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Uma noção de liberdade: o uso de algemas a partir da filosofia

Agenda 16/05/2010 às 00:00

Resumo: O presente trabalho propõe uma discussão do uso de algemas a partir da filosofia, relacionando-se à ideia de liberdade. Em um primeiro momento, analisa-se o tema das algemas, para, posteriormente, adentrar-se à noção de liberdade na filosofia. Por fim, teçam-se algumas considerações sobre a problemática lançada.

Palavras-chave: Liberdade – Algemas – Filosofia

Sumário: Introduzindo: a questão algemas – Desenvolvendo: a questão liberdade e as algemas – Considerações finais – Referências bibliográficas


Introduzindo: a questão algemas

O emprego de algemas está umbilicalmente relacionado à ideia de liberdade, pois, com a aposição da primeira, desrespeitada resta a segunda. Mais a fundo, filosoficamente, poderíamos indagar sobre o alcance da liberdade da vontade humana em razão da intromissão pela comentada coação policial. Tal pretensão será estendida em momento oportuno, quando já extenuadas, em tese, as primeiras observações.

Isto é: para um melhor desenvolvimento da problemática em foco, torna-se interessante e imprescindível uma sucinta introdução sobre o assunto algemas. Ou seja, a fim de que melhor possamos visualizar a abordagem filosófica do uso das algemas em relação à liberdade, tentada neste abreviado exame, elementar, digamos, enraizar considerações desde os fundamentos históricos e jurídicos do citado instrumento policial.

Fala-se muito, nos dias atuais, sobre o assunto envolvendo as algemas. Discute-se o caráter vexatório do mecanismo policial, quando destinado ao exclusivo intuito de expor o preso aos holofotes da mídia. Por outro lado, entende-se as algemas como meio para lograr a segurança, tanto dos policiais como do preso e, até mesmo, de terceiros.

No entanto, o que percebe-se é uma abundante utilização do referido instrumento pelos policiais, muitas vezes sem qualquer necessidade de intervenção, tornando-se discriminatório e inadequado.

Ainda, nota-se a ausência de legislação que regulamente o uso de tal recurso operacional. Ademais, na mídia de forma geral, particularmente televisiva, tornou-se lugar comum a apresentação de pessoas algemadas, não olvidando que na maioria das vezes não há sequer uma denúncia formalizada, e em muitos casos os indivíduos são absolvidos ao final do processo criminal. Junto a isso, não se pode olvidar da Súmula Vinculante nº11,1 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 13 de agosto de 2008, a qual limitou o emprego de algemas consideravelmente.

Na esteira da etimologia, a palavra algemas origina-se do árabe al-jemma,2 que significa pulseira.

Outro termo também utilizado em épocas remotas é grilhões, do espanhol grillos, o qual corresponde a correntes de ferro geralmente utilizadas aos pés. Os grilhões congregaram, principalmente, uma imagem negativa de punição e suplício, isso porque eram muito usados nos tornozelos.

Na antiguidade, as algemas geralmente eram utilizadas de modo a demonstrar seu caráter chocante e imponente. Como forma de manifestação de poder daquele que detinha o criminoso. Há registros de prisioneiros com mãos atadas, pelo menos 4.000 anos atrás, na região mesopotâmia.3

As algemas também eram utilizadas em sacrifícios rituais, como observado na arte em cerâmica herdada por uma civilização pré-incaica, de 100 a 700 d.C., onde havia indivíduos com as mãos amarradas às costas sendo vítimas de rituais.4

Sobre o fundamento jurídico do uso de algemas, entende-se que há um direito legítimo, conferido pelo próprio Estado, denominado poder de polícia. Pode-se extrair o seu conceito a partir do art. 78, do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.5

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O objetivo jurídico do falado poder de polícia é alcançar o exercício da liberdade e da propriedade, embora não recaia nos respectivos direitos. O que é diminuído, dessa forma, é apenas o exercício da liberdade, pois o direito à liberdade é inerente ao indivíduo e deste não pode ser desfalcado.

Em um conceito mais clássico, ligada à concepção liberal do século XVIII, o poder de polícia compreendia a atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança.6

Portanto, o poder de polícia é o fundamento jurídico que "autoriza" o emprego das algemas. No entanto, por essa aposição prejudicar a tão discorrida liberdade, senão o direito mais "puro" do ser humano, a referida força estatal deve se colocar cautelosa, evitando, por ventura, resvaladas dentro da autonomia de vontade de cada um.

É aí que se encontra o cerne da questão: Até onde vai a liberdade do indivíduo, aquela relacionada à sua autodeterminação, e até que ponto a limitação dessa liberdade pelas algemas, na questão aqui proposta, não descaracteriza a noção acima imposta?

Tais perguntas talvez (na verdade, tem-se a certeza) não sejam completamente respondidas neste pequeno e humilde ensaio, mas, poderão ser colocadas a novos debates em futuras considerações, beneficiadas por um maior afinco e díspar experimentação literária, de modo a confrontar ideias e tecer hipóteses.

Passa-se, por conseguinte, à abordagem da liberdade no caso do emprego de algemas, propondo uma discussão desde a filosofia, relacionando-se à ideia de liberdade. Não se pretende, de maneira alguma, esgotar o tema. A proposta é justamente alcançar e refletir noções que possam embasar uma maior reflexão da liberdade, talvez relacionada com a autodeterminação, não excluindo, porém, outras conclusões ou interpretações que possam ensejar um exame dessemelhante ou não.


Desenvolvendo: a questão liberdade e as algemas

Adentrando ao desenvolvimento deste pequeno ensaio, a questão algemas está agora relacionada à ideia de liberdade. Esta liberdade entendida a partir da filosofia, mas precisamente ao que extraímos da leitura de Immanuel Kant, no livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Inicialmente, faz-se importante observar que a liberdade, aquela que afirma poder agir como quiser, talvez não seja mais conivente ao mundo contemporâneo. Em outras palavras, parece que a liberdade é livre, mas não. Entende-se haver uma limitação, um entrave vinculado a uma ideia de responsabilidade.7

Não obstante, para o referido professor brasileiro, por outro lado e em outra passagem, costuma-se associar a questão da liberdade à própria noção de ser humano. Segundo o mesmo

É comum ouvirmos definições que caracterizam o humano, exatamente, através da liberdade que lhe é inerente ou de que faz uso – diferentemente das máquinas, inteiramente programadas, ou dos demais seres vivos, determinados por sua fisiologia e seus instintos.8

No seguimento dessa afirmação, o professor elucida que o ser humano, segundo essa definição

É necessariamente livre, ou não será humano. Suas ações são, segundo esta concepção, dirigidas por decisões livres frente ao mundo que o cerca. Esta definição parece-nos muito adequada; temos, porém, que nos ver com questões graves que advém, justamente, da articulação íntima entre "ser humano" e "liberdade".9

Retomando a problemática, o ato de algemar afeta diretamente, também, a ideia de liberdade extraída da filosofia. A partir da contenção de um indivíduo, toda a sua liberdade de vontade, de se autodeterminar, demonstra-se apagada. A ideia de uma autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade 10 não nos parece ser observado. Se, por outro lado, lutamos arduamente contra as injustas e inaceitáveis violações da liberdade "francesa" (ou seja, como um direito fundamental oriundo da Revolução Francesa), também não podemos nos achar derrotados por ações afastadas da liberdade filosófica, aquela explica a partir do homem (ser humano) em sociedade.

A ligação entre liberdade e ser humano, com brevemente demonstrada acima, é umbilical. Timm de Souza, ao propor uma ideia de liberdade, refere que essa mesma liberdade só se efetiva em atos cujo conteúdo mais próprio seria a razão de ser da própria liberdade. Ou seja, "a liberdade tem que ser concebida como uma faculdade eminentemente humana de estabelecimento de condições humanas de vida." 11

Já na esteira da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant comenta sobre a transição da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura, colocando o conceito de liberdade com a chave da explicação da autonomia da vontade.

A respeito da autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade, o filósofo afirma que pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda, nem mais nem menos, do que precisamente esta autonomia. 12

Tanto Kant como Levinas trabalham com um imperativo ético, mas somente para o primeiro há a noção de subjetividade, a chamada moral prática. No escrito de Levinas, uma nova ideia de liberdade está na reflexão sobre o intervalo entre ‘eu mesmo’ e o ‘outro’. 13 É uma ideia de alteridade. No caso, a liberdade investida de responsabilidade.

Já para Kant, "a vontade é, em todas as ações, uma lei para si mesma, caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objeto como lei universal." 14

O citado filósofo ainda comenta que a liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de todos os seres racionais, pois não basta que atribuamos liberdade à nossa vontade, seja por que razão for, se não tivermos também razão suficiente para a atribuirmos a todos os seres racionais. 15

De modo a evidenciar tal afimação, Kant esclarece que "a todo o ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente também a ideia de liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir." 16

Na sua proposta de um possível imperativo categórico, ele refere que a ideia da liberdade faz de cada um de nós um membro do mundo inteligível; pelo que, se cada um fosse só isto, todas nossas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo cada um se vê como membro do mundo sensível, essas nossas ações devem ser conformes a essa autonomia. 17

A partir desse humilde exame não tomaremos mais caracteres, possibilitando, assim, tecermos algumas considerações finais sobre a proposta aqui intentada.


Considerações finais

A liberdade, desde sua interpretação jurídica (como direito fundamental) ou ainda filosófica, é demasiado importante para a aferição do ser humano. O direito à liberdade e a sua, por consequência, inviolabilidade decorrente da Constituição, é, talvez, posterior à noção de liberdade filosófica colocado aqui e trabalhado durante muito tempo por grandes pensadores pretéritos e também contemporâneos.

O uso de algemas, sem dúvida, afeta diretamente a liberdade do cidadão. Ainda mais quando injusta ou, também pior, quando destinada a um vexame desnecessário e improcedente. A liberdade de agir conforme sua vontade é inerente ao indivíduo, a partir da sua condição de ser um ‘ser humano’, com o perdão da redundância.

Podemos, além disso, trazer o fundamento da liberdade em razão da responsabilidade. A noção de algemas, neste caso, estará relacionada a uma concepção da ‘liberdade não livre’; da liberdade sem o chamado livre-arbítrio.

Em todo o caso, há de se ter, de qualquer forma, uma maior observação à ideia de liberdade, mesmo que condicionada e limitada na interface entre o ‘eu mesmo’ e o ‘outro’. Nas palavras de Kant, "temos que atribuir a todo o ser dotado de razão e vontade esta propriedade de se determinar a agir sob a ideia da sua liberdade". 18

Assim, indaga-se: em que medida uma intervenção na autonomia da vontade do ser humano não prejudica sua condição própria de ser um ‘ser humano’?

Se, na esteira do que já fora comentado neste ensaio, a liberdade caminha junto ao entendimento de ser humano, não podemos, de maneira alguma, extraí-la deste. Por outro lado, também não é defensável a concepção de levantarmos a liberdade em picos dos quais seria impossível permitir um andamento mais equilibrado da sociedade.

Temos, dessa forma, dois extremos, cujas funduras não devem ser exploradas. O entremundo desses extremos é o lugar onde a liberdade deve se colocar em razão do ser humano. Ou seja, este não poderá ter nem uma total e exclusiva ‘liberdade livre’, como também esta não pode ficar especialmente condicionada a um limite. Portanto, independente das situações, a noção de liberdade não pode ser abandonada, pois ela é senão o fundamento da condição do ser humano.

In fine, no caso em tela neste breve exame, as algemas, ao mesmo tempo, não podem ser direcionadas ao exclusivo fim de prejudicar e condicionar a liberdade da pessoa, como também deve respeitar a autonomia da vontade do ser humano. E é nesta autonomia, justamente, onde o conceito da liberdade se coloca como chave de toda a explicação.


Referências bibliográficas

BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico – prosódico da língua portuguesa. Vocábulos, expressões da língua geral tupi-guarani . São Paulo: Saraiva,1974

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001

HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana . São Paulo: Lex Editora, 2008,

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes . Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004

SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008

______. Razoes plurais: itinerários da racionalidade ética no século xx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 167. ss.


Notas

  1. STF, Súmula Vinculante nº 11: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

  2. BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico – prosódico da língua portuguesa. Vocábulos, expressões da língua geral tupi-guarani. São Paulo: Saraiva,1974, p. 166.

  3. HERBELLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana. São Paulo: Lex Editora, 2008, p. 23.

  4. Idem.

  5. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5172.htm; Acessado em: 09 de dezembro de 2009.

  6. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 110.

  7. Considerações retiradas do estudo de Levinas, em SOUZA, Ricardo Timm de. Razoes plurais: itinerários da racionalidade ética no século xx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 167. ss.

  8. SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 185.

  9. Idem.

  10. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004, p. 85.

  11. SOUZA. Op. cit., 2008, p. 186.

  12. KANT. Op. cit. 2004, p. 85-86.

  13. SOUZA. Op. cit. 2004, 183.

  14. KANT. Op. cit. 2004, p. 94.

  15. Ibidem, p. 95.

  16. KANT. Op. cit, p. 95-96.

  17. Ibidem, p. 104.

  18. KANT. Op. cit, p. 97.

Sobre o autor
Bruno Rotta Almeida

Mestrando em Ciências Criminais pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Bruno Rotta. Uma noção de liberdade: o uso de algemas a partir da filosofia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2510, 16 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14857. Acesso em: 22 nov. 2024.

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