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Prescrição penal virtual no Supremo Tribunal Federal.

Uma questão de princípios

Agenda 03/03/2010 às 00:00

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Conceito e fundamento da prescrição virtual. 3. Supostas violações a princípios constitucionais alegadas pela Suprema Corte. 4. Falta de fundamentação jurídica e incoerência lógica dentro da sistemática processual penal dos dias atuais. 5. Conclusão. 6. Notas Bibliográficas. 7. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

Em se tratando de causas extintivas de punibilidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre foi firme e iterativa ao não admitir a chamada prescrição penal virtual, antecipada, ou "em perspectiva", que nada mais é, em singelas palavras, do que o reconhecimento antecipado (geralmente na fase do inquérito policial) da prescrição retroativa; tendo-se em vista a provável pena a ser posteriormente aplicada ao acusado no caso concreto.

Isto porque de acordo com o STF, essa tal modalidade de prescrição, ao contrário da prescrição retroativa, não encontra previsão legal no Código Penal, violando, por conseguinte, além do princípio da legalidade, diversos princípios constitucionais, tais como: presunção de inocência e devido processo legal.

A importância do tema é tamanha, ressalte-se, que acaba de chegar à Suprema Corte os Habeas Corpus nº 102.439/MT e 102.434/PA nos quais se discute o crime - incomum e de extrema importância - da redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal), sendo uma das principais teses de defesa justamente a alegação da prescrição virtual.


2. CONCEITO E FUNDAMENTO DA PRESCRIÇÃO VIRTUAL

No que tange às causas extintivas da punibiidade, o fator tempo ganhou destaque quando da análise da prescrição, decadência e perempção, cada qual tendo o momento próprio de verificação, sendo que "a prescrição é a detentora de maior complexidade, importância e a de maior aplicação", na visão de Fábio Guedes de Paula MACHADO [01].

Nesse meio, a prescrição virtual nada mais é que uma modalidade de prescrição na qual o magistrado simula, tendo por base os aspectos objetivos e subjetivos do crime, a pior sanção possível para o réu se condenado fosse ao final da instrução criminal e, sendo o caso, vislumbra o esgotamento do prazo prescricional já no momento da instauração da ação penal, ou mesmo em seu curso.

Desse modo, tal espécie de prescrição encontra seu principal fundamento na falta de interesse de agir que, por conseguinte, acarreta a ausência de justa causa para o início ou prosseguimento da ação penal.


3. SUPOSTAS VIOLAÇÕES A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ALEGADAS DE FORMA ITERATIVA PELO STF

A Suprema Corte tem repelido sistematicamente a denominada prescrição antecipada pela pena em perspectiva desde o RHC nº 66.913, 1ª T, Rel. Min. SYDNEY SANCHES (j. em 1988). A propósito, o Min. RICARDO LEWANDOWSKI, já destacou que "conforme a remansosa jurisprudência desta Corte, não se admite a chamada prescrição antecipada por ausência de previsão legal" (HC nº 94.338/PR, j. em 31.03.2009).

Ressalte-se que o Superior Tribunal de Justiça segue à risca o entendimento sedimentado pelo Tribunal Constitucional, invocando, inclusive, as doutrinas de Júlio Fabrinni MIRABETE e José FREDERICO MARQUES, como ocorreu no julgamento do RHC nº 24.083/PR, rel. Min. JORGE MUSSI, j. em 11.11.2008).

E, de acordo com a jurisprudência iterativa do STF, já foram alegadas, diante do possível reconhecimento da prescrição virtual violações aos seguintes postulados constitucionais: legalidade, presunção da inocência e devido processo legal.


4. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA E INCOERÊNCIA LÓGICA DENTRO DA SISTEMÁTICA PROCESSUALÍSTICA PENAL PÁTRIA

Em que pese tal posicionamento do Supremo Tribunal Federal, não se pode negar que a prescrição penal antecipada, em "perspectiva", projetada ou virtual está sendo expressamente prevista pelo art. 37 do Anteprojeto da Reforma do Código de Processo Penal, in fine:

Compete ao Ministério Público determinar o arquivamento do inquérito policial, seja por insuficiência de elementos de convicção ou por outras razões de direito, seja, ainda, com fundamento na provável superveniência de prescrição que torne inviável a aplicação da lei penal no caso concreto, tendo em vista as circunstâncias objetivas e subjetivas que orientarão a fixação da pena (destacamos).

E qual o motivo, então, para essa espécie de prescrição ser agora prevista legalmente? Simplesmente, não existem motivos substanciais para a sua proibição na sistemática processual penal pátria, estando ela plenamente de acordo com os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência.

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A propósito, Aury LOPES JR. [02] afirma com propriedade a necessidade de o processo penal ser orientado e substancialmente democratizado pela Constituição cidadã, não podendo ser tolerado "(...) um processo penal autoritário e típico de um Estado-Policial, pois o processo deve adequar-se à Constituição e não o contrário".

Aliás, é de se ressaltar que a declaração de extinção da punibilidade pela ocorrência de prescrição, por ser matéria de ordem pública, se dá em qualquer momento do procedimento, independente de sentença de mérito. Quantos não são os casos em que se reconhece a prescrição em abstrato, extinguindo, consequentemente, a punibilidade do agente, sem que haja juízo de mérito?

Deste modo, percebe-se icto oculi que não procede o simplório argumento de que eventual aplicação da prescrição virtual transgrediria a garantia constitucional da presunção de inocência. Isto porque a decisão que reconhece a prescrição antecipada apenas trabalha com a possibilidade de o indiciado ou réu vir a ser condenado. Ora, tal possibilidade efetivamente existe e decorre efetivamente dos indícios de autoria exigidos para o oferecimento e recebimento da peça acusatória.

Na esteira de TOURINHO FILHO [03], nada impede que o Juiz, levando em conta as circunstâncias do caso concreto e entendendo que se for proferir sentença condenatória haverá a prescrição retroativa, consulte a Defesa sobre se haverá, ou não, interesse no prosseguimento do feito.

Ora, a prescrição antecipada nada mais é do que o reconhecimento da própria prescrição retroativa (que tem previsão legal), antes da sentença, com base na pena a que o réu seria condenado, evitando assim, o desperdício de tempo na apuração de coisa nenhuma, pois já se sabe, antecipadamente, que o resultado será a extinção da punibilidade.

Destarte, a suposta ofensa ao princípio da legalidade é rebatida com a invocação do art. 395, inciso III, da Lei Instrumental Penal, que permite a rejeição da denúncia quando faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.

A propósito, ensina Carlos MAXIMILIANO [04] que "deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". Prefere-se, pois, na visão do jurista, "(...) a exegese de que resulte eficiente a providência legal ao válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, e este, juridicamente nulo".

Já para Ricardo Pieri NUNES, citado por Afonso JAWSNICKER [05], não procede a assertiva de que o reconhecimento antecipado da prescrição retroativa não pode ser acolhida à míngua de previsão legal em seu abono, já que dentro do atual contexto da evolução da ciência jurídica, identifica-se "um nítido esgotamento do clássico modelo positivista, como início de uma fase onde desponta a normatização de postulados" (grifo nosso).

No limite da crise da dogmática, aliás, Luís Roberto BARROSO [06] aduz que a estrutura do saber jurídico-penal padece de certa patologia, e preleciona que "(...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior" (destacamos).

Isto é, de acordo com o autor, deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.

De fato, a constatação do reconhecimento da prescrição penal deve se dar caso a caso, aproximando-se o juiz da sociedade, deixando-se penetrar de concepções que não obstacularizem o desenvolvimento social e jurídico do Direito Penal enquanto sistema aberto que deve ser, extraindo a idéia nuclear do Direito Penal moderno que é a de "buscar ao caso concreto uma solução mais justa, ainda que tenha que posicionar a dogmática em segundo plano", conforme preleciona Fábio Guedes de Paula MACHADO [07].

Sob outro ângulo, também não se pode aceitar a tese de que a prescrição antecipada infringe o princípio do devido processo legal. Segundo JAWSNICKER [08], a razão é simples. Tal postulado diz que ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Pois bem, a decisão que reconhece a prescrição antecipada não priva o indiciado ou acusado de coisa alguma. Pelo contrário, o livra de um processo sem justa causa!

Não se pode esquecer que o garantismo penal, teoria desenvolvida a partir das garantias inerentes ao cidadão enquanto reflexo do princípio constitucional da dignidade humana - e não como cessão de liberdade ou direito dados pelo Estado ao cidadão -, e as novas estruturas de processo serviram para fundamentar o que entendemos ser o devido processo penal, agora muito mais preocupado em limitar a atuação do Estado na persecução criminal.

Por outras palavras, não se vê utilidade, nem ao menos necessidade, de mover todo um aparato estatal (Promotor de Justiça, Magistrado, Defensoria Pública, etc.) sabendo que, ao final, a pena não será aplicada em razão da ocorrência da prescrição. Em tais hipóteses, a manutenção da persecutio criminis in judictio se mostra um non sense, em perfeito descompasso com os modernos princípios de direito processual (eficiência, economia, instrumentalidade, etc.).

Nesse lume, é oportuno deixar vincado que, seguindo uma tendência internacional de redução do Direito subjetivo do Estado, novas teorias que se converteram em causas de afastamento da potestade surgiram no interior da teoria do delito; a se ver pelo princípio da insignificância, da teoria da imputação objetiva, ou das causas supralegais de exclusão da ilicitude e da culpabilidade.

Por sua vez, quanto ao princípio da obrigatoriedade da ação, argumenta-se que o réu estaria sujeito a um grande prejuízo, uma vez que não teria a possibilidade de ser absolvido da acusação que lhe imputam. Ora, como bem aponta TOURINHO FILHO [09], tal justificativa não prospera, pois a própria prescrição pela pena in abstracto – que conta com a previsão legal – impede o prosseguimento do curso processual e, via de consequência, o direito de o réu apelar para comprovar a sua inocência.


5. CONCLUSÃO

Na sistemática processual penal dos dias atuais, não tem lógica, ilude as garantias da liberdade e frauda a finalidade do processo penal constitucional o atual posicionamento do STF de não reconhecer uma espécie de prescrição que, inclusive, já está sendo prevista no próprio Anteprojeto do Código Processual Penal.

Trata-se, a bem da verdade, de uma jurisprudência atrelada a um conservadorismo estéril. Não se pode tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado Policial, pois é o Código de Processo Penal que deve adequar-se à Constituição e não o contrário.

Os argumentos alegados pelo Supremo - contrários ao reconhecimento da prescrição virtual -, são inconsistentes e falaciosos, uma vez que, partindo-se da premissa que deve o processo penal ser entendido como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu, jamais se poderia admitir que argumentos de lógica formal pudessem subjugar o direito à liberdade do acusado - até por força do princípio processual penal do favor libertatis.

O problema - se é que existe -, é muito fácil de ser contornado: basta que, antes da decretação da prescrição, o investigado ou réu seja intimado para que informe se concorda com a providência. Caso sua anuência não seja colhida, o processo segue em frente.

Ora, é preciso acordar para a realidade; ignorar o suplício que é um processo penal sem justa causa e se fiar no simplório argumento, alegado pelos Magistrados, de que (por exemplo) o réu precisa provar sua inocência, beira à hipocrisia. De fato, quantos não são os casos em que se reconhece a prescrição em abstrato, extinguindo, consequentemente, a punibilidade do agente, sem que haja juízo de mérito?


6. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: prescrição funcionalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.201.
  2. LOPES JR., AURY. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumun Juris, 2003, p.12.
  3. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31 ed. rev. e atual. Saraiva, São Paulo, 2009, v.1., p.595.
  4. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 7.ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961, p.210, n.179.
  5. JAWSNICKER, Afonso. Prescrição penal antecipada, 2009, p.114.
  6. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.70)
  7. MACHADO, Fábio Guedes de Paula, Op. cit., p.199.
  8. JAWSNICKER, Afonso. Op. cit., p.140.
  9. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p.597.

7. BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumun Juris, 2003.

MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: prescrição funcionalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 7.ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961.

JAWSNICKER, Afonso. Prescrição penal antecipada, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 31 ed. rev. e atual. Saraiva, São Paulo, 2009, v.1.

Sobre o autor
Júlio Medeiros

Advogado criminalista. Professor de Direito Penal da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Júlio. Prescrição penal virtual no Supremo Tribunal Federal.: Uma questão de princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2436, 3 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14441. Acesso em: 8 nov. 2024.

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