SUMÁRIO: 1. Resumo do debate; 2. Generalidades acerca do ônus da prova; 3. A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova e a possibilidade de inversão do ônus; 4. Inversão do Ônus da Prova nas Demandas Ambientais; 5. A inversão do ônus da prova não significa obrigar o réu a custear a instrução probatória. Julgados acerca do tema; 6. Considerações Finais; 7. Referências
1.Resumo do debate:
O presente trabalho tem como objeto a análise crítica do REsp 1.049.822-RS, que trata do ônus da prova em matéria ambiental. Em síntese, discute-se a possibilidade de inversão do ônus da prova em ação coletiva (no caso, ação civil pública proposta pelo Ministério Público).
O recurso especial foi interposto pela ALL – America Latina Logística do Brasil S.A contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, em agravo de instrumento, manteve a decisão do juízo singular que deferiu a perícia e o pedido de inversão do ônus e dos custos da prova, com a seguinte ementa:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. DANO AMBIENTAL. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CABIMENTO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS VINCULADAS A INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS REFERENTES A DANOS AMBIENTAIS. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA PARA IMPOR AO REQUERIDO OS CUSTOS DA PERÍCIA. PREVISÃO LEGAL (ART. 6º, VIII, DA LEI Nº 8078-1990 E ART. 18 DA LEI Nº 7.347-1985). EFEITO SUSPENSIVO INDEFERIDO.
É cabível a inversão do ônus da prova também no âmbito de proteção ao meio ambiente. Portanto, na espécie, é o agravante responsável pelo pagamento dos encargos decorrentes da produção de prova pericial. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO."
Para interpor o recurso especial, alegou a ausência de verossimilhança e dos requisitos para a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII), por entender não ser o Ministério Público hipossuficiente, além de apontar violação aos art. 33 do CPC [01] e 18 e 19 da lei n° 7.347/85 [02].
Verifica-se que a questão central a ser debatida é a possibilidade de inversão do ônus da prova, em se tratando de matéria ambiental.
Resumidamente, o Superior Tribunal de Justiça se dividiu. A tese vencedora foi a encabeçada pelo relator, Min. Francisco Falcão, acompanhado pelos Mins. Luiz Fux e Benedito Gonçalves, que votaram pelo não provimento do recurso, alegando que não pode haver óbices à propositura de ações que visem a defesa de direitos fundamentais, pois a responsabilidade ambiental é de interesse público e a sociedade é hipossuficiente, motivo pelo qual deve ser transferido ao empreendedor o ônus da prova de que sua conduta não gerou riscos ambientais, em atenção aos princípios da precaução e da prevenção.
A corrente vencida, puxada pelo Min. Teori Zavascki, acompanhado pela Min. Denise Arruda, entendeu que o acórdão recorrido confunde inversão do ônus da prova com obrigação de custear a realização da prova pericial.
Cumpre, então, analisar o tema do ônus probatório em matéria ambiental.
2.Generalidades acerca do ônus da prova.
Ônus é o imperativo do interesse próprio [03]. É uma conduta imperativa de que seu titular precisa desincumbir-se para o fim de satisfazer seu próprio interesse. Ou, nas palavras de Dall’Agnol Junior, "é uma faculdade cujo exercício é necessário para a fruição de um interesse" [04].
O ideal para a completa prestação jurisdicional é que o magistrado forme um convencimento sólido acerca da matéria analisada, pois é função do órgão judicante valorar juridicamente os fatos que norteiam a lide.
A regra do ônus da prova existente em nosso sistema processual se destina a iluminar o juiz que chega ao final da instrução probatória sem ter um convencimento formado acerca da matéria posta sob análise [05], a apontar mecanismos de julgamento a serem empregados pelo juiz [06], já que é vedado o non liquet. Ou seja, o magistrado está obrigado a decidir, ainda que não possua elementos probatórios suficientes [07][08].
Logo, a regra do ônus da prova expressa no art. 333 do CPC somente deverá ser aplicada caso haja ausência ou insuficiência de provas. Nesses casos, a dúvida deve ser paga pela parte que tinha o ônus de provar determinado fato e não logrou êxito – se constitutivo, incumbe ao autor; se modificativo, extintivo ou impeditivo, cabe ao réu.
Têm-se duas perspectivas do ônus da prova: ônus da prova subjetivo, como regra de conduta dirigida às partes [09], que indica quais fatos que a cada uma incumbe provar; e ônus da prova objetivo [10], que, em não sendo possível alcançar um convencimento com as provas carreadas aos autos, é uma regra dirigida ao juiz, que indica qual das partes deverá suportar os riscos advindos da insuficiência probatória [11].
Importante frisar que, para o magistrado, o que realmente importa, pelo menos a priori, não é a conduta das partes na instrução (ônus subjetivo), mas o resultado da instrução e sua avaliação e julgamento pelo juiz (ônus objetivo). Em havendo as provas, não importa quem as trouxe para o processo, mas a sua valoração pelo magistrado. Apenas importa o ônus subjetivo caso haja ausência ou insuficiência.
É preciso entender a prova como objeto auxiliar na busca pela justiça, eis que é intrínseca, necessária e indisponível à ordem jurídica justa [12]. Isso porque uma decisão final justa ao conflito depende da prova e, portanto, de uma verdade mais próxima da realidade.
Em nosso ordenamento, o ônus da prova foi distribuído de forma estática pelo art. 333 do CPC, levando-se em conta a posição da parte na causa (autor ou réu) e a natureza dos fatos (constitutivos, extintivos, modificativos ou impeditivos).
Ocorre que, não raro, essa distribuição estática do ônus probatório dificulta a instrução, pois nem sempre autor e réu tem condições de atender a esse ônus imposto por esta teoria. E, não havendo provas suficientes nos autos, o juiz termina por proferir decisão favorável àquele que se desincumbiu do ônus, aplicando a regra de julgamento prevista no art. 333 do CPC, regra esta que atrofia nosso sistema e pode levar a julgamentos injustos, mostrando-se como um obstáculo à efetividade da jurisdição.
Importante ressaltar aqui que a regra do ônus probatório foi pensada numa visão privatista, individualista e sob uma perspectiva liberal [13], atendendo aos anseios de demandas individuais, onde os direitos de primeira geração sobressaíam. Nessas demandas, caso uma das partes não se desincumba do ônus, tal falta prejudica apenas e tão somente o direito individual do faltoso. Já no caso dos direitos difusos, como as questões ambientais, o efeito se projeta para toda a sociedade, que sequer participou ativamente do processo [14].
3.A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova e a possibilidade de inversão do ônus.
Verificando-se os transtornos que podem advir da aplicação da teoria estática do ônus da prova, é necessário interpretá-la conforme os princípios da adaptabilidade do procedimento ao caso concreto, da igualdade [15] (art. 5º, caput, CF), da solidariedade com o órgão judicial (arts. 339, 340,342,345, 355 do CPC), da lealdade e da boa-fé (arts. 14,16,17,180 e 125, III, CPC), do princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF) e do devido processo legal (art. 5º, XIV, CF).
Não se descarta a teoria clássica, mas apenas permite-se sua flexibilização, seu abrandamento.
Segundo a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, a prova incumbe a quem tem melhores condições de produzi-la à luz das circunstâncias do caso concreto. Busca-se nada mais do que o rompimento demasiadamente rígido e apriorístico da doutrina clássica, olhando-se o processo em sua concreta realidade, com suas peculiaridades.
Assim, por essa teoria, a) é inaceitável o estabelecimento prévio e abstrato do encargo; b) é ignorável a posição da parte do processo; e c) é desconsiderável a tradicional distinção da natureza dos fatos (modificativos, extintivos, etc) [16].
O que realmente importa para a distribuição do ônus é a) o caso em sua concretude e b) a natureza do fato a provar-se, que será imputado à parte que encontrar-se em melhores condições de fazê-lo.
Apesar de não haver previsão expressa em nossa legislação [17][18], a aplicação desta teoria se dá em nosso ordenamento por interpretação dos princípios constitucionais que regem o processo [19][20], e se mostra como forma de equilibrar as forças na relação processual em aplicação do principio da isonomia [21].
Para Didier Jr, a inversão do ônus da prova nada mais é do que nítida aplicação da regra da distribuição dinâmica do ônus da prova [22].
As regras do ônus da prova se dividem em ope judicis e ope legis, ou seja, de inversão judicial e inversão legal, respectivamente.
A inversão legal é determinada pela lei, aprioristicamente, independentemente do caso concreto e da atuação do juiz, figurando como um caso de presunção legal relativa [23]. É o caso do art. 38 do CDC [24].
Bem diversa é a inversão ope judicis, que é a verdadeira distribuição dinâmica do ônus probandi, verdadeira inversão do ônus da prova. Não se trata de exceção à regra do ônus da prova, como no caso da inversão ope legis, mas sim de uma oportunidade para que o magistrado, analisando o caso concreto e constatando a presença dos requisitos exigíveis para tanto, distribua o ônus conforme as peculiaridades e características da demanda.
No caso especifico de demandas consumeristas, há expressa previsão legal para a "inversão" judicial no art. 6°, VIII do CDC. Mas isso não quer dizer que apenas nesses casos seja possível a inversão.
A possibilidade de inversão judicial do ônus da prova deve ser analisada caso a caso, de acordo com as características do direito material e as especificidades do caso concreto, levando-se em conta que o nosso ordenamento possibilita, por seus princípios, a distribuição dinâmica do ônus da prova, independente de previsão legal, pois, como afirma Godinho:
"se o cumprimento do ônus probatório pode significar a tutela do direito reclamado em juízo, parece-nos intuitivo que as regras que disciplinam sua distribuição afetam diretamente a garantia do acesso a justiça se a distribuição do ônus da prova se der de uma forma que seja impossível que o interessado dele se desincumba, em ultima analise estará sendo-lhe negada o acesso à tutela jurisdicional. (...) como a necessidade de inversão do ônus da prova decorre diretamente da Constituição, não há necessidade de integração legislativa, que, contudo, poderá existir e possuirá um caráter pedagógico e simbólico que facilitará o acesso à justiça" [25].
Logo, a ausência de previsão legal [26] não se constitui em óbice à aplicação da teoria.
4.Inversão do Ônus da Prova nas Demandas Ambientais.
O direito ao meio ambiente é classificado pela doutrina como um direito de terceira geração, assim caracterizados por Bonavides [27]:"Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano, mesmo num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade correta. Os publicistas e os juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante do coroamento de uma evolução de trezentos anos dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade".
Esse direito fundamental de terceira geração deve ser tutelado da forma mais ampla possível, eis que comprometido com a dignidade da pessoa humana [28].
Levando sempre em conta que o meio ambiente é indisponível, inalienável, impenhorável, indivisível, do povo, absolutamente sensível a danos e irreversivelmente reconstruível, a postura do juiz, buscando uma solução justa para o caso concreto, deve ser a mais participativa possível na atuação e direção do processo. Isso interfere se sobremaneira no âmbito processual e, em especial, na instrução probatória do feito [29].
Isso porque o magistrado deve ter sempre em mente que qualquer equívoco cometido trará repercussões imensuráveis, tendo em vista a natureza e o alcance do bem ambiental.
Destarte, debruçado em cada caso, o magistrado deve, com base nos princípios e na natureza do direito ambiental, aplicando a teoria dinâmica do ônus probatório, analisar qual das partes tem mais condições de produzir determinada prova essencial ao deslinde da controvérsia.
Importante frisar que não basta se tratar de demanda ambiental para que o ônus da prova seja invertido. Como afirma Câmara, "não se trata de fixar outra regra estática de distribuição do ônus da prova, apenas de criar-se um sistema excepcional, que só pode funcionar aonde a regra geral vá mal, já que foi elaborada para casos normais e correntes" [30].
Não se está aqui querendo dizer que as demandas ambientais sejam demandas normais e correntes, mas apenas que nem todas as demandas ambientais necessitam da inversão do ônus da prova para alcançarem seu objetivo de proteção ao meio ambiente.
Portanto, só se justifica a redistribuição do ônus da prova quando a parte a quem, a princípio, incumbiria referido ônus não está em condições de produzi-la.
5.A inversão do ônus da prova não significa obrigar o réu a custear a instrução probatória. Julgamentos acerca do tema.
Ainda que se reconheça a necessidade de, por vezes, inverter o ônus da prova com vistas a proteger o meio ambiente, no caso do julgado ora analisado verifica-se, como bem ressaltado pelo Min. Teori Zavascki, uma confusão teórica entre inversão do ônus da prova e obrigação de custeio da prova [31]. Nas palavras di Ministro:
"Não se confunde inversão do ônus da prova ( = ônus processual de demonstrar a existência de um fato), com inversão do ônus financeiro de adiantar as despesas decorrentes da realização de atos processuais. Quando a lei atribui a uma das partes o ônus da prova (ou permite a sua inversão), certamente não está determinando que, além desse ônus processual próprio, a parte contrária fique obrigada também a suportar as despesas de realização da prova requerida pela parte adversa (que, se a requereu, é porque tinha o ônus processual de produzi-la). Sobre o tema, a 1ª Turma pronunciou-se nos termos da seguinte ementa no julgamento do REsp 538.807/RS, DJ 07.11.2006."
Não necessariamente há vinculação entre a possibilidade de produção de provas e a condição da parte em arcar com os custos da referida prova.
Por exemplo, no caso do REsp ora analisado, a prova foi requerida pelo Ministério Público Estadual. O argumento de que o Ministério Público é hipossuficiente em relação à agravante não tem qualquer embasamento. Não se pode afirmar que o parquet não possui condições financeiras de arcar com a prova por ele requerida e nem, muito menos, obrigar que a agravante financie ações civis públicas contra ela movida.
Aliás, diversas outras vezes o próprio STJ se manifestou assim, conforme segue:
REVISÃO. IMPACTO AMBIENTAL. ADIANTAMENTO. HONORÁRIOS. PERITO.
Trata-se de agravo de instrumento interposto contra a decisão de adiantamento de honorários de perito, em razão de decisão nos autos de ação civil pública com vistas à realização de auditoria ambiental e à revisão de estudo de impacto ambiental (EIA) e do relatório de impacto ambiental (RIMA) de usinas de complexo termelétrico. Consiste o caso em definir se a dispensa do ônus em favor do Ministério Público implicaria transferi-lo para a empresa ré, que não requereu a produção de provas, conforme o entendimento adotado na decisão de primeiro grau e mantido pelo acórdão recorrido, que consideraram a recorrente como a única parte envolvida com interesse econômico na demanda. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, invocando precedente, decidiu que a Fazenda Pública da União ou do estado-membro deverá arcar com o adiantamento de honorários de perito nesses casos como os dos autos e a parte vencida deverá ressarcir o vencedor ao final. Observou-se não haver qualquer imposição normativa que obrigue o réu a adiantar essas despesas, ainda que ele seja o Ministério Público. Tal obrigação também não consta do regime da ação civil pública, embora haja o art. 18 (dessa Lei n. 7.347/1985), que deve ter interpretação restrita. Não se pode concluir que cabe ao réu adiantar despesas requeridas pelo autor nem que os peritos particulares devam custear encargos públicos. Precedentes citados: REsp 858.498-SP, DJ 4/10/2006; REsp 622.918-SC, DJ 6/6/2005, e REsp 479.830-GO, DJ 23/8/2004. (REsp 933.079-SC, Rel. originário Min. Herman Benjamin, Rel. para acórdão Min. Eliana Calmon, julgado em 12/2/2008).
SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. REAJUSTAMENTO DAS PRESTAÇÕES. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CUSTEIO DA PERÍCIA. PRECEDENTES DA CORTE.
1. A necessidade da prova pericial afirmada pelo acórdão tem fundamento na medida em que se torna necessário aferir se está sendo cumprida a equivalência salarial, diante da afirmação da contestação de que vem sendo respeitada.
2. Na linha da jurisprudência da Corte, a inversão do ônus da prova, deferida nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, não significa transferir para a parte ré o ônus do pagamento dos honorários do perito, embora deva arcar com as conseqüências de sua não-produção.
3. Recurso especial conhecido e provido, em parte.
(REsp 651632/BA, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 27/03/2007, DJ 25/06/2007 p. 232)
Em outro julgado (REsp 972.902 – RS, julgado em agosto de 2009), se manifestou a Min Eliana Calmon no mesmo sentido: "A despeito disso, não há razão para a inversão do ônus da prova na espécie, não havendo relação entre tal instituto e a necessidade de pagamento adiantado de custas, não se podendo confundir a responsabilidade ambiental com o ônus processual de arcar com as despesas processuais".
Necessário deixar clara a distinção existente entre inversão do ônus da prova e obrigação de patrocínio das provas requeridas pelo Ministério Público, sob pena de se estimular a litigância irresponsável e a imposição de ônus demasiados às empresas que exploram atividades econômicas relacionadas ao meio ambiente.