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O transexualismo em face do Direito Militar

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Agenda 15/05/2010 às 00:00

3 O CASO DO SARGENTO FABIANE PORTELA

O sargento do Exército Fabiano de barros portela, então com 26 anos, pediu licença da corporação e fez cirurgia para mudar de sexo. Afastado de suas atividades, tenta voltar, agora como fabiane, para seu trabalho, na ala de enfermagem do 17º batalhão logístico de Juiz de Fora, subordinado ao Comando Militar do Leste, que cobre Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.

Segundo o Exército, Fabiane foi avaliada por junta médica que diagnosticou seu caso como transtorno dos hábitos e dos impulsos e transtorno da identidade sexual, classificadas pela organização mundial de saúde (OMS) como transexualismo e tratadas pela psiquiatria como doença. Um oficial, que teve contato com Fabiane, afirmou que o caso é "atípico" e que o afastamento do militar "visa a preservar a ele e a seus colegas de constrangimentos".

Além de lutar de todas as formas para ser reconhecida pelo exército como mulher para retornar ao quadro da força, Fabiane briga ainda para não ser reformada (considerada inapta ao serviço militar). Essa medida encerraria sua carreira militar, garantindo a ela apenas os vencimentos de terceiro-sargento (em torno de R$ 1.996 mensais).

A sargento Fabiane começou a servir ao exército em 1999, com 18 anos de idade. Fez o curso na escola de sargentos das armas (EsSA), em Três Corações, no sul de Minas Gerais. Em 2003, fabiane entrou em processo de depressão e pediu licença. Tentou lutar contra seu transtorno de identidade sexual, mas acabou submetendo-se à cirurgia de redesignaçao de sexo dia 27 de março de 2008 em Jundiaí – SP.

Em 2007, antes de entrar no período de afastamento, Fabiane foi convocada pelo exército para fazer um exame de perícia médica e diz ter sido obrigada a assinar pareceres médicos nos quais o comando militar se baseou para afastá-la. Então registrou um boletim de ocorrência contra a Força em posto da PMMG, que seguiu para a Delegacia de Mulheres. Ela também apresentou denúncia aos Ministérios Públicos Militar e Estadual de Minas.

Moradora de um bairro de classe média baixa de Juiz de Fora, onde dividia casa com a mãe, Fabiane ficou assustada quando seu caso ganhou repercussão. A mãe ficou nervosa com o assédio e pediu que ela saísse de casa. O restante da família também não está sendo acolhedor. Os parentes "culpam" o tratamento psicológico, que teria estimulado a troca de sexo.

Mas o caso de Fabiane não é o pioneiro em face das Forças Armadas. Um cabo da aeronáutica, Maria Luiza da Silva, 47 anos, foi o primeiro transexual a conseguir uma identidade militar feminina no brasil. Agora, ela também luta para ser readmitida no quadro da Força Aérea brasileira.

Após oito anos, Maria conseguiu o reconhecimento e hoje carrega na bolsa a identidade militar, que demorou nove meses para ficar pronta. Sem a mesma sorte, sargento Fabiane ainda circula por MG com a identidade masculina, com o nome Fabiano.

Desde 2000, quando se preparava para a cirurgia de mudança de sexo, o cabo foi reformado. De acordo com um laudo, era incapaz para os serviços militares. Para o advogado que a defende, Luis Maximiliano Telesca, presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB DF, o novo documento militar é uma conquista sem precedentes.


4 A Lei 6880/80 – o estatuto dos militares

Lei máxima reguladora das relações jurídicas nas Forças Armadas, a Lei Federal 6880/80, além de necessariamente ter sua exegese submetida aos comandos da CF/88, não traz em seu texto nenhuma norma expressa que autorize o afastamento do militar transexual dos quadros de nenhuma das três Forças. Ao que parece, a atitude do Exército em face do transexualismo pauta-se exclusivamente em critérios preconceituosos e homofóbicos.

Senão, vejamos alguns dispositivos do referido diploma normativo, a fim de verificar a vigência de alguma norma – como se a própria CF já não vedasse tal discriminação – que permita a exclusão de um militar diagnosticado transexual e terapeuticamente tratado com a cirurgia de trangenitalizaçao, que, ao contrário do que se pode pensar, traz o indivíduo de volta à plena capacidade civil.

Mister lembrar que o transexualismo desaparece após a cirurgia, que adéqua o individuo a sua verdadeira identidade sexual, tornando-o um individuo são, física e mentalmente, plenamente apto a exercer quaisquer funções em qualquer posto das Forças Armadas.

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O art.27 do Estatuto dos Militares elenca valores em nada discrepantes com a condição pessoal e profissional do transexual redesignado sexualmente:

ART. 27 - São manifestações essenciais do valor militar:

I - o patriotismo, traduzido pela vontade inabalável de cumprir o dever militar e pelo solene juramento de fidelidade à Pátria até com o sacrifício da própria vida;

II - o civismo e o culto das tradições históricas;

III - a fé na missão elevada das Forças Armadas;

IV - o espírito de corpo, orgulho do militar pela organização onde serve;

V - o amor à profissão das armas e o entusiasmo com que é exercida; e

VI - o aprimoramento técnico-profissional.

O art 31 também elenca compromissos militares que não destoam da postura do militar transexual:

ART. 31 - Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente:

I - a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida;

II - o culto aos Símbolos Nacionais;

III - a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias;

IV - a disciplina e o respeito à hierarquia;

V - o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens; e

VI - a obrigação de tratar o subordinado dignamente e com urbanidade.

O art 106 trata da reforma ex officio do militar, elencando as seguintes hipóteses:

ART. 106 - A reforma "ex officio" será aplicada ao militar que:

I - atingir as seguintes idades-limite de permanência na reserva:

a) para Oficial-General, 68 (sessenta e oito) anos;

b) para Oficial Superior, inclusive membros do Magistério Militar, 64 (sessenta e quatro) anos;

c) para Capitão-Tenente, Capitão e oficial subalterno, 60 (sessenta) anos, e

d) para Praças, 56 (cinqüenta e seis) anos.

II - for julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas(grifo nosso);

III - estiver agregado por mais de 2 (dois) anos por ter sido julgado incapaz, temporariamente, mediante homologação de Junta Superior de Saúde, ainda que se trate de moléstia curável;

IV - for condenado à pena de reforma prevista no Código Penal Militar, por sentença transitada em julgado;

V - sendo oficial, a tiver determinada em julgado do Superior Tribunal Militar, efetuado em conseqüência de Conselho de Justificação a que foi submetido, e

VI - sendo Guarda-Marinha, Aspirante-a-Oficial ou praça com estabilidade assegurada, for para tal indicado, ao Ministro respectivo, em julgamento de Conselho de Disciplina.

Parágrafo único. O militar reformado na forma do item V ou VI só poderá readquirir a situação militar anterior:

a) no caso do item V, por outra sentença do Superior Tribunal Militar e nas condições nela estabelecidas, e

b) no caso do item VI, por decisão do Ministro respectivo.

Ao que tudo indica, repousa no inciso II deste artigo o argumento do Exército para o afastamento do transexual de seus quadros. Entretanto, uma análise mais detida do texto legal revela a especificidade do conceito de "incapacidade" para os fins desta lei e sua inaplicabilidade para o caso do transexualismo:

ART. 108 - A incapacidade definitiva pode sobrevir em conseqüência de:

I - ferimento recebido em campanha ou na manutenção da ordem pública;

II - enfermidade contraída em campanha ou na manutenção da ordem pública, ou enfermidade cuja causa eficiente decorra de uma dessas situações;

III - acidente em serviço;

IV - doença, moléstia ou enfermidade adquirida em tempo de paz, com relação de causa e efeito a condições inerentes ao serviço;

V - tuberculose ativa, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, lepra, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, mal de Parkinson, pênfigo, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave e outras moléstias que a lei indicar com base nas conclusões da medicina especializada, e

VI - acidente ou doença, moléstia ou enfermidade, sem relação de causa e efeito com o serviço.

§1º - Os casos de que tratam os itens I, II, III e IV serão provados por atestado de origem, inquérito sanitário de origem ou ficha de evacuação, sendo os termos do acidente, baixa ao hospital, papeleta de tratamento nas enfermarias e hospitais, e os registros de baixa utilizados como meios subsidiários para esclarecer a situação.

§2º - Os militares julgados incapazes por um dos motivos constantes do item V deste artigo somente poderão ser reformados após a homologação, por Junta Superior de Saúde, da inspeção de saúde que concluiu pela incapacidade definitiva, obedecida à regulamentação específica de cada Força Singular.

Como se percebe, à luz dos atuais modelos médicos e psicológicos acerca do transexualismo, um indivíduo não pode ser considerado incapaz, para os fins desta lei militar, apenas por ter sido diagnosticado transexual – principalmente após ter sido tratado com a cirurgia de trangenitalização. A cirurgia, como já se provou, adapta o indivíduo a sua identidade sexual e o torna uma pessoa sã e capaz, segundo a lei civil.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O transexualismo fato social que está a desafiar o Direito Militar brasileiro, propondo-lhe questões que ainda estão longe de serem respondidas satisfatoriamente. Em descompasso com as ciências médicas e psicológicas, que modernamente já retiraram a homossexualidade do nicho das patologias e deram ao transexualismo a devida resposta terapêutica, o Direito, como um todo, ainda trata com parcimônia e preconceito os conflitos e demandas oriundos das especificidades das tutelas exigidas por esta parcela da população.

Diferentemente de alguns países que já permitem o acesso e permanência de homossexuais e transexuais nas Forças Armadas, com os EUA, o Brasil não reconhece, de lege lata, esse mesmo direito aos cidadãos brasileiros, abrindo margem a que os tribunais pátrios dêem as mais diversas soluções aos casos que batem à porta do Poder Judiciário.

Recentemente o General Raymundo Nonato Filho, indicado para ocupar uma vaga de ministro do Superior Tribunal Militar, poderá ter seu nome vetado por manifestar homofobia – preconceito contra homossexuais e transgêneros. Ele criticou o ingresso de homossexuais nas Forças Armadas e por isso será convidado a voltar ao Senado para dar explicações. A proposta é do senador Eduardo Suplicy (PT). O militar disse nesta quinta-feira que as tropas não obedecem a homossexuais. Nonato Filho participava de audiência pública porque foi indicado para ocupar uma vaga de ministro do Superior Tribunal Militar, órgão máximo da Justiça militar e que julga apenas crimes cometidos por integrantes da Marinha, Exército e Aeronáutica.

O ministério da Defesa admitiu que já está discutindo a questão dos homossexuais dentro das Forças Armadas. A associação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais repudiou as declarações do general.

O pensamento do general Nonato Filho seria considerado "retrógado" entre os países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, o almirante Mike Mullen, que preside o Joint Chiefs of Staff, a maior autoridade militar dos Estados Unidos, afirmou que está na hora de o país mudar sua política de aceitação de homossexuais nas Forças Armadas. O almirante Mullen diz que não é correto que "homens e mulheres tenham que mentir sobre quem são para poder proteger os cidadãos de seu país".

O presente trabalho teve por escopo vasculhar a atual situação dos transexuais diante do Direito Militar brasileiro. Resta-nos, agora, aguardar para que as Forças Armadas brasileiras revejam seu posicionamento quanto a esse delicado assunto afeto à sexualidade humana, e espanque séculos de discriminação, garantindo aos transexuais direitos cujo gozo manso e pacífico é imprescindível para a dignidade da pessoa humana, independentemente de sua orientação sexual.


Referências bibliográficas

. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.

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DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

_________________. Manual de Direito das Famílias. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões Homossexuais - efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004.

FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril Cultural/ Brasiliense, 1985.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

LINS, Regina Navarro. A Cama na Varanda: arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MORICI, Silvia. Homossexualidade: um lugar história da intolerância, um lugar na clínica. Porto Alegre: Artmed, 1998.

RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SOUZA, Francisco Loyola de; LOPES, José Reinaldo de Lima, LEIVAS; Paulo Gilberto Cogo, RIOS; Roger Raupp (Orgs.). A Justiça e os Direitos de Gays e Lésbicas: jurisprudência comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003.

SOUZA, Ivone coelho de. Homossexualismo: discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001.

SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.


Notas

  1. Apelação Cível 70001388982, julgada pela 7ª Câmara Cível do TJRS, sendo relator o Ministro José Carlos Teixeira Giorgis. Disponível em <http: www.tjrs.gov.br>. Acesso em: 05 nov. 2006.
  2. O termo "homossexualismo" foi utilizado pela primeira vez em 1869, pelo médico húngaro Karl-Maria Kertbeny. Para melhores e mais profundas explicações, cf. TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6ª ed . rev. ampl. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2004.
  3. Resolução nº 1, de 23/03/99, do Conselho Federal de Psicologia.
  4. Em inglês: "groups disfavored by virtue of circumstances beyond their control ". Caso Plyler v. Doe, 1982.
  5. Caso Canada (Attorney-General) v. Ward, 1993: "groups defined by an innate or unchangeable characteristic".
  6. Art. 60. [...]
  7. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir;

    I - a forma federativa de Estado;

    II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

    III - a separação dos Poderes;

    IV - os direitos e garantias individuais (grifamos).

  8. CF/88, art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
  9. III – a dignidade da pessoa humana;

  10. Em inglês, no original: "like sex, race and national origin, is an unmutable characteristic determined solely by the accident of birth". Caso Frontiero v. Richardson, 1973.
Sobre o autor
Fábio de Oliveira Vargas

advogado, mestre em Direito e Globalização pela UNINCOR/MG, professor de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Fábio Oliveira. O transexualismo em face do Direito Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2509, 15 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14863. Acesso em: 23 dez. 2024.

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