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O transexualismo em face do Direito Militar

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15/05/2010 às 00:00
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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo analisar a problemática relativa ao tratamento recebido pelo transexual em face do Direito Militar e de sua aceitação pelas Forças Armadas brasileiras.

Instituições de inegável importância social, as Forças Armadas ainda expressam, inclusive através de sua normativa tão específica, valores incongruentes com os novos ditames da Constituição Federal e do paradigma humanista instaurado pela Carta Magna ao positivar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Sob esse aspecto, o presente trabalho propõe-se a encetar uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, a fim de definir e avaliar os paradigmas argumentativos utilizados no sentido de reconhecer o direito do transexual a pertencer aos quadros das Forças Armadas e bem desempenhar neles sua função.

A partir deste estudo, pretende-se contribuir para definição das linhas de pensamento jurisprudencial e doutrinário no Brasil acerca desta temática.

Na esteira de decisão pioneira do TJ gaúcho [01], os operadores do Direito devem se empenhar no sentido de implementar a democracia, reconhecendo e garantindo direitos a minorias excluídas do gozo pleno da cidadania.

Certamente, era chegada a hora de abandonar o medo de ver a realidade. A inédita decisão resgata o conceito de que a Justiça tem a consciência de sua missão de garantir o respeito à liberdade e à igualdade, princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, em que todos merecem viver, inclusive os que mantêm relações nominadas de homossexuais, mas que, ao certo, merecem ser chamadas de uniões homoafetivas (DIAS, 2004, p. 44).

Neste sentido, será averiguado atual posicionamento da Medicina e da Psicologia acerca do transexualismo, demonstrando sua natureza de transtorno identidade de gênero e a consequente necessidade de terapêutica adequada. Em seguida, em breve análise da Lei n. 6880/80, o Estatuto dos Militares, buscar-se-á demonstrar a inexistência de norma jurídica que permita a exclusão do transexual dos quadros da Forças Armadas com base no argumento de sua incapacidade para o exercício das funções na caserna.


1 TRANSEXUALISMO: DISTINÇÕES NECESSÁRIAS

Cumpre inicialmente tecer alguns comentários acerca do fenômeno transexualismo, a fim de se evitarem confusões corriqueiras no terreno da sexualidade humana e de se enfatizar a dimensão do sofrimento psíquico a que o transexual está submetido.

Comumente, trata-se de fenômenos diversos da sexualidade humana sob um véu uniformizante de preconceito, que impede ao jurista menos avisado de lidar com as particularidades de cada situação, a reclamar tratamento jurídico apropriado.

Façamos uma breve distinção acerca das condições mais comumente confundidas, para que se possa vislumbrar a especificidade da condição do transexual

1.1.Do homossexualismo à homossexualidade

O desejo ou o comportamento sexual dirigido a pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade, parece ser tão antigo quanto a própria heterossexualidade. Desde as origens da história humana, há notícias sobre o comportamento homossexual, tendo sido este fato sempre diversamente interpretado ou explicado, mas jamais ignorado.

A categoria "orientação sexual" surge apenas em meados do século XIX, no marco dos discursos médico-psiquiátricos, sendo cunhado, a partir daí, o termo homossexualismo [02], formado pela raiz da palavra grega homo (semelhante) e pela palavra latina sexus, passando a significar sexualidade semelhante e/ou exercida com uma pessoa do mesmo sexo.

Ao longo da evolução do século XX, o espaço de poder heterossexual e machista deu lugar a uma família ligada por afetividade, que se tornou o terreno privado onde se deve assegurar a preservação da dignidade de seus membros. Houve, também, um distanciamento entre Estado e Igreja – o que se convencionou chamar laicização ou secularização –, arrefecendo o condicionamento ao cumprimento das normas ditadas pela religião.

Essas significativas mudanças sociais levaram ao surgimento de uma sociedade menos homofóbica. O declínio da Igreja fez diminuir o sentimento de culpa do seio familiar e retirou do prazer sexual o seu caráter criminoso. Novas estruturas de convívio familiar surgiram, dessacralizando o casamento, que agora passa a ser oficializado pelo Estado.

1.2 A despatologização da homossexualidade

No despontar do séc. XXI, a sociedade brasileira e nosso ordenamento jurídico não podem mais se manter fechados ou impermeáveis a esse fato social cada vez menos encoberto e que dificilmente deixará de existir: a homossexualidade. Trata-se de uma realidade aceita pelas Ciências médicas e psicológicas como uma faceta normal, de origem talvez multifatorial, do comportamento sexual humano.

Desde a década de 80, parte dos estudiosos já apontava para o caráter relativo do fenômeno da homossexualidade, alertando para o fato de que poderia haver, inclusive, fatores político-culturais na sua determinação:

O que é homossexualidade? Esta pergunta tem como pressuposto que a homossexualidade é alguma coisa. O problema é que a homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema: o das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Assim, ela é uma coisa na Grécia Antiga, outra coisa na Europa do fim do século XIX, outra coisa entre os índios Guaiaqui do Paraguai (FRY; MACRAE, 1985, p. 7).

De acordo com as mais atuais pesquisas científicas, a homossexualidade não deve ser encarada como desvio, doença ou distúrbio: trata-se tão somente de mais uma forma natural de expressão da sexualidade humana. Estudos em diferentes países, de história e culturas diametralmente díspares, concluíram que a homossexualidade não foi criada por uma forma particular de organização social, mas seria antes uma forma fundamental de sexualidade, que se exprime em todas as culturas, e de uma maneira numericamente estável (WHITAM apud LINS, 1999, p. 234).

Nesse mesmo sentido, juristas brasileiros despontam na vanguarda deste entendimento, acompanhando a evolução deste fato social e da despatologização do comportamento homossexual. Segundo Dias (2006, p. 31), "a busca da despatologização da homossexualidade visa defini-la simplesmente como variante natural da expressão sexual humana, um comportamento que determina uma maneira de viver diferente".

Vale lembrar que a Medicina e a Psicologia já pacificaram entendimento no sentido de que o comportamento homossexual, de fato, não caracteriza patologia alguma. Na 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), levada a efeito em 1995, a nomenclatura "homossexualismo" foi oficialmente abolida. Seu sufixo -ismo, indicativo pejorativo de doença, transtorno, foi substituído pelo sufixo -dade, indicativo de "modo de ser". Muito antes disso, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) também excluiu a homossexualidade do rol dos distúrbios mentais (PEREIRA, 2003, p. 32-34).

No Brasil, já em 1985, o Conselho Federal de Medicina anulou o código 302 da CID, excluindo a homossexualidade de qualquer capitulação como doença ou transtorno sexual, conforme ensina Pereira (Ibidem. p. 32-34). Por sua vez, o Conselho Federal de Psicologia baixou resolução no sentido de orientar os psicólogos a não tratar o comportamento homossexual como patologia, nem indicar espécie alguma de terapia com vistas a "curar" o desejo sexual por pessoas do mesmo sexo [03] (DIAS, 2006, p. 159).

Nesse sentido, indaga-se se poderia o Direito, neste caso, o Militar, continuar inerte a tão aquilatados avanços na área médica e psicológica. Deveria o direito alimentar-se destas novas diretrizes científicas e, aplicando a principiologia constitucional, refletir no espelho da legalidade os direitos daqueles, que fatores alheios a sua vontade, sofrem o transtorno do transexualismo?

Esse é inclusive o melhor entendimento das Cortes Judiciais de alguns países do mundo ocidental. As cortes norte-americanas têm repelido solenemente qualquer tipo de discriminação baseada em características inatas do indivíduo, tais como sexo, orientação sexual e raça. Com fulcro em seu texto constitucional, tribunais estadunidenses não têm permitido que populações vulneráveis sejam ainda mais atacadas ou estigmatizadas por circunstâncias que estão fora de seu controle [04]. A mesma tendência se verifica nas cortes canadenses, que reconhecem os homossexuais como um dos "grupos definidos por uma característica inata ou imutável" [05] (RIOS, 2002, p 488-489).

1.3.O Transexualismo: aspectos médico-psicológicos

Existe diferença entre o transexualismo de homossexualidade e transvestismo/travestismo.

O transexualismo significa que há uma transposição na correlação do sexo anatômico e psicológico, ou seja, a pessoa tem a convicção de pertencer a um sexo e possuir genitais opostos ao sexo que psicologicamente se pertence.

Na homossexualidade, a pessoa se sente adequada quanto à determinação de seu sexo, veste-se conforme o sexo, tem corpo adequado ao sexo e não admite ser confundido com sexo oposto, porém tem atração afetiva e erótica por outra pessoa do mesmo sexo que ela.Já no transvestismo a pessoa não sente que sua identidade de gênero está trocada, mas usa roupas do sexo oposto com objetivo de ter prazer, por exemplo, homem com corpo de homem sentindo-se homem, vestido com roupas femininas.

Não existe no Brasil uma legislação segura regularizando o problema. O Conselho Federal de Medicina tenta minimizar o problema e o projeto de Lei nº 70-B, se aprovado, será a primeira Lei brasileira a tratar do assunto.

O Conselho Federal de Medicina regularizou a cirurgia no Brasil sobre trangenitalismo. Em novembro de 2002 divulgou sua nova diretriz que autoriza aos médicos realizar o tratamento cirúrgico de transexuais, segundo as normas internacionalmente reconhecidas, que incluem um mínimo de dois anos de acompanhamento terapêutico por uma equipe multidisciplinar antes de ser autorizada a cirurgia, caso o diagnóstico de transexualismo se confirme (ASSIS, 2004).

O projeto de lei nº 70, B, de autoria do Deputado Federal José Coimbra limita-se a incluir um novo parágrafo ao art. 129 do Código Penal (Decreto –lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940) e atribuir nova redação ao art. 58 da Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos) .

A inclusão do parágrafo 9º ao art. 129 do Código Penal visa possibilitar a realização da cirurgia, já que hoje é ela considerada pelo Direito como lesão corporal. O médico que venha a operar um transexual no Brasil incide no crime de lesão corporal, mesmo a Resolução nº 1.652 de 06 de novembro de 2002 permitindo tal cirurgia, o tema é polêmico e poderia, eventualmente, ensejar uma noticia criminis e posterior processo judicial. Com a alteração da lei penal passa a conduta do médico ser lícita e jurídica.

A nova redação atribuída pelo projeto ao art. 58 da Lei de Registros Públicos traz três parágrafos: o primeiro é reprodução do primitivo parágrafo único, sem modificação de conteúdo; o segundo trata da possibilidade de alteração do prenome quando a pessoa houver se submetido a cirurgia de alteração de sexo e mediante autorização judicial; e o terceiro, trata da alteração do documento de identidade e do registro de nascimento, devendo ser averbado nestes documentos tratar-se de pessoa transexual.

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É o parágrafo terceiro flagrantemente inconstitucional, viola o direito à intimidade e expõe ao ridículo a pessoa, vindo assim a ferir o princípio da dignidade da pessoa humana.

A Comissão de Constituição e Justiça e de Redação - CCJR insurgiu-se contra a determinação de inclusão de pessoa transexual, com fundamento no art. 5º, X da Constituição da República de 1988 e propôs a seguinte alteração: "No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro". Assim, no registro passa a figurar o novo nome e sexo do transexual operado.

A CCJR da Câmara também apresentou uma emenda aditiva, acrescentando mais um parágrafo, com a seguinte redação "§ 4º É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial". É uma forma de proteger a intimidade do transexual. E um procedimento já adotado nos casos de adoção plena.

Por certo que as modificação trazidas pela CCJR, principalmente quanto ao § 3º, vem a regular de forma a suprir a atual necessidade da sociedade, pois a redação originária do projeto de lei traria um retrocesso ao ordenamento jurídico contrariando decisões já proferidos por nossos tribunais.

Ve-se, portanto, que o transexualismo, no Brasil, ainda é tido como doença ou transtorno mental, sendo a cirurgia de redesignação sexual indicação terapêutica para a reabilitação psíquica e social do indivíduo. Após a cirurgia, adequado a sua verdadeira identidade sexual, não cabe mais rotular o individuo como transexual: trata-se agora de um cidadão como outro qualquer, portador de direitos e deveres na ordem civil, enquadrado ou no gênero masculino ou no feminino.


2 A DIGNIDADE DO TRANSEXUAL: UMA INTERPRETAÇAO CONSTITUCIONAL

Nessa toada, cumpre analisar as posturas doutrinárias que advogam uma interpretação constitucional menos literal e mais engajada na conformação da realidade em que se insere nosso ordenamento jurídico, dando azo à proteção jurídica da diginidade humana em multidiversidade de identidades sexuais.

Se a Constituição é a norma suprema e organizadora do ordenamento jurídico, sendo o logradouro ideal para se dirimirem conflitos e antinomias na legislação infraconstitucional, ela mesma não deve apresentar internamente nenhum tipo de incoerência. Se pretende direcionar todo o Direito de uma nação, a Carta Constitucional deve ser modelo de unidade, coesão e harmonia.

É certo que os dispositivos constitucionais devem ser entendidos como mutuamente implicados, sujeitando-se a uma interpretação que contribua, efetivamente, para a integração social, cujos efeitos possam refletir-se no acatamento social, que, assim, lhe emprestaria, eficácia plena.

Nesse particular, Konrad Hesse oferece-nos a dualidade dos conceitos de "Constituição Jurídica" e "Constituição Real": aquela materializa-se tão somente no texto normativo positivado; esta encontra respaldo na práxis da comunidade, e concretiza sua eficácia no acatamento social. A força normativa do texto constitucional surgiria da coincidência do texto normativo com os reais fatores de poder, ao realizar através deles sua pretensão de eficácia (HESSE, 1991, p. 15-16).

Mais adiante, Hesse, elenca os fatores que otimizam a consecução da ótima força normativa da Constituição, mencionando a interpretação como quesito decisivo nessa empreitada, sob pena de se pôr em xeque a situação jurídica em vigor:

Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação constitucional faça deles tábula rasa [...]. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente (HESSE, 1991, p. 22-23).

Doutrina que igualmente merece ser ventilada é aquela proposta por Otfried Höffe quando, dispondo sobre o caráter principiológico da justiça política, examina a possibilidade ser a democracia realmente garantidora dos direitos humanos, dentre os quais destacam-se os que apóiam a conformação constitucional da família homoafetiva: a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a liberdade de orientação sexual e a privacidade.

Höffe põe em questão a democracia como "tirania da maioria", relembrando a crítica platônica de que a democracia poderia ser apenas uma variação do "direito do mais forte". Enfatiza o ilustre mestre que as regras impostas pela maioria nem sempre são boas para "todos", e que a democracia, portanto, apenas seria a forma estatal mais adequada se instituída sob certas circunstâncias, tais como a aplicação dos princípios de justiça que garantem também a proteção dos interesses das minorias, como a população homossexual.

Os limites que devem ser postos para os poderes do Estado podem ser ainda mais estreitos; também os critérios não podem ser escolhidos arbitrariamente. Eles devem, pelo contrário, ser conquistados segundo a medida das mesmas regras de segunda ordem, regras que devem satisfazer, por seu lado, ao princípio da justiça e seus princípios médios, os direitos humanos. Estes princípios de justiça têm, na democracia, a função de proteção das minorias e garantem direitos iguais daqueles que não são das mesmas convicções econômicas, sociais, políticas e religiosas ou lingüístico-culturais da respectiva maioria (grifamos); eles formam um corretivo crítico contra os excessos da soberania, mesmo de um soberano democrático. (HÖFFE, 2001, p. 416).

Em seguida, como corolário dos princípios de justiça política que devem nortear a ação de um Estado Democrático, Höffe leciona a respeito da necessidade de se positivarem os direitos humanos no âmbito constitucional, erigindo-os à condição de cláusulas pétreas, tal como procede a Carta Constitucional brasileira, em seu art. 60, § 4º, inciso IV [06].

Para que esta medida seja reconhecida, não apenas em circunstâncias acidentalmente favoráveis, mas, por princípio, é preciso consolidá-la, institucionalizá-la e fazê-la parte componente do direito vigente aqui e agora. Por esta positivação, os direitos humanos não têm mais o significado de idéias, esperanças e postulados que podem até ser justificados, mas que em face da realidade dominante permanecem importantes. Também os direitos humanos não são mais simplesmente solenes declarações de intenção, mas, muito antes, uma parte obrigatória da ordem do direito e do Estado. Eles perderam o caráter de simples princípios de legitimidade e se tornaram princípios de legalidade [...]. Em oposição a esta legalização insuficiente, um sério reconhecimento dos direitos humanos exige que eles existam não apenas juridicamente na forma de tolerâncias garantidas gratuitamente e a cada momento revogáveis. Seu lugar jurídico, sistematicamente adequado, é a constituição (escrita ou não-escrita) e em seu âmbito, aquela parte que está protegida contra as decisões da maioria das colisões que se sucedem (HÖFFE, 2001, p. 416).

Em face de tão magistrais doutrinas, outra não pode ser a conclusão de que a interpretação da Carta Maior deve, realmente, levar em conta os fatos sociais que clamam por regulação, consolidando um Estado Democrático de Direito constitucional que prime pela inclusão das diferenças e pela tutela dos grupos mais vulneráveis..

Destarte, urge reconhecer o caráter familiar da união homoafetiva, sem necessidade de analogia com a união estável entre homem e mulher, pois presentes nela todos os requisitos fáticos hábeis à conformação de uma família: a coabitação, a durabilidade, a publicidade, bem como os laços de dependência econômica e afeto mútuo (SPENGLER, 2003, p. 86 –87). Vale lembrar, o quesito "diversidade de sexo" não é necessário à configuração da família; caso contrário, a própria família monoparental não teria razão de ser protegida como tal.

2.1 Breve análise principiológica voltada ao transexualismo

Em se tratando de esmiuçar e objetivar o princípio da dignidade, fundante do Estado Democrático de Direito [07], impende reconhecer que, se a orientação sexual é atributo inato e imutável da personalidade de um indivíduo, não pode haver discriminação e vedação de direitos fundada nestas bases, sob pena de se estar deferindo tratamento injustificável à pessoa natural. As cortes norte-americanas, desde a década de 70, têm adotado postura ostensiva no sentido de repelir solenemente discriminação baseada em circunstâncias que escapam ao controle do sujeito, tais como cor, raça, idade ou orientação sexual [08] (RIOS, 2001, p. 90-94).

O princípio da igualdade, por sua vez, também deve ser trazido a lume, desde que entendido como uma maneira de equacionar particularidades e diferenças entre as pessoas, de modo a permitir-lhes oportunidades equivalentes. Não se trata de deferir a todos, indeterminadamente, o mesmo tratamento jurídico, mas de tratar cada um na medida de seus limites e peculiaridades.

Raupp Rios aponta para a necessidade de se aplicar o princípio da igualdade em sua dimensão material, e não em uma dimensão puramente formal, uma vez que apenas a igualdade perante a lei, prevista no caput do art. 5º da CF, não satisfaz as necessidades de um tratamento verdadeiramente isonômico entre as pessoas: deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, se assim determinarem válida e racionalmente as circunstâncias fáticas (RIOS, 2001. p 74-75).

Nestes termos, o tratamento diferenciado só tem cabimento se fincado em razões plausíveis, que o defendam e sustentem, afastando assim discriminações fortuitas, levianas e injustificáveis. Tem-se entendido, nesta toada, que a orientação sexual não é motivo hábil para ensejar tratamento distinto aos transexuais.

A liberdade, como princípio, também tangencia o transexualismo. O desenvolvimento pleno da personalidade da pessoa humana pressupõe que todos os traços formativos do arcabouço psicológico do sujeito sejam respeitados. E é somente em uma ambiência de solene respeito à individualidade e à liberdade do ser é que tal empreitada se concretizará. É tarefa inafastável da lei conferir direitos às pessoas independentemente de sua orientação sexual, pois tal se configura uma prerrogativa inerente à liberdade de todo ser humano, que não merece ser discriminado por uma característica pessoal fora de seu controle.

A realização da liberdade, como direito humano fundamental de primeira geração, demanda muito mais que a simples abstenção estatal sobre a esfera de atuação privada do sujeito. Torna-se necessário promover de forma positiva essa liberdade, e a concessão de direitos independentemente da orientação sexual seria uma ação afirmativa nesse sentido (RIOS, 2001, p. 91).

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Vargas

advogado, mestre em Direito e Globalização pela UNINCOR/MG, professor de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Fábio Oliveira. O transexualismo em face do Direito Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2509, 15 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14863. Acesso em: 17 nov. 2024.

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