Em março do presente ano, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) multou em R$ 364,5 mil a empresa Portonave, operadora do terminal de uso privativo misto [01] do Porto de Navegantes.
A aplicação da sanção pecuniária se deu porque, segundo o Relator do Processo Administrativo, Murilo Barbosa, a Portonave atua na prestação de serviços portuários como se terminal público fosse, distorcendo sua natureza de terminal de uso privativo misto, o que cria uma assimetria regulatória (e, consequentemente concorrencial), conforme se verificará adiante.
A importância do debate sobre o tema transcende o âmbito da ANTAQ, haja vista que discussão análoga está sendo analisada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no Ato de Concentração n.º 08012.007452/2009-31. Tal procedimento administrativo trata da aquisição de 51,4% do capital social total e votante da Empresa Brasileira de Terminais Portuários S/A (Embraport) pelos grupos Dubai World e Odebrecht para construir e explorar um terminal portuário de uso privativo misto no Porto de Santos.
Ademais, a Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres ajuizou, há dois anos, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n.º 139) buscando o reconhecimento judicial da corte suprema de que os terminais privativos de uso misto não podem prestar serviços a terceiros de forma preponderante. Esta medida cita a própria Portonave como exemplo de terminal que opera sem ter comprovado que possuía carga própria suficiente para justificar seu funcionamento como terminal privativo.
Faz-se mister citar também a Resolução n.º 1.660 da ANTAQ, que aprova a norma para outorga de autorização para a construção, exploração e ampliação de terminal portuário de uso privativo, revogando a Resolução n.º 517, cuja publicação se deu durante a elaboração do presente artigo, no Diário Oficial da União do dia 12 de abril de 2010.
Considerando, ainda, a atual conjuntura pátria, olhos postos no Plano Geral de Outorgas (Decreto n.º 6.620), que apresentou 45 (quarenta e cinco) áreas no território brasileiro para instalação de novos terminais portuários (sem especificar se estes seriam públicos ou privativos), a urgência (econômica e jurídica) do tema é indubitável; e chega até a seara política, pois a Senadora Kátia Abreu (DEM-TO) advoga pela liberação da movimentação de carga dos terminais de uso privativo sem qualquer restrição.
Assim, o presente estudo se propõe a, primeiramente, introduzir as modalidades de exploração de instalações portuárias, diferenciando conceitualmente (normativamente) os terminais públicos e os terminais de uso privativo (exclusivo e misto) para, ao fim, discutir se a pena aplicada à empresa Portonave é razoável, do ponto de vista dos princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito e da eficiência econômica. Para tanto, dividir-se-á o estudo em três grandes tópicos, de modo a facilitar sua compreensão.
I – Terminais de uso público e terminais de uso privativo misto (análise conceitual, normativa e estrutural das modalidades de exploração dos serviços portuários no Brasil)
- Conforme estabelecido pela alínea "b", inciso II, § 2° do art. 4° da Lei 8.630/93 (Lei dos Portos).
- JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 510.
- HECKLER, Gabriela. Terminais portuários de uso privativo misto e aplicação do Decreto n.º 6.620/08. In: CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de; PASOLD, Cesar Luiz (Coord.). Direito Portuário, regulação e desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 162.
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. Sâo Paulo: Malheiros, 2008. p. 430.
- "(...) conclui-se que a exploração de atividade portuária, por se tratar de serviço público, se dá mediante delegação, através dos instrumentos da concessão e da permissão, sendo que a autorização somente pode ser concedida para a exploração de atividade portuária sob o regime privado." (HECKER, Gabriela. op. cit. p. 168).
- Disponível em: < http://www.antaq.gov.br>. Acesso em: 13. abr. 2010.
- Porto Organizado, por sua vez, de conformidade com o art. 1.º, § 1.º, I, da Lei n.º 8.660, cuja redação foi dada pela Lei n.º 11.314, de 2006, é "o construído e aparelhado para atender às necessidades da navegação, da movimentação de passageiros ou da movimentação e armazenagem de mercadorias, concedido ou explorado pela União, cujo tráfego e operações portuárias estejam sob a jurisdição de uma autoridade portuária". Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 13. abr. 2010.
- Carga própria, segundo o art. 2.º, IV, da Resolução n.º 1.660 da ANTAQ, "é a carga pertencente à autorizada, à sua controladora, à sua controlada, ao mesmo grupo econômico ou às empresas consorciadas no empreendimento, cuja movimentação, por si só, justifique, técnica e economicamente, a implantação e a operação da instalação portuária objeto da outorga".
- O inciso V, do art. 2.º, desta Resolução conceitua carga de terceiros como "aquela compatível com as características técnicas da infraestrutura e da superestrutura do terminal autorizado, tendo as mesmas características de armazenamento e movimentação, a mesma natureza da carga própria autorizada que justificou técnica e economicamente o pedido de instalação do terminal privativo e cuja operação seja eventual e subsidiária".
- O conceito de mercado relevante é utilizado principalmente nos artigos 20 e 54 da Lei 8884/94 e, em poucas palavras, tem-se como sendo o espaço efetivo da concorrência, nas clássicas dimensões geográfica e de produto.Alguns autores identificam uma dimensão temporal. Entre eles, DEL CHIARO, José. Mercado Relevante e concorrência. Revista de Direito Econômico. Brasília, n.º 21, out./dez. 1995.
- No Ato de Concentração n.º 08012.007452/2009-31, a ABRATEC apresentou parecer do Dr. Gesner de Oliveira no qual este "definiu o mercado relevante como o de serviço de exploração de terminais portuários, consistente na utilização de áreas e instalações portuárias destinadas à movimentação e armazenagem de cargas, com dimensão geográfica nacional". (CADE. Ato de Concentração n.º 08012.007452/2009-31. Disponível em: <http://www.cade.gov.br>. Acesso em 20 abr. 2010.
- Fundamental destacar que nos Autos de Ação Civil Pública n.º 1.647, movida pelo Ministério Público do Trabalho, em trâmite perante a 3.ª Vara do Trabalho de Itajaí, a ANTAQ advoga pela contratação dos Trabalhadores Portuários Avulsos pela Portonave.
- NETO, Floriano Azevedo. A Nova Regulação dos Serviços Públicos. In Revista de Direito Administrativo - RDA, vol. 228, p. 25.
- VENOSA, Silvio de Salvo. Da revogação e anulação dos atos administrativos. Revista Forense, n. 259, p. 71.
- PINTO, Thais Gochi. A ponderação entre princípios na convalidação dos atos administrativos. Jus Vigilantibus, 7. ago. 2009. Disponível em: < http://jusvi.com/>. Acesso em 19 abr. 2010.
- ROLIM, Maria João Pereira. Direito Econômico da Energia Elétrica. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2002, p. 206.
- RAWLS, John. Teoria da Justiça. Ed, Martins Fontes, São Paulo, 1997, trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves, pp. 79 a 89.