SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. Capítulo I. A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL. 1.1. Evolução histórica da noção de propriedade. 1.1.1. Direito germânico antigo. Grécia antiga. Direito romano. 1.1.4. A propriedade feudal. 1.1.5. Direito monárquico francês. Direito socialista na União Soviética 1.2. Função social da propriedade. 1.3. Evolução do conceito no ordenamento jurídico brasileiro. 1.3.1. A Constituição Monárquica de 1822. 1.3.2. As Constituições Republicanas. 1.3.3. A Constituição Federal de 1988. 1.4. Codificação civil. 1.4.1. O Código Civil 1916. 1.4.2. A Constitucionalização do direito civil com o Código de 2002. Capítulo II. DESAPROPRIAÇÃO. 2.1. Limitações do Estado à propriedade privada. 2.2. Desapropriação. 2.2.1. Requisitos. 2.2.2. Declaração expropriatória. 2.2.3. Imissão provisória na posse. 2.2.4. A denominada desapropriação indireta. 2.2.5. O direito à retrocessão. 2.3. Procedimento. 2.3.1. Procedimento administrativo. 2.3.2. Procedimento judicial. 2.4. Desapropriação por interesse público ou necessidade pública. 2.4.1. Desapropriação por zona. 2.5. Desapropriação por interesse social. 2.5.1. Desapropriação para reforma agrária. Capítulo III. DESAPROPRIAÇÃO NO ESTATUTO DA CIDADE. 3.1. O Estatuto da Cidade. 3.2. Instrumentos para a execução da política urbana. 3.2.1. Parcelamento, edificação e utilização compulsórios. 3.2.2. Imposto Predial Territorial Urbano progressivo no tempo. 3.3. Desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana. 3.3.1. Pressupostos. 3.3.2. Competência expropriatória. 3.3.3. Objeto. 3.3.4. Indenização. 3.3.5. Destinação do bem. 3.3.6. Procedimento. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é a análise da desapropriação como forma de sanção ao proprietário que descumpre a função social da propriedade urbana, com análise conjunta dos institutos e conceitos jurídicos correlacionados. São tratados, inicialmente, os aspectos históricos da propriedade, sua concepção em diferentes períodos e a evolução do conceito de função social da propriedade. Posteriormente, examina-se a desapropriação como instituto do direito administrativo, seus fundamentos e as espécies existentes no ordenamento jurídico nacional. Ao final, analisam-se aspectos gerais do Estatuto da Cidade e os institutos sancionatórios aplicáveis aos proprietários que descumprem com a função social de sua propriedade, como o parcelamento ou edificação compulsórios, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e, em especial, a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, com abordagem específica do procedimento a ser adotado, trazendo-se solução para a ausência de previsão do rito procedimental a ser adotado.
Palavras-chave: Propriedade – Função Social da Propriedade - Desapropriação – Estatuto da Cidade.
INTRODUÇÃO
A propriedade é objeto de reflexões filosóficas e jurídicas desde os primórdios das civilizações. Inicialmente, apresentava-se como instituto de caráter eminentemente privado, inerente à pessoa. Com o passar do tempo, seu conceito evoluiu, deixando de satisfazer aos interesses subjetivos exclusivos de seu proprietário para atender aos mandamentos sociais, de natureza objetiva, decorrentes de sua função.
A Constituição Federal de 1988 alterou significativamente o ordenamento jurídico nacional para adequá-lo à moderna concepção do direito de propriedade e à sua função social, de forma a satisfazer tanto os interesses particulares como os coletivos, determinando à legislação infraconstitucional estabelecer uma série de regulamentações urbanísticas.
Simultaneamente, a crise apresentada em razão do crescimento desenfreado das cidades e a necessidade de se incorporar o conceito de função social da propriedade ao desenvolvimento urbano exigiram um efetivo aperfeiçoamento da legislação nacional urbanística, até então deficiente.
Surge assim, decorrente de mandamento constitucional e da necessidade apresentada, o Estatuto da Cidade, regulamentando importantes institutos previstos na Constituição Federal para o desenvolvimento urbano.
Dentre eles, destacam-se as sanções impostas em razão do descumprimento da função social da propriedade urbana, como a obrigação de parcelamento ou edificação compulsórios, aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e uma nova hipótese de desapropriação.
A intervenção na propriedade particular pelo poder público através da desapropriação sempre existiu no ordenamento jurídico nacional. Porém, agora é prevista modalidade inovadora, como forma de sanção para os casos de descumprimento da função social da propriedade urbana, recomendando um estudo aprofundado de todos os complexos institutos jurídicos afins, para que o administrador municipal possa utilizá-la de maneira eficaz na execução da política urbana.
CAPÍTULO I
Ter propriedade é uma condição natural do homem. Seja qual for a ideologia adotada, independentemente do momento histórico, não há como negar esse estado inerente à pessoa, que vai muito além de uma mera concepção espiritual, ou de uma conceituação jurídica.
As primeiras noções de propriedade surgiram em relação aos bens móveis, em especial quanto aos frutos colhidos das árvores e a caça e pesca para alimentação, assim como os itens e ferramentas utilizados no cotidiano dos homens e as armas utilizadas para sua defesa.
Durante toda a antiguidade sempre existiu uma relação mística e sagrada entre o homem e seus bens, significando que a individualidade transcendia o corpo físico, enaltecendo a importância dos instrumentos cotidianos. Por exemplo, no antigo Egito os Faraós eram mumificados e sepultados juntos com seus mais importantes e valiosos bens, os quais, acreditava-se, iriam pertencer-lhes após a morte.
O surgimento da concepção de propriedade imobiliária, relacionada ao solo, é muito posterior à concepção mobiliária. As primeiras relações do homem com a terra também eram consideradas sacras e invioláveis, sendo o solo um local sagrado e lar de forças sobrenaturais. Era nele onde os mortos eram enterrados, dando início a uma relação com seus ancestrais. Também, era onde as tribos ou a família iriam praticar a colheita para o seu sustento, e para o sustento da comunidade. Não existia uma relação absoluta, mas sim uma posse comum, na qual a terra pertencia imediatamente à família, pelo seu chefe, e de forma mediata a toda comunidade, às tribos ou aos clãs. Em razão disso o solo era essencialmente inalienável, especialmente aos estrangeiros.
O contato com os colonizadores dominantes da linguagem escrita viria a transformar profundamente tais relações. Estes acreditavam poder comprar as terras através de pagamentos ou escambo, trazendo grande perturbação nas relações com os mortos e com as forças sobrenaturais. As antigas estruturas seriam de tal modo modificadas que jamais recuperariam sua natureza original.
Nos povos nômades, as relações com a terra eram um pouco distintas. Havia uma noção bem mais definida de propriedade comum e temporária. Comum porque os animais, frutos e pastagens do solo, e as águas pertencem a toda a comunidade. E temporária porque, uma vez esgotados os recursos, ou em razão de ameaças de tribos inimigas, a comunidade se deslocava para outras áreas onde pudesse se instalar.
Verifica-se, dentre os povos antigos, a passagem da posse comum para a propriedade com indícios de permanência. Tal ocorre com o desenvolvimento da agricultura em substituição das práticas de colheita, fazendo com que as comunidades tribais familiares deem lugar às aldeias, possibilitando a convivência de diferentes famílias num mesmo local sem a perda das noções de solidariedade. Com o aprimoramento das práticas agrícolas surgiu a necessidade de terras férteis e irrigáveis, tendo como consequência o aparecimento dos primeiros centros populacionais nas proximidades de grandes rios.
O crescimento e aprimoramento das relações de comércio também ocasionam o surgimento de diversos centos urbanos. Sua origem decorre principalmente dos próprios fatores econômicos e das práticas mercantis, e também pela necessidade de troca e transporte de bens de algumas regiões para outras. Os grupos de mercantes passaram a instalar-se em locais seguros, no cruzamento de rotas comerciais, de forma a favorecer a instalação de mercados e feiras.
Os primeiros núcleos populacionais surgiram por volta dos anos 3.500 e 3.000 a.C., nos vales do rio Nilo, no atual Egito, e também na região do baixo vale dos rios Tigre e Eufrates, na antiga Mesopotâmia, onde atualmente localiza-se o Iraque. Logo depois, surgem os primeiros centros urbanos na Índia, por volta do ano 2.500 a.C., no vale do rio Indo, aos redores de Harappa. Posteriormente, por volta de 1.500 a.C., surgem as primeiras cidades na China, em torno do rio Amarelo (Huang), nas proximidades de An-yang, área próxima de onde atualmente localiza-se Pequim, capital da China.
Esses primeiros centros urbanos possuíam relativo desenvolvimento, alguns com habitações em andares, sistemas de esgotos e casas de banho, e outros, inclusive, com dirigentes incumbidos de sua administração. A antiga solidariedade familiar e comunitária cedia lugar ao parcelamento da propriedade imobiliária. Foi o momento histórico de maior avanço da antiguidade, em praticamente todos os setores da sociedade.
As cidades, porém, como parte de um fenômeno urbanístico, somente surgiram no decorrer do século XIX. Isso porque, em que pese o termo cidades seja utilizado indistintamente para todo aglomerado populacional, o termo urbanização somente é empregado quando, em determinado núcleo, a população urbana é superior à rural. Tal fenômeno se deu mais fortemente com a chegada da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no final do século XVIII. [01]
Para Gilissen (2001, p. 634), na história evolutiva da propriedade é possível a identificação de quatro espécies: 1) propriedade comunitária, de utilização da família, aldeia ou comunidade; 2) propriedade dividida, fragmentada, como nos direitos reais durante o feudalismo; 3) propriedade individualista, na forma absoluta do direito romano clássico e do Código Civil de Napoleão de 1804, e; 4) propriedade coletiva pertencente a um grande grupo, geralmente o Estado, como na extinta União Soviética.
Porém, apesar desta identificação, nunca houve uma separação absoluta na existência das espécies apresentadas, sendo que elas se encontram simultaneamente na história, havendo a prevalência de alguma delas em determinadas épocas. Afirmar a existência isolada de determinada forma de propriedade num certo período da história é um grave equívoco.
Assim é que, antes do surgimento das primeiras cidades, houve certa predominância da propriedade comunitária, pertencente às famílias e aos clãs, também muito presente entre os povos germanos. Já o feudalismo medieval foi marcado pela fragmentação da propriedade, onde os proprietários cediam terras aos vassalos para a exploração, em troca de uma contraprestação. Porém, houve uma mútua existência com domínios comuns nas aldeias. E, em ambos os momentos, sempre houve propriedades estritamente particulares.
A Revolução Francesa trouxe de volta o predomínio da propriedade individualista como um direito absoluto inerente à natureza humana, mas possibilitando, simultaneamente grandes propriedades aos monarcas e à Igreja. Finalmente, o regime socialista instaurado na União Soviética foi fortemente caracterizado pelas grandes propriedades coletivas, estatais, mas sob a alegação de pertencentes ao povo, também coexistindo com propriedades individuais e familiares.
O que predomina na atualidade é a existência do um direito de propriedade equilibrado sobre o princípio da propriedade como direito individual, e regrado pelo princípio da função social, que delimita seu uso e condiciona sua existência, de forma a atender simultaneamente o interesse coletivo.
1.1.1. Direito germânico antigo
Povos germanos é a denominação atribuída às diversas culturas que habitaram as regiões norte da atual Alemanha e sul da península escandinava, como os godos, francos, vândalos, suevos, jutos, anglos, saxões, além de muitos outros. Eram todos tratados pelos romanos como bárbaros, e viviam à margem das fronteiras do Império Romano. Organizavam-se socialmente em comunidades tribais ou clãs, sem a constituição de Estados ou cidades.
Tais povos não utilizavam normas jurídicas escritas, e as relações sociais eram reguladas pelo direito consuetudinário, costumeiro, passado de geração a geração. Por isso, muito mal se conhece sobre a evolução do direito da propriedade entre os povos germanos. No entanto, sabe-se que possuíam uma noção bastante clara em relação à propriedade mobiliária individual, a qual abrangia objetos pessoais como vestuário e armas, constituindo o patrimônio individual da pessoa.
Em relação à propriedade imobiliária, ao contrário, não havia a possibilidade de apropriação individual, quando muito se feita pela comunidade. As terras pertenciam a toda a tribo ou clã, e seus membros tinham o direito de usufruir determinadas áreas. Apenas a casa e a cabana eram consideradas propriedade familiar, juntamente com os utensílios domésticos, sendo essa a noção que mais se aproximava ao direito individual, mas, ainda assim, sem a possibilidade de efetiva apropriação individual por parte de qualquer dos familiares.
As demais terras, florestas, pastos e águas pertenciam a todo o clã, sem que alguém possuísse superfícies certas e delimitadas. Existia, ainda, um direito sucessório através do qual as terras dos antepassados eram transmitidas causa mortis em favor de parentes.
Esse sistema familiar germânico deixou profundas marcas durante a Idade Média, as quais subsistiram até a época atual. As noções de inalienabilidade da propriedade rural familiar remontam àquela fase. Nos campos, esse sistema durou até a Revolução Francesa, tendo sido suprimido de fato muito antes nas cidades medievais europeias.
1.1.2. Grécia antiga
Embora não fossem grandes juristas, o sistema jurídico grego foi um forte influenciador dos ordenamentos jurídicos da Europa Ocidental, graças aos seus grandes pensadores políticos e filosóficos, que iniciaram a elaboração de uma ciência política. O Direito é absolutamente baseado nas premissas mínimas de justiça estabelecidas pelos grandes filósofos gregos, como Platão e Aristóteles.
Apesar da dificuldade em se encontrar fontes escritas, é perfeitamente possível afirmar que os povos gregos antigos já possuíam uma clara noção de propriedade privada. O direito privado grego mais bem conhecido é o de Atenas e o de Esparta. Basicamente, pode-se afirmar que havia um grande individualismo, podendo o proprietário livremente dispor de seus bens com um mero contrato, produzindo efeitos entre as partes, mas com a publicação do ato para a proteção de terceiros.
Eterno perseguidor do idealismo, Platão, em A República, defendia a propriedade privada, mas com a condição de que tal direito não resultasse em sensíveis desigualdades sociais. Ensinava que para cada cidadão somente seria dado um pedaço de solo, transmissível a um só herdeiro, e a existência de uma propriedade comum dos cidadãos sobre terras, bens, mulheres e crianças, rompendo assim com o tradicional princípio da propriedade privada.
Por sua vez, em A Política, Aristóteles, de forma mais realista, apoia a propriedade privada com menos restrições do que Platão, voltando-se contra as propriedades comuns por este idealizadas, enfatizando o caráter pessoal do exercício do direito. Ao mesmo tempo em que tratava a propriedade como uma condição essencial à vida do homem, Aristóteles já enunciava os ideais da função social da propriedade privada, tendo em vista o interesse comum.
No entanto, as principais contribuições jurídicas dos povos gregos chegaram até a atualidade graças à influência que exerceram sobre o povo romano. Por não possuírem grandes leis ou obras de direito escritas, remeteu-se aos romanos a tarefa de exprimir as regras jurídicas daqueles.
1.1.3. Direito romano
O povo romano não possuía uma conceituação precisa sobre propriedade. Nos primeiros séculos de Roma, pode-se afirmar que a propriedade privada restringia-se ao lar, às terras que a circundavam, e aos altares e sepulturas religiosos.
O direito privado dos romanos é inicialmente caracterizado pela propriedade se apresentando como o mais absoluto dos direitos, impossibilitado de sofrer limitações ou restrições. O titular possuía o direito de utilizar sua propriedade como quisesse, podendo gozar, receber os seus frutos, ou dela dispor livremente. As ideias de propriedades comuns não eram conhecidas.
A propriedade era constituída de três faces: jus utendi (poder de utilizar a coisa), jus fruendi (poder de percepção dos frutos) e jus abutendi (poder de consumir ou alienar a coisa).
A propriedade entre os romanos possuía, ainda, grande vinculação com a religião, estando ambos os institutos intimamente ligados. A religiosidade era basicamente doméstica, e consistia no culto aos antepassados, os quais eram tratados como verdadeiros ícones religiosos, muito próximos a deuses. Os altares e sepulturas eram propriedades sacras da família, e as noções de domínio eram balizadas pelas posses que exprimissem a religiosidade familiar.
O advento da Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum) trouxe significante evolução no direito público e privado. A propriedade passou a sofrer limitação no seu uso, em especial quanto aos imóveis, no interesse do direito público e do direito de vizinhança. Também, não bastava o contrato de compra e venda para a transmissão de bens importantes, sendo exigível também um ato real de apropriação da coisa. Ainda, a norma previa a possibilidade de usucapião.
Com devida regulamentação e novas restrições, foi firmado o entendimento de que o domínio é o direito de usar, fruir e dispor do que é seu, desde que dentro das razões permitidas pelo direito (dominium est jus utendi fruendi et abutendi re sua quatenus juris ratio patitur). É possível afirmar que nesse momento histórico se configura um início do tratamento jurídico da propriedade considerando sua função social.
Conforme ensina Rolim (2003), na Roma antiga havia as propriedades quiritárias, pertencentes aos cidadãos romanos, também conhecidos como quirites. Essa forma de propriedade só poderia incidir sobre as coisas romanas, a cidade de Roma inicialmente, depois abrangendo toda a Itália. Somente no Alto Império, período entre os séculos I a.C e III d.C., foram reconhecidas propriedades inferiores, como as dos peregrinos que se instalaram em Roma, assim como as dos romanos que possuíam terras no exterior, chamadas de propriedades provinciais.
O Baixo Império, período que vai do séc. III ao V d.C., foi caracterizado pelo progressivo desaparecimento dessas distinções, para prevalecer somente a propriedade quiritária. Sobre essa concepção seria construída toda a base da teoria moderna da propriedade individualista, devido à verificação de uma efetiva unificação do conceito de propriedade. Mas foi nesse período onde também se concebeu o desmembramento da propriedade em direitos reais como a enfiteuse, o colonato e a superfície.
O direito de propriedade sofreu diversas modificações nas diversas fases do direito, sempre se adaptando às constantes alterações sócio-políticas-econômicas ocorridas durante a história do povo romano. (ROLIM, 2003, p. 185)
Ao fim do Império Romano o direito privado imobiliário foi marcado por uma forte concepção individualista, mas possibilitando, no plano fático, uma efetiva revolução jurídica ao permitir a existência de uma série de direitos reais àqueles que eram somente possuidores ou detentores.
1.1.4. A propriedade feudal
A Idade Média na Europa é o período marcado pela transformação das sociedades primitivas, que se fundiram, acarretando no surgimento das monarquias feudais. A época ficou caracterizada também pela fragmentação da propriedade, que acabou sendo dividida entre os nobres senhores feudais, com a exclusão de quase todas as demais classes. Esse fato determinaria, também, a divisão política do poder, impossibilitando a centralização inerente às monarquias.
Durante o período feudal nobres recebiam grandes porções de terras dos monarcas, passando a exercer sobre elas e sobre os vassalos os poderes administrativos e judiciários, basicamente apropriando-se das funções públicas estatais. Assim, os nobres se tornavam soberanos em relação às suas propriedades e àqueles que nelas viviam. Estes, por sua vez, eram obrigados a pagar pesadas taxas por viver e trabalhar nas terras dos senhores feudais.
Para a grande maioria da população não era possível falar-se em liberdade, já que os servos não possuíam posses significativas e ainda deviam estrita obediência aos nobres. O regime social existente era insustentável e tinha fim certo, a ser marcado pela Revolução Francesa de 1789.
1.1.5. Direito monárquico francês
O sistema da propriedade imobiliária na monarquia francesa foi o resultado da junção dos sistemas germânico e romano. Dos germanos, resgataram a sucessão dos bens dos antepassados. Ainda, da solidariedade tribal germânica resultou a propriedade comum das aldeias francesas, onde seus habitantes usufruíam, conjuntamente, dos bens que atendiam às necessidades coletivas.
Até então, vigorava na Europa o regime do mais forte sobre o mais fraco, no qual o senhor feudal era detentor absoluto de poderes sobre seus vassalos, não sendo propiciado a estes as mais básicas garantias. As propriedades tinham como donos, essencialmente, ou os senhores feudais, ou as entidades religiosas.
O grande marco que revolucionou o tratamento dispensado ao direito de propriedade foi dado na Assembleia Constituinte de 1789, onde se buscou suprimir todo o sistema existente no regime feudalista. Iniciou-se aí um verdadeiro processo de libertação do solo, buscando-se a extinção de todo o regramento típico do sistema feudal.
A propriedade, considerada como um "direito natural", "um direito inviolável sagrado" pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789, é um direito absoluto, exclusivo, quase ilimitado; o proprietário dispõe livremente dos seus bens. (GILISSEN, 2001, p. 646)
Em 1804 foi promulgado pelo Imperador francês Napoleão Bonaparte o Code Civil des Français, também conhecido como Código Civil Napoleônico. Apesar de não ter sido o primeiro código a ser estabelecido na Europa, certamente foi a mais influente de todas as codificações legais.
Suas regras individualistas de direito civil inspiraram uma série de normas até hoje vigentes, e que consagrariam a propriedade com características eminentemente privadas, consagrando-a como um direito absoluto, de forma a romper totalmente com o sistema feudalista.
1.1.6. Direito socialista na União Soviética
O exagerado individualismo advindo com a Revolução Francesa foi amplamente atacado pelas doutrinas socialistas a partir da metade do século XIX, tendo como marco o Manifesto Comunista, publicado em 1948, pelos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels.
A Revolução Russa de 1917, um dos fatos isolados que maior impacto causou no mundo moderno, também teve forte influência dos ideais de Marx e Engels. Os filósofos alemães defendiam a abolição do modelo de propriedade privada da burguesia, considerando-a como fonte natural e histórica de injustiças sociais. Não se pretendia suprimir toda e qualquer forma de propriedade, mas apenas a dos meios de produção, já que aquela propriedade pessoal, fruto do trabalho próprio, era fruto do mérito do trabalhador, e com ele deveria permanecer.
Com o fim da revolução, uma das primeiras medidas tomadas por Lênin ao assumir o poder na Rússia foi criar um decreto sobre a posse das terras, com a supressão definitiva de todos os grandes latifúndios, sem direito a qualquer tipo de indenização aos proprietários, passando-as para as mãos dos camponeses. Aboliram-se também todos os arrendamentos e servidões. Logo após, fora instalada a Nova Política Econômica, atenuando um pouco os excessos iniciais cometidos no processo de estatização das terras, mas ainda com pesadas restrições aos cidadãos.
Em 1929 teve início um processo forçado de coletivização da agricultura, com a transformação das pequenas propriedades rurais em grandes terras do Estado e em fazendas coletivas, e com a eliminação dos camponeses ricos.
Após sucessivos fracassos, a Constituição de 1936 dividiu a propriedade em dois grandes grupos: a propriedade do Estado e a propriedade pessoal. Esta última resumia-se à casa de habitação, um pequeno terreno adjacente, alguns poucos animais domésticos, e utensílios de menor importância.
A propriedade pessoal abrangia somente o fruto do trabalho próprio e da poupança. Tudo o que estivesse fora de uma dessas duas situações era considerada propriedade social, do Estado e, em última análise, de todo o povo.
1.2. Função social da propriedade
Sempre existiu na história uma preocupação com o tratamento social a ser dispensado à propriedade. Uma das primeiras e mais importantes contribuições aos estudos da propriedade foi dada por Aristóteles, por volta do ano de 300 a.C. Em A Política, o filósofo grego já enfrentava questões importantes como a vinculação da propriedade privada a uma destinação social.
A obra de Aristóteles é fortemente caracterizada pelas noções de supremacia do interesse público sobre o privado e de respeito ao bem comum. Ao mesmo tempo em que a propriedade é da essência do homem, o uso que este dela deve fazer é condicionado ao interesse coletivo.
No século XIII, o filósofo e teólogo italiano Tomás de Aquino, também considerado santo pela Igreja Católica, trouxe importantes contribuições para a formação da noção de função social da propriedade, ao aperfeiçoar os pensamentos de justiça e ética política ensinados por Aristóteles. Sua disciplina política introduzia a noção do bem comum como limite à propriedade, sendo esta um direito natural de apossamento de bens na luta do homem pela sobrevivência.
Os crescentes conflitos por terras durante a Idade Média acarretaram no aparecimento obras criticando a problemática social da propriedade. Em 1516, Thomas More afirma que o abuso da propriedade privada no campo econômico é um dos granes males da sociedade inglesa, e que os grandes proprietários são alguns dos culpados pelo terrível quadro social da Inglaterra do século XVI. Assim, conclui que as noções de propriedades privadas deveriam ser abolidas para garantir a justiça e a paz social.
O que se seguiu, no entanto, fora o surgimento e a consolidação de uma classe burguesa, formada através do desenvolvimento de atividades econômicas e comerciais, com a consequente transferência de todas as propriedades ao domínio do monarca. Este, por sua vez, com a finalidade precípua de aumentar a arrecadação estatal, passou a impor pesados tributos à população, forçando de maneira inevitável a quebra do regime então vigente.
Foi assim que, em 1789, ocorreu a Revolução Francesa, cuja expressão maior fora a Declaração Universal dos Direitos do Homem. O texto, ao mesmo tempo em que assegura o direito do homem à propriedade, também prevê a possibilidade de sua privação em razão da necessidade pública.
Os representantes do Povo Francês constituídos em Assembléia Nacional, considerando, que a ignorância o olvido e o menosprezo aos Direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolvem expor uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis, imprescritíveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente a todos os membros do corpo social, permaneça constantemente atenta a seus direitos e deveres, a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo possam ser a cada momento comparados com o objetivo de toda instituição política e no intuito de serem pôr ela respeitados; para que as reclamações dos cidadãos fundamentais daqui pôr diante em princípios simples e incontestáveis, venham a manter sempre a Constituição e o bem-estar de todos.
Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:
.............................................................................
XVII. Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige evidentemente e sob a condição de uma justa e anterior indenização.
A difusão do termo função social da propriedade é atribuída a Léon Duguit, especialista em direito público. Para o jurista francês, todo cidadão tem como obrigação na sociedade cumprir uma função no lugar que ocupa, sendo somente justificável o enriquecimento pela exploração do solo se, simultaneamente, for dado cumprimento a essa função social. O proprietário tem o dever de satisfazer as necessidades sociais, assim como o tem em relação às suas satisfações pessoais.
Mas a propriedade também foi combatida por muitos. O filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon, considerado por muitos como socialista, trouxe grandes contribuições para a elaboração do ramo do direito econômico. Em sua obra Qu''est-ce que la propriété?, ("O que é a propriedade?"), afirma o autor, radicalmente, que a propriedade é um roubo, e que, por assim afirmar, os proprietários lhe desejariam mal de morte.
Também de fundamental importância, o Código Civil português de 1867 é um marco jurídico mundial, que inovou substancialmente quanto às demais codificações, as quais não disciplinavam a função social da propriedade. Porém, o texto consagrava expressamente a função social do direito real e não da propriedade.
Na América, a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, de 5 de fevereiro de 1917, é considerada por muitos uma das constituições históricas mais significativas e bem elaboradas de todos os tempos. Em seus extensos artigos, a Carta mexicana disciplina todo o tratamento a ser dado ao direito de propriedade, tratando das terras públicas e do solo privado, e dos cuidados ao meio ambiente.
O texto faz, ainda, menção expressa à regulamentação da propriedade particular em benefício social e do interesse público.
Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del território nacional, corresponden originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de trasmitir el dominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada.
Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización.
La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y e mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana.
Na União Soviética, em janeiro de 1918, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, realizou-se em Moscou o III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de Deputados Operários, Soldados e Camponeses. O congresso teve como resultado a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, contendo diversos ideais comunistas inspirados pelas teorias idealizadas por Marx e Engels, com a abolição da propriedade privada e sua transferência ao Estado, como mecanismo de realização de sua função social.
1º. A fim de se realizar a socialização da terra, é abolida a propriedade privada da terra; todas as terras passam a ser propriedade nacional e são entregues aos trabalhadores sem qualquer espécie de resgate, na base de uma repartição igualitária em usufruto.
As florestas, o subsolo e as águas que tenham importância nacional, todo o gado e todas as alfaias, assim como todos os domínios e todas as empresas agrícolas-modelos passam a ser propriedade nacional.
Em 11 de agosto de 1919, foi promulgada a Constituição social-democrática de Weimar, da Alemanha, que também exerceu importante papel na socialização da propriedade. O artigo 153 da norma alemã garantia a propriedade, mas habilitava a lei para delimitar o seu conteúdo, a fim de determinar que a propriedade obriga e que seu uso e exercício devem representar uma função social em benefício da comunidade. A expressão a propriedade obriga se tornou mundialmente conhecida dentre os estudiosos do direito civil e da propriedade.
Finalmente, importante citar a Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, de 1961, estabelecendo que a propriedade, ao mesmo tempo em que é um direito natural, também deve obediência no seu exercício à função social, tanto em proveito do titular, mas também em benefício de toda a coletividade. A carta do papa foi dedicada à questão social à luz da doutrina da Igreja Católica.
1.3. Evolução do conceito no ordenamento jurídico brasileiro
Antes do século XVI, predominava de forma absoluta o regime de propriedade familiar típico das tribos indígenas. Havia uma relação sagrada entre os índios e as terras por eles ocupadas, que lhes proporcionavam habitação e sustento, assim como morada aos entes falecidos.
Da chegada dos portugueses em 1500, até a declaração de independência por Dom Pedro I em 1822, o Brasil viveu sob o manto jurídico de Portugal, aplicando-se aqui as Ordenações que lá vigiam.
Em 1532 o rei D. João III decidiu empregar no Brasil o sistema de Capitanias Hereditárias, dividindo o território em quinze lotes. Devido à extensão dos lotes, e a outros fatores, o sistema fracassou rapidamente, dando lugar então ao sistema de sesmarias. Estas, por sua vez, eram porções de terras inicialmente concedidas pelos donatários das capitanias, vigorando até 1821.
Pelo novo sistema, a concessão ficava condicionada ao aproveitamento econômico e útil do solo, o que nem sempre era atingido. Ainda, as sesmarias deram início à problemática dos grandes latifúndios, até hoje existente.
O Brasil passou quase trinta anos sem possuir normas específicas que regulamentassem as terras até que, em 1850, introduziu-se o sistema de posses com a assinatura da Lei de Terras. Pela nova lei, toda terra não utilizada ou ocupada deveria voltar para o Estado, passando a ser propriedade pública. Esse sistema de regularização de posses pode ser considerado como um marco inicial no Brasil, como um antecedente histórico do início da doutrina da função social da propriedade, já que condicionava o exercício do direito à efetiva utilização da terra.
Desde 1822, com a declaração da independência do Brasil, sempre foi acolhido em nosso ordenamento jurídico o direito constitucional à propriedade. Caracterizado inicialmente pelo seu caráter eminentemente privado, em toda a sua plenitude, nos termos da Constituição do Império, o exercício do direito de propriedade foi aos poucos sendo mitigado pelo interesse público.
No decorrer século XX passou-se a estabelecer a nível constitucional o interesse público ou coletivo como limite à utilização da propriedade priva, até o avanço final com a previsão do princípio da sua função social, o qual delinearia todo o atual regramento jurídico desse direito. Uma vez expressas, as normas constitucionais determinariam a regulamentação adequada dos institutos através de leis e decretos, de forma a possibilitar sua efetiva aplicação.
1.3.1. A Constituição Monárquica de 1822
A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, assegurava o direito de propriedade ao mesmo tempo em que previa a possibilidade de utilização da propriedade do particular em benefício da coletividade, mediante indenização prévia quando houvesse interesse público.
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
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XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. [02]
Interessante notar que, ao contrário das modernas constituições, nas quais os direitos e garantias dos cidadãos vêm logo no início da redação, a Constituição Imperial arrolava-os ao final do texto, após toda as regras de organização do Estado e dos Poderes e, ainda, nesse caso específico do direito à propriedade, mais precisamente no último artigo da Carta.
O dispositivo constitucional fora regulamentado pela Lei de 9 de setembro de 1826, seguida pela Lei 57, de 18 de março de 1836 e o Decreto 353, de 12 de julho de 1845. A regulamentação previa uma distinção entre os casos de necessidade pública e utilidade pública, listando as hipóteses de ocorrência de cada um dos casos, fixando também o regime jurídico ao qual estariam submetidos.
1.3.2. Direito de propriedade nas Constituições Republicanas
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, a primeira elaborada após a Proclamação de República em 15 de novembro de 1889, manteve o tratamento do direito de propriedade dispensado pela Carta anterior, apenas alterando a redação do texto.
Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
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§ 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.
Em 1916 foi editado o Código Civil Brasileiro (Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916), que vigoraria até o ano de 2002. O antigo código civil regulava inteiramente o exercício do direito de propriedade e, em seu artigo 590, previa a possibilidade de sua perda mediante desapropriação por necessidade ou utilidade pública, arrolando suas hipóteses de ocorrência.
No entanto, não havia previsão da expropriação como forma de aquisição da propriedade, e isso por tratar-se de instituto eminentemente de direito público, matéria fora da seara do Código Civil de 1916. Porém, o Código já possuía disposições que demonstravam uma certa proteção ao interesse público.
Sob forte influência da Constituição de Weimar de 1919, da Alemanha, em 1934 foi promulgada uma nova Constituição Federal que, apesar dos inúmeros avanços, estava fadada a ser meramente transitória, até o advento do Estado Novo. Em relação ao direito de propriedade, a Carta também trouxe significativos avanços.
Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
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17. É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.
Pela primeira vez na história do Brasil previu-se expressamente o interesse social ou coletivo como limite ao exercício do direito de propriedade. Ainda, foi previsto para os casos de desapropriação não só uma indenização prévia, mas também justa. A possibilidade de requisições administrativas de bens em situações excepcionais também encontrava limite no interesse público.
Em novembro de 1937 veio o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, e com ele a imposição de nova Carta Constitucional. Inspirada na autoritária Constituição da Polônia, o novo texto outorgado foi apelidado de A Polaca, marcando um grave retrocesso para o País.
A redução das funções dos Poderes Legislativo e Judiciário, o federalismo nominal e a concentração dos poderes políticos nas mãos do Poder Executivo, que passara a ser a autoridade suprema do Estado, foram apenas alguns dos inúmeros retrocessos estabelecidos com a nova ordem constitucional.
Esse atraso também seria sentido no novo texto relativo ao exercício do direito de propriedade, com significativa redução das disposições em relação à Constituição de anterior.
Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
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14. O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício;
Ocorre que foi sob a luz da Polaca que se editou o Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941, um dos principais textos legais sobre desapropriações, e que continua vigente até hoje, após diversas alterações. O avanço foi relativo, pois muitas das disposições legais eram puro reflexo do sistema ditatorial então vigente. Ainda, não houve ambiente político para regulamentar a possibilidade de desapropriação por interesse social.
Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se no País um processo de redemocratização, que culminaria com a edição da Constituição de 1946, novamente fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte, convocada após o afastamento de Getúlio Vargas do poder. Claramente influenciada pelo sistema socialista então vigente na União Soviética, a Carta passou a dedicar capítulos específicos aos direitos sociais e à ordem social.
O novo texto constitucional, em relação à propriedade, retoma a ideia da Carta de 1934, com alguns aperfeiçoamentos. A grande inovação foi possibilitar a desapropriação da propriedade particular por razões de interesse social, hipótese nunca antes contemplada, além de previsão da indenização em dinheiro.
Art 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
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§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.
Porém, a Carta Maior foi além, quando bem somou o bem-estar social ao interesse social como forma de limitação ao exercício do direito de propriedade pelos particulares.
Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.
O aperfeiçoamento do sistema jurídico nacional sobre propriedades veio com a edição da Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, tratando especificamente dos casos de desapropriação por interesse social, fazendo menção expressa, em seu artigo 1º, à referida norma constitucional do artigo 147.
Originalmente, o artigo 147 não possuía parágrafos. Mas a Emenda Constitucional 10, de 9 de novembro de 1964 alterou a redação do dispositivo, acrescentando seis parágrafos para instituir a desapropriação para fins de reforma agrária, abrangendo apenas propriedades rurais, e estabelecendo uma exceção ao sistema indenizatório. O parágrafo primeiro do referido artigo previa indenização mediante títulos especiais da dívida pública resgatáveis em até vinte anos ou compensáveis com o Imposto Territorial Rural, a qualquer tempo.
Foi então que, em 1964, um golpe militar retirou do poder o então Presidente da República, João Goulart. Em 1967, um Congresso Nacional despido de poderes constituintes praticamente outorgou uma nova Carta Constitucional.
Apesar do grave e trágico momento histórico, a Constituição de 1967 modificou substancialmente o tratamento dispensando ao direito de propriedade, já que pela primeira vez se fez referência ao princípio da função social da propriedade. Os institutos da desapropriação e da requisição foram basicamente mantidos em relação à Carta anterior. O grande avanço foi dado quando o legislador constituinte tratou da ordem econômica.
Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
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III – função social da propriedade;
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§ 1º. Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento de prévia e justa indenização em títulos especiais da divida pública, com cláusula de exata correção monetária, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do imposto territorial rural e como pagamento do preço de terras públicas.
Logo após, em 1969, adveio um dos mais duros golpes à democracia, o famigerado Ato Institucional nº 5, praticamente repetindo os dispositivos da Constituição de 1967.
Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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§ 22. É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 161, facultando-se ao expropriado aceitar o pagamento em título da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
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§ 34. A lei disporá sobre a aquisição da propriedade rural por brasileiro ou estrangeiro residente no País, assim como por pessoa natural ou jurídica, estabelecendo condições, restrições, limitações e demais exigências, para a defesa da integridade do território, a segurança do Estado e a justa distribuição da propriedade.
Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:
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III – função social da propriedade.
Enquanto em 1946 a Constituição se referia ao bem-estar social como condicionante da propriedade privada, a nova ordem ditatorial constitucional passou a exigir desta uma função social. A distinção é bastante significativa, já que o exercício do direito de propriedade passou a ser amparado somente enquanto no cumprimento da sua função social. Condiciona-se tanto o uso como também a propriedade privada em si mesma.
Apesar das fortes e inovadoras disposições, infelizmente não houve qualquer possibilidade de aplicação efetiva dos institutos. Tratava-se de um regime militar bastante severo e autoritário, marcado pelo cerceamento de quase todas as liberdades democráticas, por sistemáticas perseguições políticas, além de práticas de torturas, assassinatos e exílios políticos.
Após quase vinte anos de ditadura, diversos segmentos da sociedade brasileira iniciaram uma forte mobilização nacional para derrubar o regime militar e estabelecer uma nova ordem constitucional, com a possibilidade de realização de eleições diretas.
Foi assim que, em 27 de novembro de 1985, a Emenda Constitucional 26 convocou a Assembleia Nacional Constituinte para restabelecer a democracia e o estado de direito no Brasil.
1.3.3. A Constituição Federal de 1988
A "Constituição Cidadã", na expressão utilizada por Ulysses Guimarães, líder do processo de redemocratização e presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, é marcada por expressiva conotação garantista e social. A Carta reservou um capítulo inteiro à disciplina da ordem social, dentro do título dos direitos e garantias fundamentais, e introduziu profundas alterações no regramento da propriedade.
Seu artigo 5º disciplina as garantias e deveres individuais e coletivos, tratando amplamente do direito de propriedade e suas restrições, repetindo as ideias centrais da anterior, porém com significativos avanços. Dentre eles, a impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela família pelas dívidas decorrentes de sua exploração.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nessa Constituição;
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.
Estabelece-se, assim, que toda propriedade, independentemente de quem seja seu proprietário, estará obrigada ao atendimento das exigências legais para que sua fruição atenda não só aos interesses particulares de seu titular, mas também às expectativas e necessidades de toda a coletividade.
Quanto à ordem econômica, a Constituição adiciona a propriedade privada como princípio para assegurar uma existência digna conforme as regras de justiça social. Ainda, são dedicados capítulos específicos para as políticas urbana, agrícola, fundiária e de reforma agrária, com uma extensa e minuciosa disciplina de aplicação do princípio da função social da propriedade.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
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II – propriedade privada;
III – função social da propriedade
As intenções sociais da Carta em relação à propriedade continuam, e são repetidas no capítulo destinado à política urbana, estabelecendo não só a função social cidade, como também definindo quando a propriedade cumpre com sua função social e, ainda, relacionando as sanções aplicáveis aos proprietários que a descumprirem.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
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§ 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
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§ 4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
O plano diretor é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, sendo o instrumento básico e essencial para a política de desenvolvimento e expansão urbana. Obrigatoriamente, conterá as exigências fundamentais de ordenação da cidade que a propriedade urbana deverá atender para cumprir sua função social e, facultativamente, a definição das áreas onde poderá ser exigido o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, sub-utilizado ou não utilizado.
O capítulo sobre a política agrícola e fundiária e da reforma agrária também reforça a importância do cumprimento da função social da propriedade. No entanto, aqui, a norma é voltada mais para a União do que para os Municípios, já que àquele ente é o competente para a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Evidente, assim, a importância dada à propriedade pela Constituição Federal de 1988, em especial à urbana, quanto à questão do cumprimento de sua função social. No entanto, para sua efetivação, exigiu-se a devida regulamentação através da legislação infraconstitucional, que viria através do Estatuto da Cidade.
1.4. Codificação civil
Em toda a história do ordenamento jurídico nacional somente dois Códigos Civis foram editados, um em 1916, e outro em 2002. Pode-se afirmar que quatro codificações civis foram anteriormente tentadas, sem sucesso: os projetos de Teixeira de Freitas em 1859, de Nabuco de Araújo em 1872, de Felício dos Santos 1881, todos durante o Brasil Império, e o de Coelho Rodrigues em 1893, já sob o manto da República.
Antes disso, enquanto colônia de Portugal, vigia no Brasil as Ordenações portuguesas, que recebiam o nome dos Imperados responsáveis pelas compilações: Ordenações Afonsinas (1446-1521), Ordenações Manuelinas (1521-1603) e Ordenações Filipinas (1603-1867). Salvo em relação às Filipinas, não há exatidão na doutrina quanto aos termos inicias e finais das demais.
O anseio por uma legislação própria fez com que fosse editada a Lei de 20 de outubro de 1823. A norma ordenou que passasse então a vigorar em todo o território nacional as Ordenações e decretos de Portugal enquanto não houvesse a elaboração de um código nacional próprio.
O Código Civil de 1916 viria a revogar a aplicação das Ordenações Filipinas, instaurando um marco jurídico no ordenamento nacional. Era inspirado no momento histórico de sua publicação, marcado pelo liberalismo econômico e político, mas com certa conotação social.
No início do século XXI foi promulgado o novo Código Civil, em conformidade com o ordenamento constitucional estabelecido em 1988, integrando parte do direito comercial sob a denominação de direito empresarial, revogando tanto o Código anterior, como a Parte Primeira do Código Comercial de 1850.
1.4.1. O Código Civil 1916
O primeiro Código Civil brasileiro foi aprovado em 1916, entrando em vigência em 1º de janeiro de 1917. De autoria do renomado jurista Clóvis Beviláqua, a Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, foi recebida pela crítica nacional e estrangeira como um modelo de clareza, precisão e apurada técnica jurídica.
Trata-se, inquestionavelmente, de um Código rigorosamente científico, cujo aparecimento foi saudado com os maiores louvores. (MONTEIRO, 1997, p. 50).
Passava então a ser o único texto jurídico sobre direito civil em vigor, já que o seu artigo 1.807 revogara todas as "Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código".
Apesar do caráter predominante privado, algumas normas já apontavam a existência de um interesse público como condicionante do uso da propriedade.
Art. 572. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.
No entanto, alguns apontamentos esparsos no texto eram insuficientes para garantir o efetivo cumprimento da função social da propriedade urbana. A partir da previsão constitucional do princípio da função social da propriedade estabelecido em 1967, o Código de Beviláqua passou a exigir uma efetiva modernização de seu conteúdo.
1.4.2. A Constitucionalização do direito civil com o Código de 2002
A Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 instituiu o novo Código Civil, o qual teve como coordenador do projeto o já falecido jurista Miguel Reale, responsável pela codificação. Sua origem, no entanto, remonta à década de 1970, logo após as Constituições de 1967 e 1969, influenciadas pelas mutações sociais que afetavam toda a ordem jurídica mundial.
Atentos a essas modificações, juristas de grande renome nacional como Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sílvio Marcondes, Eberti Chamoum, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro, publicaram no dia 7 de agosto de 1972 no Diário Oficial, o anteprojeto do novo Código Civil, que viria a ser aprovado somente vinte anos depois, no início de 2002.
O anteprojeto já traçava profundas alterações na sistemática do direito da propriedade. Os ideais do liberalismo e do individualismo predominante no Código então vigente, influenciado pelo civilismo francês, cederia lugar aos novos ideais sociológicos e ao crescente sentimento coletivo que impregnava os estudiosos do direito.
No entanto, o projeto somente foi aprovado na Câmara dos Deputados nos idos de 1984, após uma série de complexos estudos e debates que acarretaram mais de mil emendas. As profundas turbulências políticas pelas quais o País passou atrasaram ainda mais a tramitação do projeto, vindo o Senado Federal a aprová-lo somente ao final do ano de 1997.
Apesar da expressão comumente utilizada da Constitucionalização do Código Civil de 2002, o que na verdade ocorreu foi uma confirmação pela Carta Constitucional das normas já estabelecidas no projeto do novo Código Civil. Em termos de direito de propriedade, muito pouco se inovou em relação ao projeto, ressalvado a disciplina das águas que, para muitos, não foi recepcionada pela nova ordem constitucional.
A constitucionalização do direito civil significa um processo de elevação de seus princípios ao plano constitucional, submetendo normas que são ordinariamente privadas à obediência da Carta Constitucional e de suas diretrizes. Trata-se de uma nova forma de pensar o direito privado tradicional, comumente preso a fórmulas codificadas, onde as regras escritas cedem espaço a princípios abstratos.
Provavelmente, a expressão máxima da constitucionalização do direito civil em relação ao direito de propriedade seja a determinação de sua existência conforme o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A nova ordem elevou o meio ambiente ao patamar máximo de proteção possível, de forma com que todos os demais direitos sejam exercidos sem afrontá-lo. E o novo Código Civil acolhe inteiramente essa disciplina constitucional.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
O atual Código Civil, no artigo 1.228, § 1º, reafirma a função social da propriedade acolhida no art. 5º, XXII e XXIII e artigo 170, III, todos da Constituição Federal de 1988. Na verdade, o novo Código Civil vai mais além, prevendo ao lado da função social da propriedade a sua função socioambiental com a previsão de proteção da flora, da fauna, da diversidade ecológica, do patrimônio cultural e artístico, da águas e do ar, tudo de acordo com o que prevê o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 e a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81). (TARTUCE, 2005)
O Código Civil continua trazendo significativos avanços em relação ao exercício do direito de propriedade, bem como às hipóteses de restrições. O texto, inclusive, vai além do estabelecido expressamente na Constituição Federal e, em conformidade com os princípios constitucionais, estabelece uma forma inovadora de desapropriação por interesse social, mesclando requisitos da usucapião, cujos beneficiários são os próprios cidadãos, prevista no artigo 1.228.
§ 4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
Ainda, são previstas outras hipóteses de desapropriação, não como procedimentos específicos, mas em decorrência de determinados fatos, que serão analisadas posteriormente. O Código, finalmente, prevê a desapropriação como uma das formas de perda da propriedade, conforme o estabelecido no inciso V do artigo 1.275.
Inegável a evolução jurídica alcançada pela nova legislação que, atenta à tendência legislativa moderna, adota uma série de conceitos jurídicos indeterminados, porém sem deixar de valorar objetivamente determinados institutos, conceituando-os e delimitando seu alcance.
Na esteira da Constituição Federal de 1988, o moderno direito civil brasileiro cada vez mais impõe restrições ao direito de propriedade, atendendo aos interesses públicos e coletivos maiores, à busca da justiça social e à proteção do bem comum.