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A Suprema Corte dos Estados Unidos e o controle difuso de constitucionalidade das leis

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Agenda 24/03/2010 às 00:00

A Suprema Corte dos Estados Unidos é responsável pelo desenvolvimento do controle difuso de constitucionalidade das leis. A criação do "judicial review" iniciou-se no famoso julgamento do caso Marbury v. Madison (1803). Em 02 de março de 1801, um membro do partido federalista chamado Willian Marbury foi nomeado para o cargo de juiz de paz no Distrito de Columbia. Marbury, assim como vários outros federalistas, foram nomeados para importantes cargos governamentais criados pelo Congresso norte-americano nos últimos dias da presidência de John Adams. Tais juízes nomeados no apagar das luzes do governo de John Adams ficaram conhecidos como "Midnight Jugdes" ou, simplesmente, juízes da meia-noite. [01] A grande questão que chegou ao conhecimento da Suprema Corte dos Estados Unidos era se a nomeação de Marbury poderia ser mantida. O juiz Marshall da Suprema Corte proferiu o entendimento da corte, ao estabelecer que, em última análise, a Constituição dos Estados Unidos era a lei fundamental e universal da nação e que todos os atos contrários aos princípios e ao texto constitucional deveriam ser evitados. Dessa forma, Marshall concluiu que quando uma lei estadual ou um ato governamental entra em conflito com a Constituição Federal, a lei maior da nação, o ato, em questão, é inválido, por ser inconstitucional. Esse caso histórico estabeleceu o poder de revisão judicial dos atos do poder legislativo e do poder executivo, quando contrários à Constituição, criando-se aquilo que foi chamado de "judicial review" no direito norte-americano. [02]

Dessa maneira, pode-se dizer, sem medo de errar, que o mérito da criação do controle jurisdicional de constitucionalidade coube ao juiz da Suprema Corte norte-americana Marshall, no caso Marbury v. Madison (1803). No célebre julgamento, invertendo a ordem de exame das questões preliminares, Marshall decidiu que Madison agira de forma ilegal ao negar a posse de Marbury, e de acordo com os princípios aplicáveis do common law, havia remédio para tal caso, o mandamus, pelo qual Madison poderia ter compelido a dar posse a Marbury. Não cabia o writ no presente caso, no entanto, porque o pedido foi feito diretamente a Suprema Corte, cuja competência originária era estritamente definida na Constituição e não poderia ser dilatada pela Lei Judiciária de 1789. Assim, Marshall decidiu que era inconstitucional o art. 13 dessa lei, que atribuíra competência originária à Suprema Corte para expedir ordens de mandamus. Ao mesmo tempo, Marshall evitou que a Suprema Corte entrasse em conflito com o Poder Executivo e na mesma decisão afirmou a possibilidade de o Poder Judiciário anular as leis votadas pelo Congresso norte-americano. [03]

Após a decisão no caso Marbury v. Madison (1803), o sistema de controle de constitucionalidade dos Estados Unidos passou a ser entendido como um sistema difuso, eis que todos os juízes e tribunais podem apreciar a constitucionalidade das leis, por requerimento dos litigantes ou ex officio. Além disso, o controle de constitucionalidade norte-americano tornou-se um poder inerente a todos os juízes e a lei considerada inconstitucional não era anulada, mas considerada nula. Dessa forma, o Congresso Nacional não se manifestava sobre a lei considerada nula, por entender que ela nunca existiu. [04]

No entanto, o controle de constitucionalidade exercido por meio de um órgão jurisdicional levantou um grave problema teórico, qual seja, o fato de um juiz ou tribunal investido das faculdades desse controle assumir uma posição eminentemente política. Com efeito, o órgão jurisdicional, ao adquirir a supremacia decisória, no tocante à verificação da constitucionalidade dos atos do poder executivo e legislativo, estaria tutelando o próprio Estado. Os que se manifestam de forma contrária a esse tipo de controle jurisdicional de constitucionalidade sustentam que esse controle prejudicaria a separação e o livre exercício dos poderes. Mas, em geral, o controle jurisdicional de constitucionalidade é bem visto. BONAVIDES afirma, ainda, que não há dúvida de que o controle jurisdicional se compadece melhor com as constituições rígidas e, sobretudo, como centro de sua inspiração primordial, qual seja, a garantia das liberdades públicas, a guarda e a proteção de alguns valores liberais que as sociedades livres reputam irrenunciáveis. Pode-se assim dizer que o controle jurisdicional é a base de sustentação do Estado de Direito, onde ele se alicerça sobre o malfadado formalismo hierárquico das leis. [05]

É importante, ainda, destacar que Marshall, em sua decisão célebre, partiu para o seguinte raciocínio jurídico: ou a Constituição controla todo o legislativo que a contrarie, ou o legislativo, por um ato ordinário, poderá modificar a constituição. Assinalou, ainda, Marshall, que é dever do Poder Judiciário declarar o direito. Nos casos de colisão de uma lei com a constituição, o tribunal há de decidir essa causa e estabelecer quem irá prevalecer. Determinar qual das regras antagônicas deve prevalecer à espécie litigiosa consiste na verdadeira essência do Poder Judiciário. [06]

Embora não tenha contrariado os republicanos, o acórdão da Suprema Corte dos Estados Unidos não despiu o Tribunal máximo de sua competência, e pelo contrário, afirmou com convicção, o que antes era dúvida. Chamou para a Suprema Corte, em caráter definitivo, a prerrogativa de ser a guardiã da Constituição, a detentora da última palavra em matéria de constitucionalidade. [07]

Assim sendo, a decisão de Marshall transformou-se em um ícone do direito norte-americano, pois antes de Marbury v. Madison (1803), a separação de poderes e a teoria dos "checks and balance" não passavam de noções abstratas. Com a decisão de Marshall, houve a concretização da teoria de Montesquieu da separação de poderes. [08]

Posteriormente, no caso Martin v. Hunter’s Lessee (1816), Lorde Fairfax tinha uma propriedade no estado norte-americano da Virginia. Ele fugiu para a Inglaterra durante a independência dos Estados Unidos e morreu no ano de 1781. Seu sobrinho Martin, cidadão inglês, herdou sua fazenda. No ano seguinte, uma lei estadual da Virginia estabeleceu que a propriedade em discussão era, na verdade, do Estado e a transferiu para Hunter. [09]

Quando a questão chegou ao conhecimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, indagou-se se o poder da Suprema Corte se estendia sobre a decisão proferida pela corte estadual da Virginia, que havia decidido que a propriedade em questão pertencia ao estado da Virginia. A Suprema Corte norte-americana rejeitou a tese apresentada pelo estado da Virginia de que a soberania federal e a soberania estadual eram equivalentes. A partir de uma análise constitucional apurada, entendeu-se que a Suprema Corte tinha o poder de reformar as decisões das cortes estaduais para assegurar a uniformidade da aplicação das leis e cumprir, na sua integralidade, o mandamento da cláusula de supremacia da constituição sobre as leis estaduais. [10]

Outro precedente interessante é o caso Cohens v. Virginia (1821). Um ato legislativo federal autorizou a realização de uma loteria no Distrito de Columbia. Os irmãos Cohens, então, realizaram a venda de bilhetes de loteria no estado da Virginia, o que violava uma lei estadual. Por essa venda, os irmãos Cohens foram condenados pela Corte estadual da Virginia. A questão que chegou ao conhecimento do Excelso Tribunal, em síntese, era se a Suprema Corte tinha o poder de rever a decisão proferida pela corte estadual da Virginia. Em uma decisão unânime, a Suprema Corte estabeleceu que tinha jurisdição para rever procedimentos criminais estaduais. O juiz Marshall reconheceu que a Suprema Corte tinha competência para se manifestar em todos os casos em que houvesse matéria constitucional. Além disso, Marshall também declarou que a legislação estadual sobre loteria regulava uma matéria de interesse local e que o tribunal estadual agiu corretamente ao punir os irmãos Cohens. [11]

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Apesar do Estado da Virginia ter vencido no mérito a causa, com a condenação dos irmãos Cohens, o julgamento no caso Cohens v. Virginia representou uma imensa derrota para o Estado da Virginia, pois o estado apostou todas as suas fichas na preliminar de incompetência da Suprema Corte em rever as decisões da corte estadual. Sendo assim, a Suprema Corte entendeu que, como guardiã da Constituição, tinha competência em grau de recurso para rever todas as decisões das cortes estaduais. Tal conclusão, que aparentemente pode parecer óbvia, na época era muito discutida nos Estados Unidos. Isso ocorre porque, nos Estados Unidos, a idéia de federação e de autonomia dos estados membros é muito forte. Dessa forma, a decisão no presente caso mostrou que os estados da federação tinham autonomia, mas não tinham soberania, de forma que as decisões proferidas pelos tribunais estaduais poderiam ser revistas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, para garantir a supremacia da constituição. Esse era o preço pago pelo estado da Virginia para pertencer à federação norte-americana. [12]

Já no caso South Carolina v. Katzembach (1966) discutia-se a Lei de Direito ao Voto de 1965, que proibia os estados de utilizarem testes, no intuito de impedir cidadãos analfabetos ou de pouca instrução de exercerem seu direito de votar. Os fiscais federais tinham, inclusive, o poder de intervir nas eleições estaduais para investigar ilegalidades cometidas durante as eleições. O estado de South Carolina questionou a lei federal, com a alegação de que ela violaria o direito dos estados de programar e controlar suas eleições. [13]

A Suprema Corte dos Estados Unidos, ao analisar a questão, manteve a lei de direito ao voto. Sustentou que a Emenda nº V da constituição norte-americana não dava ao Congresso nacional poderes para prevenir a discriminação racial durante as eleições e que a lei federal era uma resposta legítima para as diversas ações que impediam os negros de votarem desde a adoção da Emenda nº XV em 1870. Dessa forma, declarou-se a constitucionalidade da Lei de Direito ao Voto. Apenas para fins didáticos, eis o teor do disposto nas emendas nº V e XV da constituição norte-americana [14], in verbis:

"Emenda V: Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização" (...)

"Emenda XV: O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não poderá ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos, nem por qualquer Estado, por motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão" (grifo nosso).

Já em Kent v. United States (1966), Kent foi preso aos 16 anos, acusado da prática de invasão de domicílio, roubo e estupro. Por se tratar de um adolescente, ele estava sujeito a uma corte de menores do Distrito de Columbia, que tinha competência para o julgamento de crimes praticados por crianças e adolescentes. No entanto, após uma avaliação sumária do grau de discernimento do adolescente, essa corte se declarou incompetente para julgar o adolescente e o encaminhou para um tribunal do Distrito de Columbia, onde Kent foi condenado. [15]

No presente caso, a questão que chegou ao conhecimento da Suprema Corte era se o ato da corte de menores de se declarar incompetente, de forma sumária, para o julgamento de Kent era, ou não, válido. O Excelso Tribunal norte-americano decidiu que a renúncia da jurisdição da Corte de Menores era inválida. Em uma decisão de 05 votos a 04 proferida em março de 1966, a Suprema Corte reformou a decisão da corte de menores e entendeu que o procedimento correto era uma "investigação completa" sobre o discernimento do menor, o que não foi seguido no presente caso. Asseverou-se, ainda, que a possibilidade de Kent ser, ou não, julgado como adulto não poderia ser determinada, sem que houvesse alguma representação em defesa do interesse do menor. Dessa forma, o caso foi mandado de volta para a corte de menores para uma nova oitiva de Kent, com a presença de um advogado, garantindo-se, assim, a aplicação do princípio do devido processo legal e o da ampla defesa. Como reflexo dessa decisão, o caso Kent v. United States (1966) originou uma série de reformas nas normas processuais relativas a crimes praticados por menores nos Estados Unidos, com o aumento da proteção constitucional conferida às crianças e aos adolescentes. [16]

Questão igualmente importante foi enfrentada no caso Bond v. Floyd (1966) [17]. O caso teve início alguns meses depois da eleição de um negro chamado Bond para o poder legislativo do estado da Georgia. Uma organização de defesa dos direitos civis dos negros, de que Bond era um membro, distribuiu uma série de panfletos contra a política governamental na guerra do Vietnam. Bond assinou o manifesto que dizia, entre outras coisas, que os negros eram tratados como cidadãos de 2ª classe e que ele era contra todos os tipos de guerra, por ser um pacifista. Os membros do Poder Legislativo local, ao tomarem conhecimento do manifesto, apresentaram diversas petições no sentido da cassação do mandato de Bond, por entenderem que o deputado tinha violado a lei, colocado em descrédito a casa legislativa e, ainda, descumprido o juramento de defender a constituição. Bond questionou as petições apresentadas pelos outros parlamentares, com o argumento de que elas eram motivadas por discriminação racial e que elas estariam impedindo ele de exercer o direito estabelecido pela Emenda nº I da Constituição norte-americana [18], que assim dispõe, in verbis:

"Emenda I: O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos"

Posteriormente, Bond foi ouvido por um comitê da casa e, posteriormente, perdeu seu assento na casa legislativa. Por fim, o Tribunal Estadual entendeu que Bond foi submetido ao devido processo legal e que havia razões para o poder legislativo local retirar Bond de seus quadros, uma vez que ele havia agido com excesso de críticas em relação à política governamental sobre a Guerra do Vietnam, tendo em vista que ele tinha feito um juramento de defender o Estado e a Constituição Federal. [19]

A Suprema Corte dos Estados Unidos, ao enfrentar o presente caso, entendeu que a decisão da corte local violou o disposto na Emenda nº I da Constituição norte-americana. Lembrou, na ocasião, que a Emenda nº XIV tornou aplicável a Emenda nº I aos estados norte-americanos. Por fim, entendeu que os estados podiam exigir um juramento para seus legisladores, mas o juramento não poderia limitar a capacidade dos membros do poder legislativo de expressar suas opiniões e visões a respeito da política nacional. [20]

Por fim, para a melhor compreensão do presente caso, eis o teor da Emenda nº XIV da constituição federal: [21]

"Emenda nº XIV. Seção 1: Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência, Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.

Seção 2: O número de representantes dos diferentes Estados será proporcional às suas respectivas populações, contando-se o número total dos habitantes de cada Estado, com exceção dos índios não taxados; quando, porém, o direito de voto em qualquer eleição para a escolha dos eleitores, do Presidente e do Vice-Presidente dos Estados Unidos, ou dos membros de sua legislatura, for recusado a qualquer habitante desse Estado, do sexo masculino, maior de 21 anos e cidadão dos Estados Unidos, ou quando esse seu direito for de qualquer modo cerceado, salvo o caso de participação em rebelião ou outro crime, será a respectiva representação estadual reduzida na mesma proporção que a representada por esses indivíduos em relação à totalidade dos cidadãos de sexo masculino, maiores de 21 anos, no Estado.

Seção 3: Não poderá ser Senador ou Representante, ou eleitor do Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer emprego civil ou militar subordinado ao Governo dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados aquele que, como membro da legislatura de um Estado, ou funcionário do Poder Executivo ou judiciário desse Estado, havendo jurado defender a Constituição dos Estados Unidos, tenha tomado parte em insurreição ou rebelião contra essa Constituição, ou prestado auxilio e apoio a seus inimigos. O Congresso pode, porém, mediante o voto de dois terços dos membros de cada uma das Câmaras, remover a interdição.

Seção 4: A validade da dívida pública dos Estados Unidos, autorizada pela lei, incluindo as dívidas contraídas para o pagamento de pensões e de recompensas por serviços prestados na repressão de insurreição ou rebelião, não será posta em dúvida. Todavia, nem os Estados Unidos nem qualquer dos Estados deverão assumir ou pagar qualquer dívida ou obrigação contraída para auxiliar insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos, nem qualquer indenização pela perda ou emancipação de escravos; todas estas dívidas, obrigações, ou indenizações serão consideradas ilegais e nulas.

Seção 5: O Congresso terá competência para executar, com legislação apropriada, as disposições deste artigo" (grifei).

Outra controvérsia enfrentada pela Suprema Corte norte-americana foi o caso Johnson v. Robison (1974). Johnson foi dispensado do serviço militar com a alegação de objeção de consciência, mas cumpriu prestação civil alternativa. Posteriormente, Johnson teve negado benefícios educacionais concedidos pela Lei de Readaptação de Veteranos de 1966. Johnson, então, resolveu questionar judicialmente a decisão administrativa com base na violação do disposto nas emendas nº I e V da constituição norte-americana. [22]

Após superada a discussão se a Suprema Corte poderia reexaminar a constitucionalidade da legislação de benefícios a veteranos, restou decidido que todos tinham direito ao igualdade de tratamento perante a lei. No entanto, entendeu-se que a distinção qualitativa e quantitativa entre o serviço militar (06 anos de compromisso e grande prejuízo a vida civil) e a prestação de serviços civis alternativos (02 anos de compromisso e a não necessidade de abandono da vida civil) formava uma base racional para que o Congresso norte-americano estabelecesse distinções que limitassem os benefícios educacionais apenas para os veteranos que prestaram serviço militar em combate. A Corte asseverou que a lei dos veteranos não violava o direito do recorrente à liberdade religiosa. Por fim, concluiu o tribunal que o recorrente foi excluído do benefício não por interferência de sua liberdade religiosa, mas sim porque não havia razoabilidade para que lhe fosse concedido um benefício totalmente incompatível com o intuito do legislador, que era o de promover a readaptação à vida civil dos veteranos de guerra. [23]

Em 1974, nos Estados Unidos, outro caso de grande repercussão chegou ao conhecimento da Suprema Corte. Trata-se do precedente United States v. Nixon (1974). O caso Watergate representou um dos maiores escândalos da política norte-americana, que culminou com o afastamento do Presidente Nixon da presidência dos Estados Unidos. O presente caso teve início quando 07 (sete) dos assessores ligados ao Presidente Nixon foram indiciados por seu envolvimento no caso "Watergate". O Procurador da República alegou que Nixon e seus assessores realizaram gravações de áudio no salão oval da Casa Branca. Nixon defendeu-se, ao dizer que estava imune de qualquer acusação, com a alegação de que tinha uma prerrogativa decorrente do cargo chamada de "executive privilege", ou seja, ele tinha o direito de obter informações de outros órgãos governamentais para preservar o sigilo das comunicações e para salvaguardar os interesses nacionais. Sendo assim, a grande questão que chegou ao conhecimento da Suprema Corte era se o presidente da república tinha o direito de obter as informações confidenciais, usando seu "executive privilege", e, ainda, se o Presidente tinha imunidade total em relação ao "judicial review", ou seja, a possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário de seus atos executivos. [24]

Após uma análise pormenorizada dos fatos, a Corte entendeu que nem a doutrina da separação de poderes, nem a necessidade de sigilo das comunicações, poderiam sustentar um privilégio presidencial absoluto e desqualificado. A Corte também entendeu que havia um privilégio limitado do presidente da república de ter acesso a informações sigilosas nas áreas militares e nos assuntos diplomáticos, mas a Corte deu preferência para o devido processo legal na administração da justiça. Sendo assim, o presidente tinha que obedecer a intimação e entregar as fitas e os documentos produzidos com gravações clandestinas. Poucos dias após a liberação das fitas, Nixon renunciou à presidência da república e o processo de impeachment contra ele foi encerrado. [25]

Já em Mathews v. Eldridge (1976), George Eldridge foi considerado inválido devido a problemas nas costas e de ansiedade. Posteriormente, Eldridge foi informado por uma carta do órgão da seguridade social que seu benefício seria cancelado. Os procedimentos de seguridade social garantiam uma ampla notificação e uma audiência antes que o benefício social fosse cancelado, mas, no caso de Eldridge, seu benefício foi cancelado antes que uma audiência fosse realizada. Dessa maneira, a grande questão que chegou ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana era se a falta da realização da audiência antes da cessação do benefício violava o devido processo legal previsto na Emenda nº V da Constituição norte-americana. [26]

Em uma decisão até certo ponto surpreendente, por 06 (seis) votos a 02 (dois), a Suprema Corte estabeleceu que a suspensão do benefício antes da audiência de Eldridge não violava o devido processo legal. Asseverou-se na ocasião do julgamento que o princípio do devido processo legal era flexível e que havia inúmeras salvaguardas para prevenir erros na tomada de decisões de cancelamento de benefícios da seguridade social, que eram mais do que suficientes para evitar equívocos. [27]

Por fim, também não se pode deixar de mencionar o precedente Minnesota v. Clover Leaf Creamery Co. (1981). O estado de Minnesota criou uma lei que proibia a venda de leite e de seus derivados em embalagens não retornáveis. A questão que chegou ao conhecimento da corte suprema norte-americana era se a lei do estado de Minnesota violava a cláusula comercial contida no artigo 1º da Constituição norte-americana ou a cláusula da proteção igual "equal protection" estabelecida pela Emenda nº XIV da carta magna dos Estados Unidos. [28]

A Suprema Corte estabeleceu que não havia violação da constituição em uma decisão estabelecida por 07 (sete) votos a 01 (um). O Juiz Brennan entendeu que a lei estadual era constitucional e reconheceu que o poder legislativo local tinha o interesse em promover a conservação dos recursos naturais, além de resolver a questão dos depósitos de lixo. Dessa maneira, a lei apresentava-se razoável e de acordo com o propósito do legislador. Por fim, registrou-se que a lei era constitucional, pois não discriminava os produtos por vendedor e, dessa forma, não violava o disposto na chamada cláusula de comercial prevista na constituição. [29]

Por todo o exposto e sem ter a menor pretensão de esgotar o tema, percebe-se que a Suprema Corte dos Estados Unidos foi a responsável pelo desenvolvimento do controle de constitucionalidade difuso, dando aos juízes e tribunais do país o poder de declarar a inconstitucionalidade das leis e dos atos contrários à constituição. Além disso, a Suprema Corte, conforme visto nos julgamentos que se seguiram ao famoso caso Marbury v. Madison (1803), estabeleceu de forma clara a sua competência para rever as decisões e leis estaduais em face ao disposto na Constituição, tudo isso no intuito de assegurar a supremacia constitucional. Dessa maneira, a Suprema Corte posicionou-se como a guardiã da Constituição e conseguiu garantir a harmonia da federação norte-americana, colocando-se na prática o modelo de freios e contrapesos "checks and balances" idealizado por Montesquieu. [30]

Sobre o autor
Bruno Fontenele Cabral

Delegado de Polícia Federal. Mestre em Administração Pública pela UnB. Professor do Curso Ênfase e do Grancursos Online. Autor de 129 artigos e 12 livros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Bruno Fontenele. A Suprema Corte dos Estados Unidos e o controle difuso de constitucionalidade das leis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2457, 24 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14565. Acesso em: 22 dez. 2024.

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