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O paradigma da sociedade de fato na união homoafetiva

Agenda 17/05/2010 às 00:00

Ao enfrentar o desafio da sucessão quando o de cujus vivia uma relação homoafetiva, a doutrina e a jurisprudência mais conservadoras buscam dirimir os conflitos hereditários evocando o instituto negocial da sociedade de fato, cujo pressuposto é a conjugação de esforços para a manutenção, formação ou aumento de um patrimônio único. Essa tese começou a ser utilizada no Direito pátrio para lidar com os conflitos oriundos da união estável entre homem e mulher quando ainda não havia lei regulando tal entidade familiar. Ainda hoje mostra-se como corrente majoritária nas Cortes brasileiras, quando se trata de dar solução a conflitos patrimoniais relativos à extinção de uma comunidade familiar homossexual.

Ao findar uma união estável, pela morte ou vontade de uma das partes, não raro a outra parte era deixada ao desamparo, uma vez que o patrimônio adquirido geralmente encontrava-se registrado sob o nome de apenas um dos companheiros, normalmente o homem. Aos olhos da [01]doutrina e jurisprudência das décadas de 40 a 60, esse fato configurava enriquecimento ilícito unilateral de um dos companheiros, ou, em se tratando de morte, de seus herdeiros em prejuízo do companheiro sobrevivo (RODRIGUES, 1995, p.253).

Á época, na ausência de outro paradigma jurídico para elucidar as demandas patrimoniais oriundas do rompimento das uniões estáveis, doutrina e jurisprudência passaram a estender a esta os efeitos jurídicos da sociedade de fato. Guilherme Calmon Nogueira da Gama elucida o fundamento da comparação entre uniões afetivas oficiosas e a sociedade de fato:

Nas relações patrimoniais fundadas no companheirismo, em decorrência do próprio convívio more uxorio [02] e de elemento anímico que alicerça a união, é comum a conjugação dos esforços dos companheiros, colaborando mutuamente na administração do lar, no gasto com as despesas domésticas, na aquisição de bens para o maior conforto e segurança da família, enfim, a participação econômico-familiar, com vistas a um objetivo comum: o ideal de convívio permanente, de forma harmônica e sadia entre pessoas que nutrem sentimentos nobres reciprocamente (GAMA, 1998, p. 256).

Obviamente, os objetivos comuns a que o excerto se refere não são os de uma sociedade empresária, quais sejam, o intuito de realizar atividade econômica com fins lucrativos, mas os de uma família, comunidade na qual os companheiros estão imbuídos de afeto mútuo, no sentido de um projeto de vida em comum e do desenvolvimento pleno como pessoas.

Adverte, entretanto, o referido autor que o conceito de sociedade de fato é gênero, e comporta espécies: quatro modalidades de sociedade universal, dentre as quais aquela do art. 981 do atual Código Civil [03] (art 1.369 [04] do Código Civil revogado) seria o paradigma mais específico para as uniões de afeto:

Dá-se a esta situação o nome de sociedade de fato, desprezando-se, porém, que sociedade de fato é gênero e que o concubinato deve pertencer a uma espécie. Esta espécie é exatamente a sociedade universal. A sua característica de serem sociedade "de fato" prendem-se exclusivamente à falta de formalidade para sua constituição, da inexistência de contratos escritos firmados entre as partes, nada tendo a ver com sua natureza. A doutrina da sociedade de fato se assenta no pressuposto de que a sociedade é constituída pelo simples acordo de vontades dos sócios, inexistindo maiores formalidades – ainda que exista contrato, este não é registrado – mas, produzindo efeitos jurídicos patrimoniais entre os partícipes (GALBIATTI apud GAMA, 1998, p. 257).

A doutrina da sociedade de fato foi, então, ainda que sem a devida precisão técnica, adotada pelos Tribunais pátrios por referir-se a uma sociedade que se formava sem registro, sem capital, cujo patrimônio seria constituído, futuramente, por tudo que os sócios adquirissem a título oneroso ou gratuito, responsabilizando-se apenas pelas dívidas que proviessem após a constituição do laço societário.

Comparar a união homossexual à sociedade de fato, com base no art. 1369 do CC/16 ou no art. 981 do CC/02, foi a forma encontrada pelos operadores do Direito para tutelar os interesses dos participantes desta modalidade de relacionamento amoroso: a união hoje denominada estável. Tal artifício jurídico, entretanto, não vem a ser novidade no tratamento de relações afetivas de caráter oficioso, visto que nos primórdios das discussões relativas à tutela jurídica da união estável entre homem e mulher a mesma solução foi trazida à baila, tendo inclusive o STF [05] editado a Súmula 380 com base neste mesmo instituto societário (MATOS, 2004, p. 71).

No tratamento pretoriano que à época foi dado à extinção das uniões extramatrimonais, pode ser percebida uma linha evolutiva. Ela se iniciava na solene negativa de direitos ao companheiro separado ou sobrevivo, porque não se concebiam vantagens provenientes de atos imorais como as uniões sem casamento, passa pelo reconhecimento de direito à indenização por serviços prestados ao companheiro separado ou sobrevivo, quando não havia patrimônio a partilhar, e chegava a reconhecimento de direito a fração ideal do patrimônio formado ou aumentado pelo esforço comum durante o tempo de convivência (GAMA, 1998, p. 258-259).

Insta ressaltar, porém, que a mera convivência more uxorio não gerava, por si só, nenhum direito por ocasião da morte do companheiro. Fazia-se necessária, para o deferimento de direitos sobre o patrimônio hereditário, a prova da sociedade de fato, estabelecendo assim a doutrina e a jurisprudência nítida diferença entre o companheirismo e a própria sociedade de fato:

A orientação da súmula 380, do Supremo Tribunal Federal, consagra a distinção que já vinha sendo feita entre o companheirismo e a constituição de sociedade de fato entre os companheiros, não sendo suficiente para o partilhamento do patrimônio apenas a existência do primeiro (GAMA, 1998, p.262).

Se não houvesse prova de sociedade de fato, nada haveria a ser partilhado. Nesta toada, como indicativo probatório processual, indicavam-se os requisitos sine qua non para a configuração da sociedade de fato: comunhão de interesses em torno de finalidade comum, formação ou crescimento de um patrimônio durante a convivência, e esforço conjunto para a constituição deste patrimônio. Feita a prova da comunhão de esforços, seria concedido o direito à partilha dos bens.

Não obstante ter sido importante a utilização da tese da sociedade de fato como mecanismo jurídico para o resguardo de direitos dos companheiros na dissolução da união, duas ressalvas devem ser feitas à equiparação da união homossexual à sociedade de fato.

A primeira tem viés nitidamente valorativo, porque tal analogia obscurece, num artificialismo injustificável, a realidade afetiva que vigora em uma relação amorosa, mesmo entre os iguais em sexo. A segunda pende para a teleologia do instituto jurídico sob análise, porque, em sede de sociedade de fato, não se discute direito sucessório propriamente. Ocorre apenas partilha do patrimônio comum, o que também se daria na hipótese de dissolução da sociedade por vontade das partes [06], por exemplo. E neste caso, o "sócio", para receber a parte que lhe caberia, deveria fazer prova de quanto contribuiu na aquisição do patrimônio societário. Essa foi a percepção que se infere do seguinte trecho da desembargadora Maria Berenice Dias:

Essa primeira decisão do STJ sobre o tema foi recebida com euforia e divulgada com grande sensacionalismo. No entanto, a que tanto alarde causou e motivou comemorações de associações de gays e lésbicas, não apresenta maior sabor de novidade. A Corte limitou-se a deferir a partilha, reconhecendo a existência de uma sociedade de fato entre os companheiros. A decisão não emprestou relevo à convivência more uxorio decorrente de um duradouro vínculo de afeto. Também não atribuiu direito à herança, autorizando tão-só a partição em face da prova de que ambos participaram na formação de um patrimônio comum, pois eram sócios de três empresas (DIAS, 2006, p. 140).

Como se vê, tratar como sociedade uma relação de afeto resolve apenas parcialmente o conflito, deixando arestas que precisam ser aparadas, primeiro pela jurisprudência e pela doutrina, depois pela própria lei.

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2.1 Affectio societatis x affectio maritalis

Trazendo à tona um instituto de caráter empresarial para tratar de uniões de afeto, confunde-se a affectio societatis [07] – própria das sociedades empresárias – com a affectio maritalis – típica da configuração da entidade familiar, fundada no amor e respeito mútuos. Para alguns, tal malabarismo intelectual lhes parece louvável, uma vez que se trata de buscar reconhecer juridicamente, ainda que sob a face de um instituto obrigacional, uma união de fato sobre a qual não paira a proteção de nenhuma norma jurídica específica.

Apesar da impropriedade ao se aproximarem questões tão díspares com sociedade – ligada ao Direito Obrigacional e ao Direito Comercial –, e família – relacionada à expressão personalíssima da afetividade –, tal analogia parcialmente se justifica pelo esforço de procurar atingirem-se efeitos jurídicos num assunto não expressamente reconhecido por dispositivos legais (MATOS, 2004, p. 72).

A affectio societatis, conforme explica a doutrina, é o animus de se associar com o fito de desenvolver atividade empresarial em busca de lucro, assumindo os riscos inerentes a essa atividade. Trata-se de requisito subjetivo indispensável à configuração da natureza societária, sendo idealmente composto pela fidelidade dos sócios aos fins sociais da empresa e a confiança recíproca dos sócios na realização dos interesses comuns (FAZZIO JUNIOR, 2005, p. 172-173).

Tal conceito não se confunde com a noção de affectio maritalis, própria do Direito de Família. Entendem os familiaristas que o afeto marital consiste na conjugação do amor, do afeto, da atração sexual e a mútua intenção de manter vida em comum. Presentes tais requisitos de ordem subjetiva, estabelece-se comunhão de vida, criando-se a peculiar comunidade familiar, em tudo diversa da sociedade empresarial (GONÇALVES, 2005, p. 30-31).

Ao tratar amantes como sócios, doutrina e jurisprudência entendem, portanto, que um casal homossexual não configura uma entidade familiar. Confundindo os conceitos de affectio maritalis e affectio societatis, vêem na união homoafetiva apenas a conjugação de esforços para a realização de uma atividade empresarial de cunho meramente patrimonial. O adjetivo "de fato" é empregado porque, por razões lógicas, essa "sociedade" não vai a registro como as demais, não adquirindo, portanto, personalidade jurídica [08]

A título de ressalva, deve-se frisar, embora superficialmente, que mesmo merecedoras do epíteto de sociedade, as uniões homoafetivas, assim como a união estável, devem ser concebidas não só como sociedades de fato, mas também como de direito. Isso porque a ausência do registro apenas implica o não reconhecimento de personalidade jurídica, mas não torna ilícitas tais relações. Nesse sentido

Haverá sociedade apenas de fato – e não de direito – quando o seu objeto for ilícito, a exemplo da quadrilha formada para a prática de atos ilícitos. Nos demais casos, não haverá sociedades apenas de fato, mas sociedades sem personalidade jurídica, como adequadamente foram chamadas pelo art. 12, VII e §2º do Código de Processo Civil. A ausência do registro tem por efeito apenas a ausência de atribuição de personalidade, não tornando ilícito o contrato de sociedade, com objeto lícito, estabelecido entre as partes (regra que alcança, por óbvio, o contrato de associação, inclusive para fins de convivência afetiva – a união estável, conforme conceito constante dos artigos 1562, 1595, §2º, 1622, entre outros do Código Civil – ou qualquer outro tipo de associação lícita) (MAMEDE, 2004, p. 41).

Tornada explícita a juridicidade da união homoafetiva, insta referir que, em nome do puro preconceito, ou mesmo da falta de coragem para assumir posturas de vanguarda, mais consentâneos com os ditames da nova ordem civil-constitucional no Direito de Família, muitos juristas insistem em conferir ao par homossexual a natureza jurídica de sociedade de fato, o que vem, sobremaneira, dificultar a efetiva proteção de direitos do companheiro sobrevivente, vez que torna imprescindível a produção de prova do esforço comum para se ter direito à partilha do patrimônio societário.

2.2 Sociedade de fato e esforço comum: aspectos da dificuldade probatória

Quanto ao aspecto probatório da sociedade de fato, divide-se a jurisprudência quanto às espécies de prova a serem produzidas, a fim de que se conceda ao parceiro homossexual direito à partilha dos bens comuns. Nesse sentido despontam duas correntes: há uma corrente que privilegia provas de contribuição financeira direta e outra que se satisfaz com provas de contribuição indireta, como o auxílio na atividade laboral do companheiro ou a realização de serviços domésticos.

2.2.1 A teoria da contribuição direta

Ao capitularmos a união homoafetiva como sociedade de fato, sob a Teoria da Contribuição Direta, imputamos ao parceiro sobrevivo o pesado ônus de comprovar sua participação efetiva na construção do patrimônio hereditário, através de aportes financeiros diretos.

Esta corrente doutrinária e jurisprudencial exige a robustez da prova de contribuição direta para a partilha do acervo condominial, em caso de ruptura da união por vontade ou por morte de uma das partes. Esta prova configura-se de difícil produção, pondo o companheiro supérstite em desvantajosa posição processual, mormente se o patrimônio amealhado durante o tempo de convívio foi registrado apenas em nome do parceiro falecido [09], e não houve a confecção de um testamento em seu favor.

Adotando a "Teoria da Contribuição Direta", muitos posicionamentos são taxativos no sentido da possibilidade de caracterização da sociedade de fato somente mediante prova inequívoca de efetiva contribuição para a formação do patrimônio sub judice:

Sob o prisma jurídico, não há efeitos jurídicos propriamente distintos das uniões concubinárias e das uniões homossexuais, já que ambas, fora do Direito de Família, somente podem ser cuidadas como sociedades de fato, desde que evidentemente sejam preenchidos os requisitos para a configuração de tais entidades, possibilitando o reconhecimento do direito do partícipe da relação – que for prejudicado em decorrência da aquisição patrimonial em nome tão-somente do outro – ao partilhamento dos bens adquiridos durante a constância da sociedade de fato, na medida da sua efetiva contribuição para a formação ou o incremento patrimonial (grifo nosso) (GAMA, 1998, p. 491).

Depreende-se, do trecho referido, a importância da atividade processual probatória que competirá ao companheiro sobrevivo, caso queira fazer jus a alguma parcela do patrimônio hereditário. Tendo em vista a duração do relacionamento, a instrução probatória pode tornar-se tarefa hercúlea, senão impossível. Caso não seja feita prova satisfatória de sua participação, não terá o sobrevivente direito ao patrimônio amealhado, nem mesmo a título de sócio. Essa preocupação é apontada na doutrina sobre a família homossexual:

Dessa maneira, como decorrência da idéia do Direito das Obrigações, transposta para a união homoafetiva, outras questões podem surgir, quais sejam, a prova do percentual de contribuição para a "sociedade de fato" (que poderá não corresponder a 50%) e a perquirição da eventual contribuição indireta na prestação de serviços para o outro companheiro (MATOS, 2004, p. 77) .

Decorre daí que o companheiro homoafetivo pode não conseguir fazer essa prova, ou pode conseguir realizá-la apenas parcialmente, e ter de conformar-se com o locupletamento legalizado dos herdeiros legítimos do de cujus, que, normalmente, nunca lhe prestaram qualquer apoio material ou espiritual, mas serão invariavelmente favorecidos pela ordem sucessória legal. Neste sentido entendeu o TJRJ:

SOCIEDADE DE FATO – DISSOLUCAO PELA MORTE DE UM DOS SOCIOS – PARTILHA DE BENS – ESFORCO COMUM NA FORMACAO DO PATRIMONIO – HOMOSSEXUALISMO. Ação objetivando o reconhecimento de sociedade de fato e divisão dos bens em partes iguais. Comprovada a conjugação de esforços para formação do patrimônio que se quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade de fato e determina-se a partilha. Isto, porem, não implica, necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens que se encontram em nome do réu. A divisão ha'' de ser proporcional `a contribuição de cada um. Assim, se os fatos e circunstancias da causa evidenciam uma participação societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído a ele um percentual condizente com a sua contribuição (TJRJ. Apelação cível 1989.001.00731. Quinta Câmara Cível. Relator Des. Narcizo Pinto. j. 08.08.1989. Disponível em <http:www.tj.rj.gov.br>. Acesso em: 12 ago. 2006).

De forma semelhante entendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, embora se trate de um Tribunal capaz de posturas de vanguarda, decidiu no sentido da necessidade de prova da contribuição direta para garantia de direitos no rompimento de uma união homossexual:

RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. INDENIZAÇÃO. PEDIDO ALTERADO NA APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL. DESCABIMENTO. SOCIEDADE DE FATO. PROVA. É defeso ao autor, instigado por motivação sentencial, alterar o pedido posto na inicial, ferindo o princípio da eventualidade e a teoria da substanciação. Embora presente uma relação homossexual, não se identificando pressupostos de entidade familiar, a solução desemboca no âmbito do direito obrigacional, solvendo-se como sociedade de fato, caso exista prova eficiente da contribuição da parceira. Finalmente, não restando demonstrada a aplicação do numerário dito como usado na reforma do imóvel, torna-se impertinente o pagamento de qualquer indenização. Apelação desprovida (TJRS. Apelação Cível Nº 70007792294. Sétima Câmara Cível. Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. j. 12.05.2004. Disponível em <http: www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 12 ago. 2006).

Analisando o inteiro teor do julgado supracitado, depara-se com interessante distinção entre a configuração de união estável e a sociedade de fato, no que tange à inafastável necessidade da produção de provas de participação direta na construção do patrimônio comum, em se optando por conceber como sociedade a união entre homossexuais:

Cumpre referir, por oportuno, que não se confundem os institutos da união estável e da sociedade de fato. Para a configuração da união estável exige-se a comprovação da convivência duradoura, pública e contínua, com a intenção de constituir família. Neste caso, os bens são partilhados igualitariamente entre os companheiros, sem que se perquira da efetiva contribuição na aquisição do acervo.Já a sociedade de fato se resolve pelas regras do direito obrigacional e exige a efetiva contribuição dos litigantes na aquisição dos bens que pretendem ver partilhados.Antes da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal sumulou o entendimento de que, cristalizada a existência de uma sociedade de fato entre os concubinos, o patrimônio havido deveria ser partilhado segundo a contribuição de cada um (TJRS. Apelação Cível Nº 70007792294. Sétima Câmara Cível. Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. j. 12.05.2004. Disponível em <http: www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 12 ago. 2006).

2.2.2 A teoria da contribuição indireta

Por outro lado, existe uma corrente defensora da Teoria da Colaboração Indireta, igualmente aplicável aos casos de dissolução de união estável heterossexual, para a qual seria bastante a prova da contribuição indireta do parceiro homossexual sobrevivo a fim de que lhe fosse deferida a meação do patrimônio. Por contribuição indireta, pode-se entender qualquer prestação, que não seja aporte financeiro direto, mas que, de alguma forma, contribua para a configuração do "esforço comum" entre os companheiros.

Segundo Matos (2004, p. 78), podem ser considerados exemplos de contribuição indireta: "o apoio espiritual, a troca de afeições, os trabalhos domésticos, os cuidados com os membros da família de seu companheiro (podendo englobar filhos)".

Já se percebe que esta segunda corrente humaniza a relação homoafetiva e ressalta a existência de relações interpessoais, facilitando a efetivação de direitos para o companheiro sobrevivo que não tenha provas suficientes da participação no enriquecimento do casal. Embora não chegue a conceder à homoafetividade os direitos típicos da entidade familiar, essa posição doutrinário-jurisprudencial intermediária tem o mérito de reconhecer que, antes de se tratar de sociedades de fato, as uniões homossexuais são também comunidades de afeto.

Decisão pioneira na comarca de Juiz de Fora/ MG reconheceu direito à meação ao parceiro sobrevivo não só com base nas provas de contribuições patrimoniais diretas, mas com fulcro na configuração de esforço comum pela via indireta, o que foi confirmado pelo TJMG, conforme se lê a seguir:

AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - UNIÃO CIVIL DE PESSOAS DO MESMO SEXO - CONCORRÊNCIA DE ESFORÇOS E RECURSOS PARA A FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO - SOCIEDADE DE FATO RECONHECIDA - PARTILHA DE BENS - MEAÇÃO DEFERIDA - DANO MORAL - RESPONSABILIDADE DO COMUNHEIRO FALECIDO PELA TRANSMISSÃO DO VÍRUS DA AIDS - INDENIZABILIDADE - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - CRITÉRIO DE FIXAÇÃO - CAUSA DE NATUREZA PATRIMONIAL. O fato de a união entre pessoas do mesmo sexo não ser considerada no direito pátrio como concubinato ou união estável, a merecer a proteção do Estado, ao teor do preceito constitucional contido no artigo 226, parágrafo terceiro, com caráter de entidade familiar, não impede que a referida união possa configurar-se como sociedade de fato, de natureza civil, ao amparo do disposto no artigo 1.363 da Lei Substantiva. Comprovada a existência de um relacionamento de ordem afetivo/sexual entre pessoas do mesmo sexo, e demonstrada a colaboração recíproca dos parceiros para a formação do patrimônio, numa inequívoca comunhão de esforços e recursos, configurando participação na ordem direta e indireta, reconhece-se como presente uma sociedade fática, com todas as conseqüências jurídicas que lhe são inerentes, em especial o direito à partilha de bens, em caso de vir a mesma a ser dissolvida pelo falecimento de um dos sócios ou o rompimento espontâneo da relação que lhe deu origem (grifo nosso) (TJMG. Apelação Cível Nº 309.092-0. Relatora Des. Jurema Brasil Marins. j. 27.02.2002. Disponível em <http:www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 14 ago. 2006).

Ventila a referida decisão a possibilidade jurídica de um componente do casal ter auxiliado apenas com o trabalho na construção e manutenção de um patrimônio comum, caracterizando-se, assim, sua contribuição indireta:

Destarte, a questão submetida a julgamento não poderá ser examinada sob o ângulo do direito de família, mas sim à luz do direito obrigacional, especificamente o mencionado artigo 1.363 do Código Civil pátrio, cabendo ao Julgador, em primeiro plano, averiguar a existência ou não da alegada sociedade fática, apta a gerar direitos patrimoniais. Vale anotar que o mencionado dispositivo legal refere-se literalmente em seu texto, de forma alternativa, a combinação, pelos sócios, de esforços ou recursos, objetivando um fim comum, não exigindo, assim, que a colaboração de cada partícipe seja de natureza estritamente financeira, podendo caracterizar-se pela simples prestação laboral, como aliás o admite o próprio direito comercial ao instituir entre as modalidades de empresas a de Capital e Indústria, em que um dos sócios entra com o capital e o outro com o trabalho, conjugando, dessa forma, esforços e recursos, com a finalidade de se alcançar um fim comum. Tem evoluído, no direito pátrio, a "Teoria da Colaboração Indireta", em que se permite invocar, por analogia à espécie, registro do Ministro Moreira Alves, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal (RSTJ 25/335), em que, discorrendo sobre a matéria em tese, com sua conhecida perspicácia, apercebeu-se de que a prova da contribuição não poderia ser considerada apenas na modalidade direta, mas também na indireta, caracterizada pela execução de serviços domésticos, e administração do lar, contribuindo, assim, o partícipe sem rendimentos, decisivamente, para a formação do patrimônio amealhado (TJMG. Apelação Cível Nº 309.092-0. Relatora Des. Jurema Brasil Marins. j. 27.02.2002. Disponível em <http:www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 14 ago. 2006).

2.2.3 Breve comparação entre as correntes fático-societárias

Como se pode perceber, o paradigma da sociedade de fato encampa duas correntes distintas ao ser utilizado para solucionar litígios relativos à titularidade de patrimônio sucessório envolvendo a união homossexual.

Os tribunais que adotam a Teoria da Contribuição Direta exigem do companheiro sobrevivo a prova efetiva da contribuição na formação do patrimônio sub judice, tais como evidências robustas de auxílio direto na atividade laboral do de cujus. Os tribunais que adotam a Teoria da Contribuição Indireta, por sua vez, adotam postura nitidamente mais benéfica ao partícipe sobrevivo: satisfazem-se com a prova da vida em comum, pois esta já pressuporia uma série de atividades desempenhadas pelo companheiro, como os afazeres próprios do lar, p. ex., que indiretamente auxiliariam o outro companheiro em sua atividade econômica, permitindo a construção do acervo de bens do casal, já que evitariam gastos com a contratação de profissionais domésticos .

O mérito da aplicação jurisprudencial da teoria da sociedade de fato à união homossexual está justamente no fato de revelar que o Direito não compactua com o locupletamento ilícito, ou enriquecimento sem justa causa, de uma pessoa em detrimento de outra cujos esforços, diretos ou indiretos, contribuíram para amealhar um patrimônio comum. Em nome da boa-fé (CORDEIRO, 1999, p. 118), importantíssimo princípio orientador das relações jurídicas no âmbito civil, o Direito, através da ação dos julgadores, tem impedido que o companheiro homossexual sobrevivo perca, para a família do falecido, direitos sobre um patrimônio amealhado com ajuda sua, em nítido e condenável locupletamento dos herdeiros.

Não obstante, ambas as correntes pecam por obnubilar a realidade afetiva constitutiva do laço familiar rompido pela morte de um dos companheiros homossexuais. À guisa de conclusão, trazemos à colação a doutrina de Maria Berenice Dias, que aponta não só para o aspecto preconceituoso da analogia entre sociedade de fato e união homossexual, mas também para os nefastos efeitos jurídicos que tal comparação pode acarretar:

Ainda a jurisprudência se inclina em reconhecer a existência de uma sociedade de fato, estribando-se no art. 931 do Código Civil [10]. Visualiza-se exclusivamente um vínculo negocial, como se o fim comum do "contrato de sociedade" não fosse uma relação afetiva com as características de uma família. Nitidamente preconceituosa a analogia que é feita. Nega-se a origem do vínculo, que é um elo de afetividade, e não uma obrigação de bens e serviços para o exercício de atividade econômica. A conseqüência é desastrosa. Chamar as uniões de pessoas do mesmo sexo de sociedade de fato, e não de união estável, leva à sua inserção no Direito Obrigacional, com conseqüente alijamento do manto protetivo do Direito das Famílias, o que, via de conseqüência, enseja o afastamento também do Direito Sucessório (DIAS, 2006, p. 89).

Destarte, o tratamento da união homossexual como sociedade de fato não confere aos companheiros nenhuma espécie de direito sucessório. Sua configuração enseja, tão somente, direito à partilha do patrimônio adquirido em comunhão, o que também poderia se dar no caso de ruptura da convivência por outras causas que não a morte.

Impende registrar, por fim, que a grande maioria dos julgados acerca da ruptura causa mortis da união homossexual ainda adotam o instituto da sociedade de fato para decidir os conflitos daí originados, variando apenas a aplicação das teorias da contribuição direta e indireta, de acordo com o caso concreto e o material probatório carreado aos autos.

2.3 Outras formas de garantia do direito à partilha de bens

Na união entre pessoas do mesmo sexo existem outras formas de proteção do direito à partilha de bens no caso do desfazimento da relação por vontade de um ou de ambos os conviventes, ou para o caso de morte de um deles.

Os companheiros podem optar pela formalização de um contrato de parceria civil, assinado por ambas as partes mais duas testemunhas, a ser levado a registro em Cartório de Títulos e Documentos e, se for o caso, também averbado em Cartório de Registro de Imóveis. Neste documento, que terá plena eficácia entre as partes, deve-se determinar o regime de bens do casal, indicando quais bens pertencem a cada um, se há bens comuns, e em que proporção cada companheiro contribuiu para a aquisição deste ou daquele bem.

Tal contrato servirá futuramente como título executivo para a promoção da partilha de bens, em caso de dissolução da união por vontade de ambas as partes ou de apenas uma delas, ou mesmo pela morte de um dos companheiros. Certamente, como se verá ao final do presente estudo, não se está deferindo direitos sucessórios ao companheiro pela via contratual, mesmo porque tal ato resultaria nulo por configurar pacto sucessório, expressamente vedado pela lei civil. Nesse aspecto, o contrato assegurará unicamente direito à partilha do bem comum

No caso de imóveis adquiridos em comum, podem os adquirentes declarar no próprio titulo de propriedade o percentual de participação de cada um sobre o referido bem. No caso de partilha judicial do bem, a proporção de cada condômino já estará determinada em documento proveniente de registros públicos com alto valor probatório.


Notas

  1. À guisa de esclarecimento, o enriquecimento ilícito, ou locupletamento, recebe vedação expressa do ordenamento jurídico pátrio, cabendo ao prejudicado, na ausência de outra ação mais eficaz, a actio in rem verso, vide CC, arts. 884 a 886.
  2. More uxorio, em latim: como marido e mulher.
  3. CC, art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
  4. Código Civil/1916, art. 1369. O simples ajuste de sociedade universal, sem outra declaração, entende-se restrito a tudo o que de futuro ganhar cada um dos associados.
  5. STF, Súmula 380. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
  6. Deve denominar-se como resilição a hipótese de rompimento contratual por vontade de ambas as partes ou de apenas uma delas.
  7. No CC/16, a affectio societatis era positivada no art. 1363 – Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns.
  8. CC, art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1150).
  9. No casamento, ocorre o oposto: vigora a presunção de que o patrimônio adquirido na constância da união matrimonial, mesmo que em nome de um cônjuge apenas, pertencerá a ambos, em condomínio. Cf. CC, art. 1660. Entram na comunhão: I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges.
  10. A autora equivoca-se na capitulação do referido artigo. Na verdade, trata-se do art. 981 do atual Código Civil.
Sobre o autor
Fábio de Oliveira Vargas

advogado, mestre em Direito e Globalização pela UNINCOR/MG, professor de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Fábio Oliveira. O paradigma da sociedade de fato na união homoafetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2511, 17 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14864. Acesso em: 23 dez. 2024.

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