O empresário, quando opta por iniciar a exploração de uma empresa, deve estar ciente de que terá de arcar com as consequências de seus atos, assumindo os riscos inerentes à própria atividade. Poderá fazê-lo individualmente, como pessoa física, que é o que chamamos de empresário individual, ou unindo-se com outros indivíduos, por meio da constituição de uma sociedade.
Caso opte por algum dos tipos societários, a legislação, como forma de incentivar a iniciativa empresarial, que irá beneficiar não apenas os sócios, mas todo o Estado com o fortalecimento da economia e geração de novos empregos, defere uma série de direitos, dentre os quais está a personalização da sociedade, que passa a realizar atividades, possuir patrimônio e contrair obrigações independentemente das pessoas que a constituem, tudo em atendimento ao princípio da autonomia patrimonial, expresso no art. 1.024 do Código Civil, abaixo transcrito:
"Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais."
Por ele a sociedade empresária possui um patrimônio próprio, sendo este a principal garantia das obrigações por ela assumidas, apenas sendo atingidos os bens dos sócios quando a responsabilidade dos mesmos for subsidiária, e mesmo assim quando esgotado o patrimônio da sociedade.
Não há que se confundir a personalização da pessoa jurídica com a limitação da personalidade de seus sócios. Esta se dá em apenas alguns tipos societários, como por exemplo, na sociedade limitada, já a outra ocorre em todos os tipos societários, de onde advém a responsabilidade subsidiária dos sócios, que apenas terão seu patrimônio afetado pelas dívidas da sociedade caso esgotados os bens desta.
Por certo, se o empresário souber que seu patrimônio pessoal ou sua participação societária em outros empreendimentos estarão prejudicados com o fracasso de uma atividade, evitará se aventurar no mundo empresarial, principalmente no que se refere aos negócios mais arriscados, o que impedirá o surgimento de novas empresas, empregos e fontes de receitas tributárias.
Ocorre que em decorrência desta "camada protetora" oferecida pela lei aos empresários de boa-fé, muitos vêm tentando mascarar fraudes, o que é coibido pelo direito com a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, possibilitando que, em casos específicos, o patrimônio dos sócios possa ser atingido por dívidas contraídas pela sociedade.
Consiste, conforme expressa RUBENS REQUIÃO [01], autor este que foi um dos mais importantes expoentes na chegada desta doutrina no direito brasileiro, na declaração de ineficácia de determinados atos, e não na nulidade da personalização da empresa, que continuará existindo até mesmo pelo princípio da continuidade da empresa.
Esta teoria foi fruto das jurisprudências norte-americana e inglesa, sendo como um de seus primórdios o caso Salomon vs. Salomon & Co, onde foi autorizada a busca de bens do sócio majoritário Salomon como uma fonte de renda para a satisfação dos credores, por entender não existir motivos para a diferenciação patrimonial.
Apesar de tal decisão ter sido reformada pela Casa dos Lordes, foi a partir do aludido julgado que a construção doutrinária começou a formalizar tal teoria como um modo de sanar as irregularidades e fraudes provenientes deste benefício concedido.
Por certo, não poderá o empresário abusar do uso da personalidade jurídica para escapar de suas obrigações em prejuízo aos seus credores. Quando o fizer, deverá ser aplicada a desconsideração para atingir os bens dos sócios, coibindo a prática de tais atos imorais e ilegais. Vale destacar que vem sendo aceito inclusive que se desconsidere de forma inversa a personalidade jurídica, quando a dívida dos sócios poderá atingir a sociedade da qual fazem parte.
Sobre o tema, FÁBIO ULHOA COELHO [02] classifica duas teorias para explicar a adoção prática da desconsideração da personalidade jurídica.
A primeira é chamada de teoria maior, e seria aquela mais elaborada doutrinariamente, em que o juiz apenas poderia desconsiderar a personalidade jurídica quando ocorresse fraude ou abuso desse direito, que deveria ser regularmente comprovado para sua perfeita aplicação.
Ocorre que por muitas vezes na prática tal prova é quase impossível, o que levou ao surgimento de um abrandamento a tal exigência, para admitir a existência de fraude todas as vezes em que restar caracterizada a confusão patrimonial entre os bens do sócio e da sociedade, ou mesmo quando ocorrer o chamado desvio de finalidade dos objetivos sociais da empresa.
Existe ainda, segundo o aludido autor, a chamada teoria menor, pela qual a autonomia patrimonial poderia ser afastada apenas com a ocorrência de prejuízo ao credor. Cabe ressaltar que, conforme se manifesta ANDRÉ LUÍZ SANTA CRUZ RAMOS [03], mesmo os adeptos desta teoria apenas admitem a dita desconsideração em casos excepcionais, como os oriundos de dívidas trabalhistas ou mesmo quando os credores forem consumidores, que são as chamada relações não-negociais.
Ao que parece, a adoção da teoria menor gera uma grande insegurança jurídica para o empresário de boa-fé, que se vê condenado antecipadamente, como se em todo o momento estivesse utilizando de forma abusiva de um direito que lhe é deferido por lei.
Sua aplicação implica ao desrespeito de vários princípios e conceitos jurídicos. Ignora-se a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, confundindo-a com a própria pessoa física sem perfeitas fundamentações justificáveis.
Não se defende aqui o empresário que utiliza deste benefício para promover fraudes contra seus credores. Estes sim devem ser punidos pela falta que cometeram, mas pelos meios legais e juridicamente aceitáveis, e não por um mero descumprimento de um débito pela insuficiência patrimonial da pessoa jurídica, o que soa no mínimo como uma arbitrariedade.
No que se refere ao direito brasileiro, a legislação não especifica de forma expressa qual das teorias vem adotando, apesar de inúmeros exemplos parecerem seguir a teoria maior, autorizando desta forma a afetação do patrimônio dos sócios apenas nos casos em que houver abuso de poder ou mesmo fraude contra os credores, conforme resta claro da leitura do art. 50 do Código Civil, que traça a regra geral da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, conforme segue transcrito:
"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
O mesmo se percebe da leitura do art. 18 da Lei n° 8.884/94, que permite a desconsideração da personalidade jurídica todas as vezes em que ocorrer abuso do direito, conforme abaixo:
"Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração."
Apesar disso, algumas normas como a leitura do art. 28, §5º do CDC, ou mesmo o art. 4º da Lei n° 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), parecem, à primeira vista, ter adotado a teoria menor, possibilitando que a desconsideração da personalidade jurídica ocorra mediante o simples obstáculo ao cumprimento das obrigações juntamente ao credor, conforme abaixo se transcreve:
"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(...)
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."
"Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente." (Lei dos Crimes Ambientais)
Sobre o tema, FÁBIO ULHOA COELHO [04] afirma que a leitura do texto do art. 28, §5º do CDC não poderá dar-se de forma literal para reconhecer a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, pois tornaria letra morta o caput do mesmo artigo, além disso implicaria em desconsideração dos princípios que levaram à criação do instituto, conforme segue abaixo:
"Essa interpretação meramente literal, no entanto, não pode prevalecer por três razões. Em primeiro lugar porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração (...) Em segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC (...) Em terceiro lugar porque esta interpretação levaria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor"
Assiste razão ao nobre doutrinador, uma vez que a lei não poderá ser interpretada de forma esparsa em cada um de seus termos, devendo ser ajustada em conjunto com todas as suas disposições para a perfeita aplicabilidade.
No que se refere à legislação de crimes ambientais, cabe ressaltar que o que ocorre de fato é a mais pura aplicação da teoria maior, já que a empresa não possui dentre as suas funções primordiais a prática de atos ilícitos, e tudo o que nisso resulte deve-se à prática dos atos de seus administradores.
Em tal caso autoriza-se a desconsideração da personalidade jurídica para restarem atingidos o patrimônio dos sócios para a garantia do ressarcimento dos danos ambientais causados. CELSO MARCELO DE OLIVEIRA [05] confirma referido entendimento ao afirmar o que se segue:
"A infração à lei consiste na violação de um preceito legal, ou seja, agir contrariamente a uma proibição imposta pelo ordenamento jurídico, visando um fim antijurídico. Assim, a pessoa jurídica em si não pratica atos ilícitos, pois o seu representante só pode agir no que for autorizado. É claro que o estatuto não autoriza violar a lei, sendo que tal ato terá de partir da iniciativa de um administrador ou controlador e que por isso, responderá diretamente por ato seu, não cabendo falar em desconsideração."
A doutrina, em sua maioria, vem afirmando ser mais prudente a aplicação da teoria maior, uma vez que prestigia-se o estímulo ao desenvolvimento de atividades empresariais, evitando o comprometimento dos empresários de boa-fé, atendendo aos princípios que levaram a formação da teoria.
Interpretar de outra maneira seria aproveitar de forma arbitrária de uma construção doutrinária sobre o tema, bem como fechar os olhos para a integralidade e finalidades das normas que tratam do assunto.
Apesar disso, o que vem acontecendo é uma não observância das regras que autorizam a desconsideração por parte dos operadores do direito, instaurando sobre o empresário uma total insegurança jurídica em face ao claro desrespeito de direitos que lhe são assegurados legal e doutrinariamente, o que muitas vezes vem justificado na classificação da chamada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, principalmente no que se refere às instâncias trabalhistas, tributárias e em relações de consumo, o que não poderá ser mantido, sob pena de prejuízo futuro de natureza econômica ou mesmo social para toda a nação, em troca da satisfação de alguns credores.
Atualmente, em casos extremos, o nível de vulgarização permite serem atingidos bens de sócios que atuaram no desenvolvimento da sociedade como meros prestadores de capital, de onde não pode se ingerir qualquer conduta reprovável que configure abuso do uso da personalidade deferida legalmente.
É injusta a penalidade aplicada a empresários sérios e cumpridores de seus deveres que, acreditem, não são poucos, com os altos encargos trabalhistas e tributários a que estão sujeitos. Para a manutenção do crescimento do país com a livre iniciativa, é necessário que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica seja aplicada em sua forma mais elementar, deixando que os interesses particulares de parcos credores venham prejudicar um instituto que contribui para o progresso social e desenvolvimento econômico de todo um país. O preço é muito grande a se pagar para a satisfação de tão poucos.
Referências Bibliográficas:
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de Direito Empresarial Brasileiro. Vol. II. Campinas: LNZ, 2004
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 3ª ed. rev. ampl. atual. Salvador: Jus Podivm, 2009
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1. São Paulo: Saraiva, 2003
Notas
- REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 378
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p.31-56.
- RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 3ª ed. rev. ampl. atual. Salvador: Jus Podivm, 2009, p. 328
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 51.
- OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de Direito Empresarial Brasileiro. Vol. II. Campinas: LNZ, 2004, p. 74.