danos.
Dessarte, com inteira propriedade ensina CRETELLA JR que "a responsabilidade jurídica nada mais é do que a própria figura da responsabilidade, in genere, transportada para o campo do Direito, situação originada por ação ou omissão de sujeito de direito público ou privado que, contrariando norma objetiva, obriga o infrator a responder com sua pessoa ou bens. (omissis)... Envolve a responsabilidade jurídica, desse modo, a pessoa que infringe a norma, a pessoa atingida pela infração, o nexo causal entre infrator e infração, o prejuízo ocasionado, a sanção aplicável e a reparação, consistente na volta ao status quo ante da produção do dano" [04].
É esse o arquétipo básico do tema.
Cabe frisar, neste momento, que, até então, toda a temática alusiva à responsabilidade civil sempre partiu da idéia de culpa (latu sensu). Daí se afirmar a prevalência, como regra geral, da responsabilidade civil subjetiva.
Essa linha subjetiva norteou os ordenamentos jurídicos mundiais, sendo que o direito pátrio, que sempre buscou inspiração nas legislações francesas, mormente no Código de Napoleão, também adotou essa direção, fincando na busca da culpa o fundamento para a existência da obrigação de reparar o dano causado, teoria essa que, originalmente, credita-se aos juristas DOMAT e POTHIER.
CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, nesse particular, leciona que "a doutrina da culpa assume todas as versas de uma fundamentação ostensiva e franca com o Código de Napoleão. Sobre este preceito a corrente exegética assentou que o fundamento da reparação do dano causado é a culpa. Os autores franceses desenvolveram-na em seus caracteres e construíram por todo o século passado, e ainda neste século, a doutrina subjetiva" [05].
O Código Civil anterior, de 1916, adotou expressamente essa concepção – da responsabilidade subjetiva – eis que no bojo de seu artigo 159 estava expressamente prevista a idéia de conduta culposa do agente como pressuposto para o dever de indenizar.
O novel Código Civil, de 2002, ao que tudo indica, manteve-se fiel à visão subjetiva ora em comento, preceituando no artigo 186 que: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
A par disso tudo, também é escorreito afirmar que, em determinadas hipóteses legalmente especificadas, também fora fixada, desde os primórdios de nosso ordenamento jurídico, em paralelo, a responsabilidade chamada por objetiva, que também surgiu no direito francês, precisamente com SALEILLES e JOSSERAND, no século XIX.
Dita teoria tem espeque não na idéia de culpa (aspecto subjetivo), mas na idéia do risco (aspecto objetivo). A responsabilidade então, em determinados casos, prescindiria da noção de culpa, bastando que se pudesse estabelecer nexo etiológico ou de causalidade entre o ato ilícito e o dano perpetrado.
Logo a doutrina cuidou de sistematizar o assunto, enquadrando, a título de regra geral, como já exposto, a responsabilidade civil subjetiva, cabendo à responsabilidade civil objetiva apenas aquelas poucas hipóteses expressamente previstas em lei, em caráter numerus clausus, demonstrando sua manifesta feição excetiva no seio do ordenamento jurídico.
No Direito Brasileiro, como exemplo dessas disposições que adotaram a teoria do risco, fincando estacas para uma responsabilidade sem culpa, posso apontar a Lei n. 8.213/91, que assegura indenizações previdenciárias independentemente de culpa do acidentado, Lei de Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), o Código Brasileiro de Aeronáutica (Decreto-lei n. 483/38), a Lei Antitruste (Lei n. 8.884/94), a Lei de Atividades Nucleares (Lei n. 6.453/97) e as Leis n. 6.194/74 e 8.441/92, que cuidam do seguro obrigatório de acidente de veículos – DPVAT, dentre outras disposições.
Também a Lex Legum de 1988 assentou hipóteses de aplicação de responsabilidade objetiva, nos casos da reparação de danos praticados nas esferas pública (artigo 37, parágrafo 6º), nuclear (artigo 21, inciso XXIII, alínea c) e ambiental (artigo 225, parágrafo 3º).
A responsabilidade baseada no risco, porém, recrudesceu suas bases com o advento do famoso Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC (Lei n. 8.079/90), que, decididamente, na minha ótica, iniciou uma verdadeira "reviravolta" no campo da responsabilidade civil ao estabelecer uma responsabilidade ampla, objetiva e solidária, de modo a açambarcar todos os integrantes da cadeia de consumo.
O CDC, por incorporar a noção do sistema no fault e por concretizar vetores protetivos e de justiça social, recebeu de JORGE PINHEIRO CASTELO o honroso apelido de "o Código Civil da Pós-Modernidade" [06].
Mas, se o CDC iniciou mudanças significativas no campo da responsabilidade civil, o novo CC tratou de efetivá-las...
De fato, o novel diploma positiva a responsabilidade objetiva em diversas de suas disposições, a saber: artigos 187, 933, 936, 937, 938 e 1.299.
Porém, o dispositivo de maior importância no campo da responsabilidade civil sem culpa está, sem sombra de dúvidas, no parágrafo único, do artigo 927, do CC, que dispõe: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem".
O legislador, cônscio da complexidade da vida moderna e diante da multiplicidade dos casos que se afigurava praticamente impossível ao lesado provar a culpa do agente, acabou por acolher orientação normativa tendente a facilitar a reparação da vítima, fundamentando-se, assim, em princípios de justiça, eqüidade, solidariedade e socialização do direito, tudo em harmonia com a Constituição Federal, que estabelece a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como, respectivamente, um dos fundamentos e um dos objetivos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III, e artigo 3º, inciso I).
Vê-se que o comando legal acima destacado carrega consigo dois pontos de abertura para a responsabilidade civil objetiva. O primeiro, já tradicional, consistente em atribuir ao legislador a tarefa de pontuar as hipóteses autorizadoras de aplicação desse sistema no fault. O segundo, porém, constitui a grande novidade, porquanto abre larga porta para que o próprio juiz aponte, sabiamente, caso a caso, a ocorrência da espécie que reclamaria a aplicação do referido preceito.
Perceba-se, ainda, que a dicção usada revela verdadeira norma de conceito aberto, o que amplia ainda mais a possibilidade de reconhecimento, por parte do julgador, da responsabilidade objetiva em face das atividades que, dentro de seu prudente arbítrio, enquadra como de risco.
Insta registrar, também, que o texto não explicita o que pretende dizer quando faz menção a tais "atividades de risco", cabendo à doutrina e à jurisprudência, então, a árdua tarefa de estudar o tema e delimitar o alcance jurídico da referida expressão.
Isso, no meu sentir, constitui uma verdadeira revolução no estudo da responsabilidade civil no Direito Brasileiro, no que sigo na mesma senda dos jovens juristas PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO [07].
Tanto isso é verdade que, com o advento do novo Código Civil, mormente em razão do disposto no parágrafo único de se artigo 927, iniciou-se outro profundo e acalorado debate entre os estudiosos: haveria tal comando legal verdadeiramente provocado profundas mudanças na teoria da responsabilidade civil?
RUI STOCO, tangente a tal questionamento, afirma que "a responsabilidade objetiva estabelecida no artigo mencionado é exceção à regra, e como tal deve ser tratada, de modo que a aplicação dessa teoria é restrita, posto estabelecida em numerus clausus" [08].
Diferentemente, GUSTAVO TEPEDINO entende que, com o atual Código Civil, foi estabelecido, no plano da responsabilidade civil, um critério dualista: a responsabilidade com culpa (subjetiva) e a responsabilidade sem culpa (objetiva). Sustenta o insigne jurista que o artigo 186 e o parágrafo único do artigo 927 daquele Codex criam regras distintas e, analisados sistematicamente, perpetram nova visão, marcada por uma dualidade de critérios (IV Fórum Brasil de Direito, realizado em Salvador/BA, palestra no dia 30.05.03).
De semelhante modo, leciona RAIMUNDO SIMÃO DE MELO que "hoje a responsabilidade objetiva pelo risco no nosso sistema brasileiro, a partir do novo Código Civil, é uma outra forma de responsabilidade ao lado da responsabilidade subjetiva, não podendo ser considerada como mera excepcionalidade" [09].
E mais: há ainda uma terceira corrente de entendimento, no sentido de que, diante de uma sociedade cujos riscos se potencializam ao extremo, a responsabilidade objetiva, nesse novo panorama jurídico, teria invertido aquela clássica polaridade, de modo a se trombetear a necessidade de sua fixação como verdadeira regra geral, atribuindo-se à responsabilidade subjetiva, então, uma aplicação excepcional, pontual mesmo. Essa a posição de GUSTAVO PASSARELLI DA SILVA [10].
Percebe-se, de todo esse contexto, que o ordenamento jurídico caminha, há um certo tempo, em direção à objetivação da responsabilidade civil.
Noutras palavras: a idéia de culpa vem sendo afastada paulatinamente do núcleo essencial da responsabilidade civil, a ponto de se afirmar que, hoje, a responsabilidade objetiva não constituiria um simples sistema excetivo, mas sim um sistema paralelo, de igual valia e de semelhante feição normativa, ou até mesmo, quiçá, teria gravitado para se constituir, agora, em verdadeira regra geral na atual sistemática da responsabilidade civil no direito pátrio.
Trata-se, como se vê, de instigante reflexão.
Fica o convite ao aprofundamento do tema...
Notas
- STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6ª Edição, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 118.
- BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. Coord. Yussef Said Cahali, 2ª edição, São Paulo : Saraiva, 1988, p. 93-95.
- RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Responsabilidade Civil. 11ª Edição, São Paulo : Saraiva, 1987.
- CRETELLA JUNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. São Paulo : Saraiva, 1980, p. 7-8.
- PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 2ª Edição, Rio de Janeiro : Editora Forense, 1990, p. 19.
- CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito Material e Processual do Trabalho e a Pós-Modernidade – A CLT, o CDC e as Repercussões do Novo Código Civil. São Paulo : LTr, 2003.
- GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 151.
- STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6ª Edição, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 165
- MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético. São Paulo : LTr, 2004, p. 203.
- SILVA, Gustavo Passarelli da. A responsabilidade objetiva no direito brasileiro como regra geral após o advento do novo Código Civil. Portal jurídico jusnavigandi – http://jus.com.br. Acesso em: 21.02.2008.