2 DA TEORIA DA TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES
Neste tópico passa-se a expor os elementos básicos que dão substrato à transcendência dos motivos determinantes sem, contudo, retirar a necessidade de compreensão de outros fatores e institutos relacionados ao tema, que serão posteriormente expostos.
2.1 DOS ASPECTOS GERAIS
Neste ponto, passa-se a analisar os institutos que se relacionam, direta ou indiretamente, com a teoria da transcendência dos motivos determinantes. A correta compreensão destes institutos é fundamental para se obtenha os benefícios almejados com a aplicação desta teoria.
3.1 DO DISTINGUISHING E DO OVERRULING
Convém salientar que a jurisdição é função criativa. O magistrado não é mais apenas a bouche de la loi (a boca da lei), como definiu Montesquieu no seu Espírito das Leis. As normas positivadas - inclusive a Constituição - não determinam completamente as decisões dos tribunais. Existe um longo espaço que se mete entre a generalidade da norma e a concretude da sua aplicação, cabendo ao juiz estabelecer um confronto entre aquilo que foi positivado e o que aconteceu na experiência concreta da vida. Houvesse uma cristalização, de maneira que os atos sociais fossem sempre os mesmos, a tarefa do magistrado se tornaria bem mais simples, como a de um matemático ou físico que, ao aplicar determinada fórmula, sempre chega ao mesmo e exato resultado. Os imprevisíveis fatores psicológicos, tecnológicos, históricos e sócio-culturais demandam esta atuação criativa jurisdicional.
A referida impossibilidade de os problemas jurídicos serem resolvidos apenas com uma operação dedutiva (geral-particular) é bem ilustrada pelos hard cases, situações nas quais os textos jurídicos existentes não apresentam soluções claras. No entanto, pelo princípio da proibição do non liquet, os magistrados têm o dever constitucional de decidir (artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88).
Neste passo, cabe asseverar que quando o Tribunal Constitucional, ao decidir, fixa um entendimento como sendo o mais adequado diante da Constituição ele cria norma. Esta norma, que é geral, como mencionado alhures, encontra-se na fundamentação do decisium e contém uma característica que a distingue das demais normas jurídicas (leis, por exemplo), qual seja a possibilidade de se tornar indiscutível pela coisa julgada material. Trata-se, em verdade, de precedente judicial, ou seja, parâmetro que deve ser seguido. Nota-se que a partir do precedente, por indução, cria-se a regra geral a ser observada.
Para a aplicação técnica desta regra geral (do precedente) deve ser utilizado o método de confronto, ou seja, deve-se aferir se o caso em julgamento guarda semelhança com os anteriores já decididos. Trata-se da análise dos elementos objetivos caracterizadores das demandas. Na hipótese de aproximação analisa-se a ratio decidendi firmada nas decisões prolatadas nas demandas anteriores e, havendo parentesco tipológico, aplica-se o precedente. Todavia, quando houver distinção entre o caso concreto (sub judice) e o paradigma ocorre o distinguishing. Neste caso, em razão de alguma peculiaridade, não há total coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à razão de decidir do precedente. Sendo assim, deve ser afastada a aplicação do precedente (ver Rcl 3626/PE).
Noutro giro, é claro que dificilmente haverá absoluta identidade entre as circunstâncias de fato na comparação entre o caso em julgamento e o caso que deu origem ao precedente. Destarte, ainda assim, é possível que a tese jurídica extraída do precedente seja aplicada. Nota-se, por conseguinte, que existem dois caminhos a ser seguidos pelo magistrado, a saber: 1)Ao entender que as peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação do precedente haverá o julgamento livre de observância do precedente (restrictive distinguishing); 2)Ao entender que, a despeito das peculiaridades, é possível aplicar o precedente estende-se a tese jurídica da ratio decidendi (ampliative distinguishing). Convém acrescentar que este expediente há de ser observado em todos os dispositivos processuais elencados no início deste trabalho, mesmo em se tratando de enunciados de Súmulas, uma vez que deve ser feito o confronto das situações de fato que caracterizam a situação concreta com as circunstâncias em que se baseia o enunciado de Súmula-paradigma.
Situação distinta do confronto na aplicação do precedente (distinguishing) é a sua superação (overrruling). Trata-se da técnica por meio da qual o precedente perde o seu caráter vinculante, sendo substituído por outro precedente (overruled). O tribunal adota nova orientação abandonando a antiga. A alteração de posicionamento do tribunal, é de se dizer, guarda semelhança com a revogação de uma lei por outra lei que trata de maneira diversa a mesma matéria. É certo que a decisão que implica o overruling exige maior carga de motivação, com a utilização de argumentos até então não suscitados, bem como a justificação da necessidade de superação. É perceptível que ao se decidir de maneira diversa do que foi consolidado pelo tribunal deve a Corte Constitucional agir com elevada cautela. Frise-se que no overriding não há superação total do precedente, mas apenas parcial, uma vez que o tribunal apenas limita o âmbito de incidência do precedente (ver HC 85185/SP - STF [8]).
Sobre o overruling e a doutrina vinculante faz-se conveniente transcrever os dizeres da lavra de SILVA (2008, p. 356):
Modernamente, a modificação da doutrina vinculante é vista como um aprimoramento do pensamento jurídico passado para adequá-lo ao desenvolvimento social. Dentro dessa ótica, a invalidação parcial ou total de uma doutrina vinculante é considerada como um instrumental intrasistêmico para assegurar a necessária flexibilidade ao ordenamento jurídico.
Pelas palavras do autor, nota-se que o overruling é salutar à manutenção do sistema da vinculação dos precedentes, uma vez que, ao permitir a mudança destes, evita-se a petrificação do direito. Vale frisar que o processo de revisão ou cancelamento de "Súmulas vinculantes" (artigo 103-A, §2º, da CR) é técnica positivada de superação de precedentes judiciais.
Insta asseverar que qualquer enunciado de Súmula quando revogado (express overruling) ou quando cai em desuso (implied overruling) são também variações da citada técnica. Tem-se como exemplo emblemático a mudança de posicionamento do STJ que, a partir do HC 88.420/PR [9] (leading case), impetrado no STF, alterou o seu posicionamento a respeito da necessidade de recolhimento à prisão do acusado como requisito para o conhecimento da apelação criminal, conforme se verifica a partir dos enunciados de Súmula n. 9 e 347 [10].
3.2 DA EFICÁCIA ERGA OMNES E DO EFEITO VINCULANTE
para a preservação de suas respectivas competências e garantia da autoridade de suas decisões. A previsão legal está disposta na Lei 8038/90 nos artigos 13 usque 18. Vale anotar, também, que a mesma teoria que subsidiava o manejo da reclamação antes de sua positivação – teoria dos poderes implícitos – é hoje utilizada para reconhecer o cabimento deste instituto diante dos tribunais estaduais. De se dizer que no RITJMG há previsão, em seu artigo 486, da reclamação para a preservação de sua competência ou garantia da autoridade de suas decisões, tendo em vista que este tribunal é o guardião da supremacia da Constituição do Estado. A reclamação consiste no meio através do qual se leva ao tribunal a notícia de usurpação ou invasão de sua competência e, ainda, de desobediência, praticada por juiz ou tribunal de grau jurisdicional inferior, à decisão de sua autoria. O STF tem enfatizado por vezes que a reclamação reveste-se de idoneidade jurídico-processual, se utilizada com o objetivo de fazer prevalecer a autoridade decisória de seus julgamentos, notadamente quando impregnados de eficácia vinculante. Nota-se que para o seu manejo pressupõe-se um processo prévio em que fora proferida a decisão que se busca garantir. Uma vez admitida a reclamação, o tribunal cuja autoridade tenha sido violada por decisão inferior condena o ato à ineficácia total, sem reformá-lo ou anulá-lo, para que outro seja proferido, negando, assim, o poder daquele órgão que realizou o ato. Fica demonstrado que o vício do ato reside especificamente na ausência de poder para realizá-lo.Cumpre acrescentar a existência de divergência quanto à natureza jurídica da reclamação. Primeiramente, há de se deixar de lado a corrente que a trata como pertinente à seara administrativa, haja vista que o órgão jurisdicional competente afastará a eficácia de ato de juiz ou tribunal inferior invasivo de sua competência ou em desacordo com anterior julgamento seu. Esse afastamento se realizará no exercício da jurisdição e com pretendida eficácia sobre determinado litígio ou relação processual. Não se trata de ação autônoma, haja vista que não há discussão de causa com terceiro. Não é recurso, pois não obedece ao princípio da taxatividade e não pretende reformar decisão, mas tão-somente garanti-la. Não é incidente processual, uma vez que é manejada, em regra, após decisão final de mérito até antes do trânsito em julgado (ver enunciado de Súmula 734 do STF). Para o Min. Marco Aurélio (Rcl 336/DF), trata-se de instrumento de extração constitucional, destinado a viabilizar, na concretização de sua dupla função de ordem político-jurídica, a preservação da competência e a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, entende o referido ministro tratar-se de instrumento sui generis.
Neste passo, convém explicitar a íntima relação entre o efeito vinculante de decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas e a figura da reclamação, bem como a sua repercussão no âmbito do Pretório Excelso. Não há dúvida de que tal relação reforça o perfil da Corte como guardiã da Constituição e dá nova dimensão ao próprio exercício da jurisdição constitucional, na medida em que possibilita que esta fulmine decisões emanadas de instâncias inferiores ou, até mesmo, atos de autoridades administrativas. É importante mecanismo que instrumentaliza a normatividade constitucional em evidente ganho na coerência e unidade do sistema constitucional.
Consideração importante a ser feita é a de que a reclamação abre a possibilidade de os jurisdicionados alcançarem com maior rapidez a prestação jurisdicional referente a questões já decididas pelo STF, sem a necessidade de perpassar pelo violento filtro do recurso extraordinário. No caso das normas paralelas, como esposado, inexiste a necessidade de se ajuizar ADI, ADC ou ADPF. Trata-se de tutela jurisdicional adequada, tendo como lastro o direito fundamental à duração razoável do processo.
Em um primeiro momento o STF, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade (processo objetivo), não admitia a reclamação, tendo em vista a inexistência de decisão que demandasse execução específica. Após mudança de posicionamento, passou o referido tribunal a aceitar que a reclamação fosse ajuizada pelos legitimados para a propositura de ADI do artigo 103 da CF/88, excluindo-se as partes envolvidas nos processos em curso, nos quais se tenha verificado descumprimento de julgado da Corte (ver Rcl. 397-RJ). Prova do relatado é o artigo 156 do RISTF [13], que elenca o interessado na causa e o Procurador Geral da República como únicos legitimados para a reclamação. De semelhante redação é o artigo 187 do RISTJ [14]. A interpretação de "parte interessada" era no sentido de que embora esta expressão assumisse conteúdo amplo no âmbito do processo subjetivo, de maneira a abranger, inclusive, terceiros juridicamente interessados, no processo objetivo, limitava-se aos órgãos legitimados a sua instauração. O referido posicionamento da Suprema Corte evoluiu novamente e a partir de 07/11/2002 (ver Rcl 1.880-AgR/SP [15]) passou a admitir como parte legítima todos aqueles atingidos por decisões contrárias ao entendimento fixado pelo STF em julgamento de mérito proferido em ADI.
Com a EC n. 45/2004, que deu nova redação ao §2º do art. 102 da CF/88, colocou-se uma pá de cal sobre o assunto, de maneira que se considera legitimado para o ajuizamento da reclamação, nas palavras do Min. Celso de Mello (ver Rcl 2143 AgR / SP), "àquele – particular ou não - que venha a ser afetado, em sua esfera jurídica, por decisões de outros magistrados ou tribunais que se revelem contrárias ao entendimento fixado, em caráter vinculante, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos processos objetivos de controle normativo abstrato instaurado mediante ajuizamento quer de ação direta de inconstitucionalidade, quer de ação declaratória de constitucionalidade".
Nesta linha, há firme orientação do STF que reconhece ao terceiro a qualidade para agir quando se torne necessário assegurar o efetivo respeito a julgamentos proferidos em controle normativo abstrato. Assim, confere-se legitimidade ativa (legitimidade ad causam) ao particular que venha a ser afetado em sua esfera jurídica por decisões de outros magistrados ou tribunais, ou mesmo por condutas da administração pública, em todos os níveis, que sejam contrárias ao entendimento fixado em caráter vinculante pelo STF.
Verifica-se, por conseguinte que o litígio jurídico-constitucional suscitado em sede de controle abstrato, na perspectiva do pleito posteriormente formulado, torna possível, no âmbito do processo reclamatório, a transcendência de seus motivos determinantes. Evidencia-se a possibilidade de manejo da reclamação para a observância do precedente. Desta forma, ao apresentar-se revestida do efeito transcendente, a ratio decidendi viabiliza o instrumento reclamatório, de maneira a contribuir com a preservação da ordem constitucional (ver Rcl 1.987/DF).
De se concluir que a reclamação constitucional evoluiu e não mais se destina apenas a assegurar a competência e a autoridade de decisões específicas do STF. A reclamação consagra-se como instrumento voltado à proteção da ordem constitucional. A eficácia vinculante relacionada à transcendência dos motivos determinantes da decisão no controle abstrato de constitucionalidade, já utilizada pelo STF, confirma esse novo papel da reclamação, que resguarda não apenas o objeto e o parâmetro de controle de uma decisão, mas a própria interpretação da constituição levada a efeito pela Corte. A ampla legitimação e o procedimento simples e célere, como características, qualificam este mecanismo como eficaz protetor da ordem constitucional, tal como interpretada pelo STF.