CAPÍTULO III
A Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, autodenominada Estatuto da Cidade (art. 1º, parágrafo único), tem origem no desejo de criação de uma legislação federal que tratasse do desenvolvimento urbano.
Nos idos de 1977 deu-se a primeira tentativa de instituir referida legislação, objetivando regulamentar o desenvolvimento urbano, com a criação da Comissão Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). Porém, o projeto de lei 775 de 1983 não obteve o apoio necessário no Congresso Nacional para transformar-se me lei, e os debates foram esquecidos momentaneamente.
Somente com a promulgação Constituição Federal em 1988 as discussões foram retomadas e os projetos tiveram tramitação expressiva. Em 1989, surge o Projeto de Lei 2.191/89 e, posteriormente, veio seu substitutivo, o Projeto de Lei 5.788. Aprovado em dezembro de 1999, pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados, o substitutivo finalmente regulamentou as disposições constitucionais sobre Política Urbana, estabelecendo suas diretrizes gerais, além de providências outras diversas.
A demora para a finalização dos trabalhos é certamente atribuída à total ausência de vontade política dos congressistas, sempre demonstrando maior preocupação na defesa de causas próprias do que na preservação dos interesses sociais. Acabou por prevalecer, durante anos, os interesses dos empreendedores do setor imobiliário em detrimento ao desenvolvimento sustentável das cidades.
Noticia-se que o mandamento constitucional que estabelece o condicionamento da aplicação dos instrumentos destinados a dar à propriedade urbana uma função social à existência de lei federal e do plano diretor decorre de um movimento de parlamentares conservadores que buscaram, com sucesso, favorecer especuladores imobiliários, cujas consequências são até hoje percebidas.
Por outro lado, os diversos avanços obtidos a partir de 1999 devem-se muito ao fato de a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados ter ficado sob o comando de alguns partidos progressistas, como o Partido Comunista do Brasil e o Partido Socialista do Brasil, tendo o próprio Presidente da Comissão assumido a relatoria do Estatuto da Cidade.
Papel fundamental também foi o exercido pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana, realizando grande pressão na elaboração de emendas, através de conversações contínuas com deputados e com a Câmara Brasileira de Indústria da Construção.
A lei veio a ser sancionada pelo Presidente da República somente em 10 de julho de 2001, sofrendo apenas um veto significativo, com a exclusão do texto de um importante instrumento de execução da política urbana, qual seja, a concessão de uso especial para fins de moradia.
3.2. Instrumentos para a execução da política urbana
Inúmeros instrumentos, das mais diversas naturezas, são estabelecidos pelo Estatuto da Cidade para que seja executada a política urbana. Em razão de tal diversidade, a lei determina que os instrumentos serão regidos pela legislação que lhes for própria. O extenso rol é meramente exemplificativo, podendo ser utilizados outros instrumentos.
O plano diretor é o instrumento básico para a implementação de políticas de desenvolvimento e expansão urbanas.
Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:
I – com mais de vinte mil habitantes;
II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;
III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;
IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;
V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.
Apesar de o Estatuto da Cidade ser instituto da mais alta importância para a implementação de políticas urbanas, alguns de seus institutos não são aplicáveis automaticamente, necessitando da regulamentação adequada, através da criação de um plano diretor, além de, posteriormente, a edição de leis específicas, como a necessária para as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
Além da desapropriação para fins de reforma urbana, que será analisada em capítulo próprio, o Estatuto da Cidade possui outros mecanismos para dar cumprimento à função social da propriedade urbana. São instrumentos que não possuem o mesmo caráter sancionatório daqueles previstos na Constituição Federal, mas que são, também, de extrema relevância na execução das políticas públicas urbanas.
Dentre os mais importantes, está a usucapião especial de imóvel urbano, também chamada usucapião pro labore, prevista no artigo 183 da Constituição, e regulada no Estatuto da Cidade no artigo seguinte:
Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O Estatuto da Cidade inovou ao texto constitucional, ao estabelecer que não só a área urbana poderá ser usucapida, mas também a edificação. Ao que parece, o legislador infraconstitucional quis apenas deixar claro que os imóveis, edificados ou não, poderão ser usucapidos. Desnecessária tal alteração do texto, pois a regra constitucional já abrangia toda e qualquer área particular, edificada ou não.
Trata-se de instrumento que somente poderá ser reconhecido ao possuidor uma única vez, podendo o título de domínio ser conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Vindo a falecer qualquer deles, ou ambos, o herdeiro legítimo continua na posse do bem, contanto que lá resida no momento da abertura da sucessão.
A grande novidade, não prevista na Constituição Federal, está no artigo seguinte do Estatuto, que prevê a usucapião especial coletiva de imóvel urbano, objetivando regularizar situações existentes em inúmeros grandes centros urbanos, nos quais comunidades de baixa renda constroem suas moradias em terrenos particulares alheios.
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Na usucapião coletiva, a fração ideal de cada possuidor será atribuída pelo juiz na sentença, em processo que poderá ser movido por possuidores, individualmente ou em estado de composse, ou por associação de moradores da comunidade regularmente constituída.
Não é demais lembrar a impossibilidade de perda da propriedade estatal pelo decurso de tempo. Assim, os imóveis públicos não poderão ser adquiridos por usucapião, regra essa estabelecida em dois momentos na Constituição, nos artigos 183, § 3º e 191, parágrafo único.
No entanto, a função social da propriedade não deve ser observada somente pelos particulares, cabendo ao Poder Público aplicar as normas de execução das políticas públicas também em relação aos seus bens.
Finalmente, para se chegar à desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana, antes será necessário utilizar dois instrumentos de execução da política urbana, quais sejam, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e o imposto predial territorial urbano progressivo no tempo.
3.2.1. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios
A função social da propriedade urbana demanda que o imóvel seja utilizado adequadamente, conforme os usos permitidos na área em que se situar. Para a lei, considera-se subutilizado o imóvel que tenha aproveitamento inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente.
Para que o primeiro instrumento de natureza sancionatória pode ser utilizado, exige-se lei municipal específica para determinada área incluída no plano diretor. Essa lei fixará as condições e os prazos para o cumprimento da obrigação de edificação ou utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado.
Assim, além de lei instituindo o plano diretor, exige-se outra lei específica para a área urbana incluída nele, na qual poderão ser determinadas as referidas obrigações. Também deverá haver um conteúdo mínimo no plano diretor, sem o qual não serão viabilizadas as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização compulsórias.
Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:
I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5º desta Lei;
II – disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;
III – sistema de acompanhamento e controle.
A obrigação consistirá na exigibilidade de parcelamento de área urbana sub ou não utilizada, através da qual o proprietário do imóvel irá tirar proveito da especulação imobiliária, ou então, na exigibilidade de edificar os lotes não edificados, buscando-se o aproveitamento máximo da área conforme os usos permitidos.
O artigo 6º do Estatuto da Cidade prevê que a obrigação imposta ao proprietário que descumpre a função social do imóvel urbano é transferida juntamente com a transmissão do imóvel, seja por ato inter vivos ou causa mortis. Trata-se de obrigação propter rem, que incide sobre uma pessoa através de um determinado direito real. Assim, ocorrendo a alienação do bem imóvel, a obrigação é transferida juntamente ao novo proprietário ou promitente comprador.
No caso de alienação de imóvel sub ou não utilizado, ou não edificado, deve-se buscar a averbação no Registro de Imóveis antes da notificação. Isso porque, caso a transmissão ocorre posteriormente à notificação, a contagem dos prazos não será interrompida, e o adquirente poderá ter um breve prazo para o cumprimento da obrigação. A norma busca evitar que, a cada alienação do imóvel, haja um novo início na contagem dos prazos para o cumprimento da obrigação.
3.2.2. Imposto Predial Territorial Urbano progressivo no tempo
Havendo o descumprimento dos prazos e condições estabelecidos no artigo 5º do Estatuto da Cidade, o Município procederá à instituição do imposto predial territorial urbano progressivo no tempo. Evidente que o comando legal estabelece um dever, e não uma faculdade da administração municipal.
Com a regulamentação do dispositivo constitucional, o imposto passa a ter dupla possibilidade de progressão, uma de natureza fiscal, outra de natureza extrafiscal. A progressividade fiscal é estabelecida no artigo 156, § 1º, inciso I, enquanto a progressividade extrafiscal vem prevista no artigo 182, § 4º, inciso II, ambos da Constituição Federal.
A progressividade fiscal é fundamentada no princípio da capacidade tributária (artigo 145, § 1º), visando realizar a justiça social, na medida em que tributará mais os imóveis de maior valor. Trata-se de decorrência da presunção de que os proprietários de imóveis de maior valor venal possuem melhores condições financeiras, e assim suportam uma tributação mais elevada.
A progressividade fiscal adveio com a Emenda Constitucional nº 29/2000. Antes dela, parte da doutrina e a jurisprudência entendiam que somente era possível a progressão do imposto predial e territorial urbano quando para assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana. Esse entendimento já foi pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme o seguinte enunciado:
668. É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional n. 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.
Por sua vez, a progressão extrafiscal será efetuada através de majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos. Tal alíquota poderá ser majorada até o máximo de 15% (quinze por cento) do valor do lançamento fiscal do imóvel.
A inércia do particular que descumpre a função social de seu imóvel, após o prazo de cinco anos, permitirá ao Município a manutenção da cobrança do tributo, calculado pela alíquota máxima, até que se cumpra a obrigação. Em tese, é um mecanismo de grande alcance, na medida em que atingirá diretamente o patrimônio do particular, e de forma bastante drástica.
O sistema busca inibir a manutenção do terreno subutilizado ou não utilizado, forçando ao particular agir para dar cumprimento à função social do imóvel. Caso contrário, será economicamente inviável ao particular aguentar a cobrança em seus limites máximos. Ressalta-se o rigor da lei, que veda, sem qualquer ressalva, a concessão de isenções ou de anistia na progressão do imposto do Estatuto.
Assim, ainda que haja legislação municipal isentando determinados imóveis de imposto predial territorial urbano, o tributo incidirá sobre o imóvel subutilizado, por força do estabelecido pela lei federal. Cumprida a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, voltará o imóvel ao status quo, ficando isento do imposto conforme a legislação municipal.
Em razão dos rigores da cobrança, há quem sustente o caráter confiscatório, tanto da alíquota máxima, como da cobrança do imposto por prazo superior a cinco anos. [11]
Ocorre que a própria natureza do imposto, nesse caso, é extrafiscal, sancionatória, não sendo possível se falar, assim, em confisco. Ou a natureza é fiscal, e os excessos acarretam em confisco indevido, ou há caráter extrafiscal, sendo possível a majoração e a cobrança nos temos estabelecidos no Estatuto da Cidade.
A inadimplência do proprietário do imóvel, quanto ao tributo progressivo e majorado, permitirá a propositura de execução fiscal, acarretando numa coerção legítima ainda mais eficiente, só que agora demandando também o pagamento do crédito tributário, sob pena de, inclusive, arrematação judicial do imóvel.
Mantendo-se inerte o particular, nos termos da lei, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel. Visto que o Estatuto fala em poderá, a doutrina afirma de forma amplamente majoritária que se trata de mera faculdade da administração pública, sujeita à análise de conveniência e oportunidade em tomar a medida mais drástica.
Porém, na prática a situação poderá se apresentar de forma bastante diversa. Isso porque quando um proprietário deixa de parcelar, edificar ou utilizar seu imóvel, muito provavelmente assim o faz por questões financeiras. Citam-se como exemplos massas falidas da empresas e indústrias, ou mesmo construtoras, que têm sua falência decretada antes da conclusão das obras.
Em razão de tais prováveis hipóteses, a tributação do imóvel em elevadas alíquotas, possivelmente, de pouco servirá para que a lei atinja o objetivo de forçar o particular a dar cumprimento à função social do imóvel. Ao contrário, poderá apenas servir para aumentar a dívida ativa municipal, ensejar a propositura de execução fiscal, e ter como consequência a arrematação ou adjudicação judicial.
Ademais, é essencial para o sucesso da medida que o Município possua um confiável sistema de cadastro imobiliário, devidamente atualizado através de uma fiscalização eficiente ou por outras medidas, como programas de parcelamentos incentivados. Um cadastro eficaz é fundamental para a implantação do imposto predial e territorial progressivo no tempo, e para o sucesso da medida, que exigirá acompanhamento anual da situação do imóvel objeto de tributação.
Ao administrador municipal será mais vantajoso, do ponto de vista orçamentário, manter a arrecadação e gerar receita para os cofres públicos. Porém a questão não reside no que é mais vantajoso ou não ao gestor público, e assim na observância do interesse público primário, da sociedade, pelo atendimento da função social da propriedade urbana.
3.3. Desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana
A desapropriação prevista no art. 182, § 4º, inciso III, da Constituição Federal é uma das hipóteses de exceção ao art. 5º, inciso XXIV, uma vez que a indenização não precisa ser prévia nem justa.
O Poder Público poderá proceder à desapropriação quando o proprietário de bem imóvel urbano descumprir com a obrigação de dar uma destinação social à sua propriedade, após a superação do prazo de tributação do imposto predial e territorial urbano progressivo.
É possível que seja cogitado tratar-se a medida expropriatória de um poder discricionário da administração pública, e que assim não estaria o ente obrigado a interpor a demanda expropriatória. No entanto, trata-se de entendimento com o qual não se pode concordar.
Primeiro, porque, entendendo-se como mera faculdade, em tese, estaria sendo criada uma sanção de caráter perpétuo, visto que o proprietário poderia simplesmente cumprir com sua obrigação tributária e se manter inerte em relação ao cumprimento da função social, em manifesto desatendimento à Constituição Federal.
Segundo porque não foi concedida ao Município a faculdade de buscar o cumprimento da função social da propriedade. Não é dado ao Município simplesmente optar em continuar arrecadando o imposto, em sua alíquota máxima, ou tomar outras medidas para atender ao mandamento constitucional.
O Município não pode dispor de buscar o atendimento do interesse público e, em razão disso, não tendo o proprietário cumprido com a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios durante o prazo de incidência do imposto predial e territorial urbano progressivo, não restará ao administrador outra opção senão buscar a desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana.
O principal argumento da doutrina desfavorável ao instituto diz respeito ao lapso temporal que deverá ser percorrido até o momento da interposição da ação de desapropriação. Alega-se que o transcurso de tempo, que seria de no mínimo 8 (oito) anos, significará ao menos 3 (três) mandatos diversos do Chefe do Poder Executivo, e que tais fatos certamente prejudicariam a efetivação da desapropriação.
Porém, não se pode concordar com tais argumentos, uma vez que administrações municipais que pautem seus governos nos princípios estabelecidos no artigo 37 da Constituição Federal, que escolham seus servidores segundo critério de capacidade técnica e conhecimento, não sendo estes sujeitos às alternâncias políticas, não deverão sofrer com o longo percurso de tempo necessário, haja vista que tais agentes se incumbirão de buscar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
3.3.1. Pressupostos
Para que o Poder Público possa desapropriar determinado imóvel para atender à sua função social urbana, exige-se a ocorrência de determinados pressupostos, estabelecidos no capítulo dedicado à política urbana, na Constituição Federal.
O primeiro deles é a edição de norma infraconstitucional federal traçando diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano. Tal pressuposto fora preenchido com a promulgação da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais na execução da política urbana.
A seguir, para os Municípios com mais de vinte mil habitantes, exige-se a edição de um plano diretor, através da edição de lei municipal de iniciativa do Poder Executivo, que é o instrumento básico da política urbana de desenvolvimento e expansão urbana.
A elaboração do plano diretor exige do administrador público um exaustivo estudo acerca dos usos do solo municipal. É nele que estarão delimitadas as áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
A leitura da Constituição indica que, além do plano diretor, poderá o Município editar lei específica para área nele incluída, para exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a promoção do seu adequado aproveitamento. Porém, o próprio Estatuto da Cidade, como visto, determinada que o plano diretor deverá conter a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser determinado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
Ainda, antes de se proceder à desapropriação deverá o Poder Público determinar o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, através de notificação ao proprietário do imóvel. Descumpridos os seus prazos e condições, restará a aplicação do imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo, durante o prazo mínimo de cinco anos, para somente então proceder à expropriação do bem que descumpre sua função social urbana.
3.3.2. Competência expropriatória
A questão da competência para expropriar não apresenta grandes dificuldades, tendo em vista o estabelecido pelo artigo 8º do Estatuto da Cidade, determinando que ao Município compete proceder à desapropriação do imóvel. Ainda, o próprio Estatuto expressamente estende a competência ao Distrito Federal, em seu artigo 51.
Art. 51. Para os efeitos desta Lei, aplicam-se ao Distrito Federal e ao Governador do Distrito Federal as disposições relativas, respectivamente, a Município e a Prefeito.
Antes da promulgação do Estatuto, a competência era privativa do Município, nos termos do artigo 182, § 4º da Constituição, não sendo possível estender a competência ao Distrito Federal. A norma da Constituição Federal do artigo 32, § 1º, estabelece que ao Distrito Federal são atribuídas competências legislativas reservadas aos Municípios. E a competência do artigo 182 trata da prática de atos administrativos e judiciais, e não de edição de atos legislativos. Assim, somente após a promulgação do Estatuto o Distrito Federal também passou a ter competência para o procedimento expropriatório.
Importante notar que, da mesma forma com que ocorre na desapropriação-sanção para fins de reforma agrária, na desapropriação do Estatuto da Cidade a competência expropriatória só cabe a alguns entes políticos. No entanto, tal não impede que os demais entes, ou seja, União e Estados-membros, desapropriem bens urbanos com fundamento no interesse social, tendo em vista a existência do interesse público. Nesses casos, a indenização se dará nos termos do artigo 5º da Constituição, ou seja, justa, prévia e mediante dinheiro.
Aos Estados-membros e à União não houve atribuição de tal competência, não sendo correto afirmar, porém, que tais entes jamais poderão proceder à desapropriação prevista no Estatuto da Cidade.
Questão que não é abordada pela doutrina, mas que não pode passar desapercebida, refere-se aos Territórios que podem ou não ser divididos em Municípios. Conforme a determinação constitucional do art. 33, § 1º, aos Territórios aplicar-se-á, no que couber, o estabelecido no capítulo dos Municípios. Quando forem divididos, a questão não apresenta maiores dificuldades, e o Estatuto da Cidade será aplicado normalmente pela respectiva Municipalidade.
Porém, o Estatuto da Cidade nada estabelece quanto os Territórios que não forem divididos em Municípios. Atualmente, inexistem Territórios no País, em decorrência do estabelecido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Antes de 1988, no entanto, o Território de Fernando de Noronha, atualmente anexado do Estado de Pernambuco, não era divido em Municípios.
O artigo 182 da Constituição menciona somente que o Poder Público municipal executará a política de desenvolvimento urbano, sem falar, porém, em exclusividade ou privatividade para tanto. Ainda, o princípio da função social da propriedade urbana é informador de todo o ordenamento jurídico, devendo ser observado por todos o entes públicos, e não somente pelos Municípios.
Como a Constituição manda aplicar aos Territórios, no que couber, o estabelecido quanto aos Municípios, deverão aqueles promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, através de planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, conforme determina o inciso VIII do artigo 30 da Constituição Federal.
Assim, eventual Território que possua mais de vinte mil habitantes deverá elaborar o plano diretor. E, portanto, apesar do Estatuto da Cidade silenciar, os Territórios também terão competência expropriatória, de forma suplementar, para dar cumprimento à função social da propriedade urbana, podendo fazer uso da desapropriação para fins de execução da política urbana. E, caso o Território não seja dividido em Municípios, a competência para desapropria será da União.
3.3.3. Objeto
A desapropriação do Estatuto da Cidade encontra previsão constitucional no capítulo dedicado à política urbana, e tem aplicação quando o particular não respeita a função social de seu imóvel urbano. Assim, a primeira consequência lógica é a de que o objeto da referida desapropriação são os imóveis localizados no solo urbano.
Isso significa que ficam excluídos os bens móveis e semoventes, bem como os bens incorpóreos. Da mesma forma, também não serão objeto da presente desapropriação os imóveis localizados fora da área urbana do Município, isto é, na área rural.
Os imóveis públicos pertencentes aos demais entes políticos, igualmente, não serão objeto, sob pena de infração à isonomia das pessoas políticas, pois, como já visto, haveria infração ao princípio federativo consagrado pelos artigos 1º e 18 da Constituição Federal.
Ademais, a desapropriação-sanção somente é aplicável após a imposição do imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo pelo prazo de cinco anos. Tendo em vista que o princípio tributário da imunidade recíproca veda aos entes políticos a cobrança de impostos uns dos outros, nos termos do artigo 150, inciso IV da Constituição, fica prejudicada a desapropriação.
Vale relembrar que o texto constitucional, no artigo 182, fala que a aplicação das sanções pelo descumprimento da função social da propriedade urbana será feita de forma sucessiva, ou seja, somente descumprindo uma das sanções é que se passará à seguinte.
Porém, ainda que diante de tais argumentos, não é razoável admitir que imóveis públicos pertencentes à União ou aos Estados-membros simplesmente descumpram com sua função social urbana, desatendendo aos mandamentos constitucionais da execução da política urbana. Isso porque a nenhum dos entes é possibilitado descumprir a Constituição Federal.
Não serão todos os imóveis urbanos que poderão ser sancionados pelo procedimento expropriatório do Estatuto da Cidade, pois deverão ser preenchidas algumas condições. Para que o bem possa ser atingido pelas sanções do Estatuto da Cidade, deverá ele, inicialmente, estar incluído em área delimitada pelo plano diretor.
Após estar inserido na área urbana municipal, somente os solos urbanos não edificados, os não utilizados e os subutilizados poderão ser objeto de desapropriação para fins de reforma urbana. E, uma vez desatendida a função social da propriedade urbana, estará o Município autorizado a agir para impor ao proprietário as sanções previstas na Constituição Federal e regulamentadas pelo Estatuto da Cidade.
3.3.4. Indenização
O pagamento da indenização, como já dito, não será feito em dinheiro, mas sim em títulos da dívida pública municipal, ao contrário da regra geral. O tratamento diferenciado é justificado por se tratar de uma desapropriação de natureza sancionatória.
Títulos da dívida pública são títulos emitidos pelo Estado, sob a forma de empréstimos ou de antecipação de receita. Apresentam-se como apólices ou obrigações do tesouro ou de bônus.
Uma leitura atenta da Constituição poderá gerar perplexidades, visto que, aparentemente, há duas normas com disposições conflitantes dentro do artigo 182. A primeira norma nada mais faz do que repetir a regra geral, já fixada no artigo 5º da Constituição:
§ 3º. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
Como regra, portanto, a indenização de imóveis urbanos, que poderá ser fundada na utilidade ou necessidade pública, ou no interesse social, será feita através de dinheiro, de forma prévia e justa. A norma seguinte, no parágrafo 4º, traz a forma excepcional de desapropriar imóveis urbanos, nos seguintes termos:
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real de indenização e os juros legais.
A natureza sancionatória da desapropriação é a exceção no ordenamento jurídico nacional, vindo prevista em norma especial, em nada conflitando com a regra geral estabelecidas nos artigos 5º e 182, § 3º da Constituição. Apesar disso, há vozes na doutrina nacional sustentando a inconstitucionalidade do artigo 8º do Estatuto da Cidade, por ferir o estabelecido no § 3º do artigo 182.
O artigo 8º do Estatuto nada mais faz do que repetir a norma do referido inciso III, do § 4 º do artigo 182. Apesar de o § 3º do mesmo artigo não fazer ressalva, a legitimidade dessa forma de desapropriação decorre do próprio artigo 5º da Constituição, que ressalva os demais casos expropriatórios nela previstos.
Ocorre que o Estatuto, assim como a Constituição, fala em valor real da indenização, no caso de desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana, ao invés de estabelecer indenização prévia e justa. Ainda que se queira gerar polêmica sobre a questão, uma interpretação sistemática e teleológica dos institutos correlacionados não apresentará maiores dificuldades.
Haverá impossibilidade fática de a indenização ser prévia, visto que o pagamento será efetuado através de títulos da dívida pública, cuja emissão deve ser aprovada pelo Senado Federal.
Na verdade, a incongruência está no artigo 184 da Constituição, que fala em indenização prévia e justa em títulos da dívida agrária, porém resgatáveis no prazo de até vinte anos. Evidente que indenização não será prévia, e sim feita posteriormente. O artigo 182, § 4º não estabeleceu indenização prévia justamente porque tal se apresenta impossível.
Em relação à indenização assegurar o valor real da indenização, a celeuma até seria justificável, em face da ausência da previsão da indenização justa. Porém, da mesma forma, assim não se deve interpretar, pois a Constituição Federal fornece elementos suficientes para uma interpretação razoável. Ainda, se a Constituição emprega termos distintos, cabe ao intérprete e ao aplicador da lei buscar as razões da diferenciação.
Valor real da indenização significa que o pagamento deverá ser atualizado e corrigido monetariamente, entre a data do pagamento e o resgate dos títulos. É o reconhecimento pela Constituição da existência da inflação, que influi diretamente na desvalorização da moeda. Ao efetuar-se o pagamento, uma fez efetuada a atualização, estará sendo garantido o valor real de indenização.
Também, a indenização não será justa tendo em vista o caráter sancionatório dessa hipótese de desapropriação. Trata-se de critério que se justifica, tendo em vista que não deverá o Município arcar com os custos de uma indenização que reflita exatamente o preço de mercado de um imóvel, quando esse bem não atende a função social da propriedade urbana. Por isso, não cabe à Municipalidade destinar recursos em casos tais, ao contrário do que ocorre na desapropriação fundada no interesse público, onde a indenização serve para evitar a diminuição do patrimônio particular.
Os critérios são diferenciados porque as hipóteses são distintas. É a aplicação máxima do princípio da isonomia, que estabelece tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais. O proprietário que cumpre a função social da propriedade de seu imóvel perceberá indenização prévia, justa e em dinheiro. Já aquele que não utilizada, subutilizada ou não edifica seu imóvel, receberá indenização calculado em critério diferenciado, conforme estabelece o Estatuto da Cidade.
§ 2º O valor real da indenização:
I – refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontado o montante incorporado em função de obras realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza após a notificação de que trata o § 2º do art. 5º desta Lei;
II – não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios.
Assim, o valor real da indenização refletirá o valor da base de cálculo do IPTU. Tal não significa que os valores serão idênticos, ao contrário, trata-se apenas de um parâmetro para que seja efetuado o cálculo.
Atenta-se para o fato de que existe instituto de direito tributário que serve justamente para gerar receita aos cofres públicos nos casos de valorização imobiliária decorrente de obras públicas. Trata-se do tributo da contribuição de melhoria, previsto no artigo 145, inciso III, da Constituição Federal e regulado pelo Código Tributário Nacional.
A exclusão dos lucros cessantes se apresenta justificável, pois se o proprietário está sendo penalizado justamente por descumprir a função social da propriedade, não há como falar em pagamento de lucros eventualmente perdidos em face da desapropriação.
Portanto, a indenização àquele que descumprir a função social da propriedade urbana não será em dinheiro, nem prévia, nem justa. Se o próprio texto constitucional assim previu, nada impede que o Estatuto da Cidade, ao regular a matéria, estabeleça critérios diferenciados para aferir o valor da indenização. E assim o fez a legislação infraconstitucional, sem que haja qualquer inconstitucionalidade no critério optado. Apesar do exposto, há quem advogue ser inconstitucional tal critério, mesmo sabendo tratar-se de hipótese de desapropriação distinta. [12]
O Município terá o prazo máximo de cinco anos para proceder ao adequado aproveitamento do imóvel, contados a partir da sua incorporação ao patrimônio público (art. 8º, § 4º). Tal aproveitamento poderá ser feito pela própria Municipalidade, ou através de alienação ou concessão a terceiros, observando-se o devido procedimento licitatório (art. 8º, § 5º).
Dúvidas existirão acerca do momento em que se dará a incorporação ao patrimônio municipal, pois poderá ser considerada tanto a imissão na posse, como o registro do título no Cartório de Registro de Imóveis.
Nos termos do art. 1.245 do Código Civil, a propriedade imobiliária é transmitida com o registro do título translativo, sendo a posse insuficiente para a aquisição da propriedade. Porém, ideal seria a contagem do prazo a partir de imissão na posse, porque é neste exato momento que o Poder Público poderá entrar no imóvel e tomar as medidas concretas necessárias para efetivar o cumprimento de sua função social, bem como.
Finalmente, o Estatuto da Cidade, ciente da má utilização dos títulos da dívida pública, impõe restrições ao seu uso ao estabelecer que não poderão ser usados para pagamento de tributos e tarifas públicas, em seu art. 8º, § 3º.
Assim, conclui-se que na desapropriação para fins de reforma urbana a indenização, muito ao contrário da regra geral, não será nem prévia, nem justa, nem em dinheiro, mas sim garantidora do valor real do bem e em títulos da dívida pública, resgatáveis em até 10 (dez) anos em parcelas anuais, iguais e sucessivas.
3.3.5. Destinação do bem
A regra nas desapropriações é que, após a retirada forçada do bem da propriedade do particular, seja ele incorporado ao patrimônio público. Assim ocorre tanto na desapropriação fundada na utilidade pública como na fundada na necessidade pública. Porém, nas desapropriações por interesse social a destinação do bem é diversa, devendo ser a área colocada à venda ou à locação (art. 3º da Lei nº 4.321/62).
Na desapropriação para fins de reforma agrária, por se tratar de espécie de interesse social, o imóvel também não é incorporado ao patrimônio público. Como já visto, o poder expropriante deverá destinar a área desapropriada aos beneficiários da reforma agrária (art. 16 da Lei nº 8.629/93).
No Estatuto da Cidade a matéria vem regulada nos parágrafos 4º a 6º do artigo 8º. Após a incorporação do imóvel ao patrimônio público, o aproveitamento do bem deverá atender às diretrizes gerais estabelecidas pelo artigo 2° do Estatuto da Cidade. O prazo para a execução da política urbana será de cinco anos.
Prevê a lei que o ente político poderá dar cumprimento à função social diretamente, mantendo a área incorporada ao patrimônio público, ou por meio de alienação ou concessão a terceiros, observado o procedimento licitatório.
Portanto, tanto Poder Público como eventuais particulares estarão submetidos às obrigações destinadas a garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana, com a ressalvada de que o descumprimento do dever pelos entes públicos não os sujeitará as sanções do Estatuto da Cidade, diante da impossibilidade jurídica já analisada.
Caso não seja dado o adequado aproveitamento ao imóvel desapropriado, o Prefeito Municipal incorrerá em improbidade administrativa, nos termos da Lei n° 8.429/92, conforme estabelece o art. 52, inciso II, do Estatuto da Cidade, ficando sujeito a rigorosas sanções como a perda do cargo e a suspensão de seus direitos políticos.
3.3.6. Procedimento
O Estatuto da Cidade foi omisso em relação ao procedimento a ser adotado no caso de desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade urbana. Limitou-se a lei a prever a possibilidade da desapropriação, assim como seus requisitos, porém silenciando quanto ao rito.
Para Meirelles (2006), a ação de desapropriação deverá seguir o procedimento indicado no Decreto-Lei 3.365/41. Também é o entendimento de Neves (2004), que advoga haver maior coerência a utilização do Decreto, haja vista ser o procedimento para fins de reforma urbana o mais assemelhado, assim como para Salles (2006), que entende ser este o rito mais adequado.
Para a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, até que seja editada lei específica regulando a matéria, a ação de desapropriação seguirá o rito ordinário do Código de Processo Civil, devendo-se aplicar a regra da tutela antecipada do artigo 273, ao invés das regras clássicas específicas de desapropriação. [13]
Em que pese as respeitáveis opiniões, entende-se que o procedimento ideal a ser aplicado não resultará de somente uma norma, mas sim da conjugação de diversos estatutos vigentes, especialmente a Lei Complementar 76/93, que regula a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, tendo em vista as similitudes entre os institutos, porém, com as adaptações necessárias. Ademais, trata-se da norma mais recente e melhor estruturada.
A aplicação, na íntegra, de somente uma das normas sugeridas ou colocadas à disposição não será suficiente para que os objetivos buscados pelo Estatuto da Cidade sejam alcançados.
Inicialmente, ao contrário do que ocorre com as demais formas de desapropriação, não haverá necessidade de decreto declarando a área como de interesse social, diante da inexistência de previsão legal nesse sentido. Haverá, sim, a necessidade de outras normas, que são o plano diretor, além de outra lei específica para área incluída naquele plano, que determine as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, nos termos do artigo 182, § 4º, da Constituição Federal.
A competência para a propositura da demanda será, em regra, do Município, que será representado judicialmente pelo Prefeito ou por procurador, nos termos do artigo 12, inciso II, do Código de Processo Civil. Os Municípios que possuem uma estrutura jurídica minimamente organizada serão representados por seus procuradores municipais. Excepcionalmente, como já visto, a ação poderá ser movida pelos órgãos da Advocacia-Geral da União, caso o bem imóvel que descumpra a função social esteja localizado em Território não dividido em Municípios.
Além de tais requisitos, a petição inicial obrigatoriamente conterá a oferta do preço, conforme determinam tanto o Decreto-lei 3.365/65 como a Lei Complementar 76/93. Assim, a peça inaugural deverá ser instruída com certidões atualizadas de domínio e ônus real do imóvel, laudo de vistoria e avaliação administrativa, comprovante de lançamento dos títulos da dívida pública correspondente ao valor ofertado e comprovante de depósito bancário correspondente ao valor ofertado para pagamento das benfeitorias úteis e necessárias.
Referido laudo deverá conter descrição detalhada do imóvel, com memorial descritivo da área objeto da ação, relação de todas as espécies de benfeitorias existentes, com respectivos valores das indenizáveis. Nada impedirá, no entanto, que o magistrado utilize-se do estabelecido pelo artigo 14 do Decreto-lei 3.365/65 e, ao despachar a inicial, designe perito para avaliar os bens, justificadamente.
Ainda, a petição inicial deverá ser, necessariamente, instruída com documentação que comprove que as medidas sancionatórias anteriormente adotadas foram ineficazes. Isto é, deverá o autor comprovar que o proprietário do imóvel fora devidamente notificado para o cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o bem, e que, ou não houvera cumprimento das condições e prazos estabelecidos pelo artigo 5º do Estatuto da Cidade, ou houve descumprimento das etapas previstas no § 5º do mesmo artigo.
Também, deverão ser acostados aos autos documentos comprobatórios de que o imposto predial urbano fora lançado na forma progressiva durante o prazo de 5 (cinco) anos, e que tal medida não fora suficiente para que a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o bem imóvel fosse cumprida.
Neste caso, não se exige que o tributo tenha sido integralmente quitado, sendo que eventuais débitos podem ser buscados através das medidas cabíveis, além de devida propositura de execução fiscal. O que se exige é o cumprimento da obrigação, no prazo de 5 (cinco) anos, para que seja possível optar-se pela desapropriação do artigo 8º do Estatuto da Cidade.
Ao despachar a petição inicial, o juiz poderá, de plano, ou em breve prazo, mandar imitir o autor na posse do imóvel, independentemente de depósito prévio, haja vista a incompatibilidade com o pagamento a ser efetuado em títulos da dívida pública resgatáveis somente posteriormente. Havendo necessidade, poderá ser requisitado o auxílio da força policial para garantir a efetividade do ato de imissão na posse.
No mesmo ato, o juiz determinará a citação do expropriado para contestar e indicar assistente técnico, caso assim deseje. Ainda, o juiz também determinará a expedição de mandado ordenando a averbação do ajuizamento da ação no registro do imóvel objeto da demanda, para que se dê a devida publicidade, possibilitando o resguardo de eventuais interesses de terceiros.
A citação será feita pessoalmente ao proprietário do bem, ou ao seu representante legal, conforme estabelecido pelo Código de Processo Civil, podendo o autor optar por outras das formas legalmente previstas. Sendo o proprietário falecido, a citação deverá recair sobre o inventariante. Não havendo inventariante, a citação poderá recair na pessoa do cônjuge sobrevivente ou na de qualquer herdeiro ou legatário que esteja na posse do prédio.
Razoável será a determinação de notificação dos proprietários de imóveis adjacentes, para que possam, fundamentadamente, impugnar os limites divisórios do imóvel, e não só a citação somente dos confrontantes que impugnaram na fase administrativa, conforme preconiza o artigo 7º, § 7º, da Lei Complementar 76/93.
Nos termos da primeira parte do artigo 9º da Lei Complementar 76/93, o réu terá prazo de 15 (quinze) dias para contestar a ação. Já a segunda parte não tem aplicabilidade nesta forma de desapropriação, visto que não é possível ao réu contestar a existência de interesse social, pois este estará presumido de forma absoluta através da comprovação do descumprimento dos prazos estabelecidos para que o imóvel fosse parcelado, edificado ou utilizado devidamente.
Assim, analisada a legislação vigente, em especial as regras contidas no Decreto-lei 3.365/65 e na Lei Complementar 76/93, nota-se que esta norma é aplicável de forma mais eficaz à desapropriação para fins de reforma urbana, efetuando-se as devidas adaptações e com o auxílio das demais, para que seja possível a aplicação efetiva dos princípios maiores consagrados pela Constituição Federal de 1988.