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A internação compulsória no contexto da reforma psiquiátrica brasileira

Agenda 04/06/2010 às 00:00

Palavras-chave: Direito penal; internação; reforma psiquiátrica

A análise da questão da internação compulsória, enquanto espécie de medida de segurança, impõe uma avaliação desde de uma perspectiva interdisciplinar, vez que tais sanções situam-se num meio termo entre a prática jurídica e o discurso médico, numa verdadeira zona cinzenta em que ambos os discursos imiscuem-se, numa relação ao mesmo tempo complexa e complementar, impondo ao operador do direito a consideração de tal problemática a partir do novo paradigma de atendimento das demandas em saúde mental, oriundo da edição da lei nº 10.216 de 2001, e, dessa forma, impondo uma aplicação do direito mais consentânea com a valorização das potencialidades humanas e em compasso com o princípio da dignidade da pessoa humana, de inexcedível relevância num Estado garantista, como o brasileiro, inaugurado em 1988.

De um lado, o ordenamento jurídico informa que as medidas de segurança, conforme a lição de Luiz Régis Prado (2004), se constituem enquanto conseqüências jurídicas do delito, possuindo caráter penal, ajustando-se por razões de prevenção. É uma reação do ordenamento jurídico face à periculosidade revelada pela conduta do delinqüente.

Sob ponto de vista doutrinário, constituem sanções penais impostas pelo Estado, a exemplo das penas. Segundo Magalhães Noronha (1999), estas possuem um caráter de retribuição imposta pelo Estado ao infrator, em razão do ato por ele praticado, isto é, constitui uma expiação. As medidas de segurança, por sua vez, diferem das penas, fundamentalmente, pela sua natureza, considerada como de índole preventiva.

No mesmo sentido, Zaffaroni e Pierangeli (2004) sustentam a impossibilidade de se considerar penalmente algo que é, em realidade, um tratamento médico, porquanto a natureza das medidas de segurança se afastaria radicalmente do âmbito penal.

A aplicação das medidas de segurança tem por fundamento o conceito de periculosidade, entendido como um estado mais ou menos duradouro de anti-sociabilidade em nível subjetivo. Para o direito, trata-se de um juízo de probabilidade, que se fundamenta na conduta anti-social e na anomalia psíquica do agente, de que o mesmo volte a delinqüir. No caso do inimputável, em razão de perturbação na saúde mental, a periculosidade será presumida, ao passo que no caso do semi-imputável, a periculosidade será a real, isto é, reconhecida mediante decisão judicial.

O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê duas espécies de medidas de segurança, conforme determinação do artigo 96 do estatuto penal. São espécies de medidas de segurança, portanto, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e a sujeição a tratamento ambulatorial.

De outro lado, o conhecimento médico-psiquiátrico, na medida em que estabeleceu o modo pelo qual deveria ser abordada a questão da loucura, pautando a conduta terapêutica na aplicação de procedimentos metódicos e precisos, legitimou-se como a área do saber competente para dar conta da demanda da doença mental, do desajustamento comportamental, a ponto de exercer o monopólio sobre a loucura. Esse monopólio é sentido num âmbito que transcende os limites da ciência médica, projetando-se, inclusive, no campo da ciência jurídica. Não por outro motivo, o nosso código de processo penal trouxe a exigência expressa do exame médico-legal para aferir a integridade mental de alguém, excetuando a avaliação de qualquer outra autoridade técnica.

Esse exclusivismo da psiquiatria determinou um modelo hospitalocêntrico, determinista, que faz do louco não um ser histórico, dotado de subjetividade, mas quase um objeto, credor de cuidados em razão do risco que representa.

Na contramão desse processo, surgiu no Brasil, a partir das últimas décadas do século XX, um movimento de contestação do modelo manicomial e da ideologia asilar, em compasso com o movimento de contestação do regime militar então em vigor. O movimento de reforma psiquiátrica, inspirado nas idéias de Franco Basaglia, ganhou corpo, questionando o paradigma de atenção e cuidados ao paciente portador de transtorno psiquiátrico então estabelecido.

Apesar de ser apontado como um questionamento relativamente atual do modelo manicomial que se consolidou ao longo da história, o movimento reformista em psiquiatria constitui, no fim do século XX, um novo momento de crítica e controvérsia ao padrão de produção da verdade no campo da doença mental. Isso porque "o conjunto da psiquiatria moderna é atravessado pela anti-psiquiatria se por isso se entende tudo aquilo que recoloca em questão o papel do psiquiatra, antigamente encarregado de produzir a verdade da doença no espaço hospitalar" (FOUCAULT, 1979, p. 124).

O movimento de reforma busca não mais o aperfeiçoamento do sistema asilar, mas, antes, incide sobre os pressupostos e fundamentos da própria psiquiatria concebida como instrumento de controle social e normatização. No Brasil, essa luta estará estreitamente vinculada ao questionamento do sistema político. Sua eclosão, por assim dizer, se dá no âmbito dos movimentos de restauração da normalidade democrática. Portanto, conforme Tenório (2002), o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil tem como marca distintiva o reclame da cidadania do louco. Situa-se, portanto, no plano do questionamento acerca do paradigma vigente, visando à sua superação. Busca-se alçar um novo modelo de lidar com a demanda da loucura ao tempo em que aponta os inúmeros aspectos negativos legado pelo modelo asilar.

O movimento de reforma psiquiátrica torna-se mais completo na medida em que se mostra absolutamente diverso, não apenas do modelo centrado na instituição manicomial, mas também se distanciando das primeiras experiências de contestação ao sistema asilar, que eclodem a partir da segunda metade de 1970, momento de grande questionamento acerca da eficiência da assistência pública em saúde mental, bem como quanto ao caráter privatista da política de saúde do governo. Além disso, surgem denúncias de abandono, violência e maus tratos contra pacientes internados nos hospícios do país.

No plano da crítica, o principal diagnóstico obtido foi relativo ao modelo de prestação dos serviços de saúde mental vigentes. Observou-se não apenas que a assistência era constituída eminentemente com base no modelo asilar, mas que tal modelo tendia a ser privatizada, isto é, as internações psiquiátricas públicas não eram realizadas apenas no setor público, mas também, e em sua maioria, no setor privado, remuneradas pelo setor público. Não fosse o bastante, observou-se que o modelo manicomial de prestação dos serviços de saúde mental amparava-se em diagnósticos elaborados por técnicos especializados, possibilitando a confecção de indicações de internações quase inquestionáveis. Ademais, observava-se que existia uma idéia clara, disseminada na sociedade, acerca do verdadeiro lugar do louco, idéia ainda difundida na coletividade: o hospício. Somados esses fatores, o resultado será, como afirma Tenório (2002), um verdadeiro empuxo à internação.

A década de oitenta foi marcante para o movimento de reforma psiquiátrica em razão de possibilitar a consolidação de características que são percebidas ainda nos dias atuais. Três processos importantes para o futuro movimento reformista nasceram nesse período. São eles: a ampliação dos atores sociais envolvidos na problemática da reforma; as iniciativas de reformas legislativas; e o surgimento de novas experiências institucionais, a partir de um novo tipo de cuidados em saúde mental.

Em termos de ação legislativa, o grande passo foi a proposição, em 1989, do projeto de lei nº 3.657/89, pelo Deputado Paulo Delgado. Num exíguo documento, com apenas três artigos, o projeto tornar-se-ia conhecido como Lei de Reforma Psiquiátrica. Propunha três ações que revolucionariam as práticas em saúde mental. Primeiramente, proibia a construção ou a contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público. Em seguida, previa o direcionamento dos recursos públicos para o investimento em recursos não-manicomiais de atendimento. Por fim, previa a comunicação obrigatória das internações compulsórias à autoridade judiciária, para que esta se pronunciasse a respeito da sua legalidade. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas sua tramitação no Senado Federal enfrentou muitas dificuldades, tendo sido aprovado, mais de dez anos mais tarde, um substitutivo de menor alcance que o projeto original. De volta à Câmara, o projeto sofreu ajustes, sendo aprovada em 06 de abril de 2001, a Lei nº 10.216, tornando-se um avanço quanto ao modelo de abordagem das demandas psiquiátricas no Brasil. Além disso, a lei representa um novo padrão sobre o qual deve se assentar o atendimento em saúde mental, pautado em princípios eminentemente anti-manicomiais. Durante os dez anos em que tramitou no Congresso Nacional, a lei Paulo Delgado incentivou o debate e iniciativas regionais de reestruturação do atendimento psiquiátrico, protagonizando a curiosa situação de produzir seus efeitos antes mesmo de ser aprovada.

A lei nacional de saúde mental, em que pese não possuir o mesmo alcance do projeto original, significou um grande impulso ao processo reformista, na medida em que se materializa um instrumento de efetiva transformação da assistência e da condição do paciente psiquiátrico no Brasil. É, antes de qualquer coisa, o reconhecimento da cidadania e da subjetividade do doente, que passa a ser considerado sujeito de direitos e credor de cuidados por parte do Estado. O seu maior obstáculo, contudo, é o crescimento da oferta de internações psiquiátricas gratuitas, em geral, no setor contratado, conforme atesta Tenório (2002), o que contribui para cristalizar um sistema manicomial. O modelo orientador da ação terapêutica implementado pela lei 10.216/2001 exige a progressiva extinção dos manicômios no Brasil, a partir de duas variáveis, quais sejam, a criação de alternativas alheias à internação manicomial; e a desconstrução do circuito manicômio-dependente ainda existente.

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A lei nacional de saúde mental, representando a expressão do rompimento do modelo hospitalocêntrico e excludente, permite ao louco a manutenção no seu meio social, possibilitando "nos constrangimentos impostos por sua condição psíquica, exercer-se como sujeito" (TENÓRIO, 2002, p. 55).

Os enfrentamentos são, necessariamente, árduos, uma vez que a reforma psiquiátrica choca-se com um modelo historicamente estabelecido de agenciamento social da loucura, reclamado pela psiquiatria, desde seu surgimento. Há duzentos anos, a psiquiatria responde ao problema da loucura com a solução da internação, exclusão do doente do seu meio social, fomentando estigmas sociais inviabilizadores da expressão subjetiva do indivíduo.

A reforma psiquiátrica, constituindo-se essencialmente enquanto tentativa de evitar a internação como destino, e fomentando uma resposta ao problema do desequilíbrio mental a partir de práticas não asilares, mas tomando como base o agenciamento social da loucura, permite que esse indivíduo, nas contingências de sua loucura, se expresse na forma de ser histórico. A lei nº 10.216/2001, expressão da reforma do modelo assistencial em saúde mental no Brasil, tem por escopo a busca de um aperfeiçoamento técnico e institucional que promova práticas inclusivas, contribuindo profundamente para a transformação da visão social da loucura e do louco.

Analisar a relação e influência da lei de reforma psiquiátrica brasileira sobre o nosso estatuto criminal, no que tange ao tratamento jurídico do louco criminoso é a tarefa da mais alta relevância. Discutir a questão das medidas de segurança previstas no nosso ordenamento jurídico-penal a partir do enfoque introduzido pela lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001, constitui uma tarefa complexa, na medida em que esta lei representa uma nova maneira de dar enfrentar o problema da assistência em saúde mental.

No âmbito jurídico, observou-se que a doutrina tende a considerar a medida de segurança como uma sanção penal de cunho terapêutico e preventivo. Apesar disso, considerar a internação compulsória enquanto ação terapêutica que objetive ao restabelecimento do portador de transtorno mental acarreta inúmeros inconvenientes. Primeiramente, estaríamos diante de uma terapia sui generis, na medida em que é aplicada por um agente destituído de conhecimentos técnicos para lidar com o problema da loucura. Além disso, seria no ambiente manicomial (HCTP) que tal medida, sob um rótulo de sanção curativa, seria efetivamente aplicada, espaço juridicamente criado para dar conta de fenômenos extrajurídicos, desde que os magistrados "começaram a julgar coisa diferente além dos crimes: a alma dos criminosos" (FOUCAULT, 1987, p. 20).

Todavia, essa terapia seria efetivada em um estabelecimento que compõe o sistema penitenciário brasileiro, conforme estabelece a Lei de Execuções Penais, embora se possa forçar uma aproximação com os estabelecimentos hospitalares, a partir de características comuns. Engendrou-se uma situação curiosa no direito brasileiro: o Estado busca a recuperação da saúde daquele portador de transtorno mental em estabelecimentos eminentemente punitivos, em instituições totais, isto é, instituições que, segundo Goffman (1961), são caracterizadas por um fechamento na forma de barreira à relação social com o mundo exterior, bem como pela proibição de saída, materializadas, muitas vezes, no esquema físico. É oportuno ressaltar que a própria ciência está repensando a terapêutica baseada na segregação do paciente e seu encerramento em uma unidade manicomial. Aliás, conforme demonstrado, o questionamento desse modelo constitui o lastro sobre o qual se assenta o movimento reformista em saúde mental no Brasil e no mundo. De outro lado, o movimento antimanicomial lança uma severa crítica aos estabelecimentos que, sob a justificativa de promoverem o restabelecimento da saúde mental dos indivíduos, forjam, na realidade, o estabelecimento dos limites entre a loucura que fica dentro dos muros da instituição e aquela que se movimento no espaço exterior, no seio da própria sociedade.

A crítica fundamental que se propõe situa-se na realidade do hospital de custódia e tratamento psiquiátrico organizado como uma instituição violenta. É preciso não perder de vista que o manicômio judiciário, antes de tudo, é caracterizado por essa violência. A própria forma de ingresso do inimputável, sob coação do Estado-juiz, é indício desse modus operandi.

Sob essa ótica, podemos afirmar que "o novo psiquiatra social, o psicoterapeuta, o assistente social, o psicólogo de indústria, o sociólogo de empresa (para citar só alguns), são os novos administradores da violência (BASAGLIA, 1985, p. 102). A tarefa primordial desse corpo técnico será fundamentalmente adaptar os indivíduos a aceitarem a condição de objetos de violência, mediante uma atuação terapêutico-orientadora sobre o sujeito. Conforme assevera Basaglia (1985), o perfeccionismo técnico-especializado forja uma aceitação por parte do rejeitado, de sua condição de inferioridade com a mesma eficiência com que impunha anteriormente o conceito de diversidade biológica. E é exatamente assim que o manicômio destrói o sujeito. O problema deixa de ser a doença em si mesma e passa a situar-se na relação que se estabelece com ela. A sociedade, representada pela figura do psiquiatra e sua ciência, defendeu-se do doente mental e do problema de sua existência em nosso meio.

Então, preliminarmente há que se fazer a constatação de que a psiquiatria clássica, que vigora por trás dos muros do manicômio, minguou enquanto proposta de resposta à demanda da loucura. Além de não resolver o problema do doente mental, foi a responsável direta pela sua expulsão do contexto social, desumanizando-o, por assim dizer.

Outro ponto que merece ser destacado se circunscreve ao problema da alta hospitalar. Se a internação compulsória constitui-se enquanto ação terapêutica, em algum momento o paciente a ela submetido haverá de ser considerado apto a deixar a o estabelecimento e, conseqüentemente, o próprio tratamento. A alta hospitalar estaria vinculada não à recuperação do indivíduo, mas à cessação de sua periculosidade.

A aplicação das medidas de segurança pressupõe além do cometimento de figura típica e antijurídica pelo agente, que este seja considerado inimputável. Conforme anteriormente exposto, a inimputabilidade é aferida mediante exame médico que avalia as funções mentais do periciando, produzindo-se, ao final, um laudo acerca da periculosidade do sujeito.

Bravo (2007), em pesquisa conduzida na ala de tratamento psiquiátrico do presídio da Colméia, em Brasília/DF, apontou a subjetividade dos parâmetros de avaliação da chamada periculosidade do agente inimputável, a partir da análise dos laudos psiquiátricos, apontando para as peculiaridades da associação dos discursos psiquiátrico e jurídico, que conduzem a práticas institucionais de eficácia duvidosa sobre a subjetividade do indivíduo. Encontra, nos diversos laudos psiquiátricos estudados, um sem número de diagnósticos, alguns incompatíveis entre si, resultando, quase sempre, no diagnóstico de esquizofrenia, que aparece como um lugar comum, para onde confluem todas as forma de desvio da norma.

Curiosamente, os laudos, em muitos casos, apontam para a não cessação da periculosidade, ou quando apontam um diagnóstico diverso, sempre se faz uma ressalva, apontando para a necessidade de acompanhamento clínico, ou de amparo familiar. Em alguns casos, há a veemência da negativa quanto à cessação da periculosidade, casos em que há a expressa recomendação da manutenção da internação.

De maneira geral, há a prevalência do discurso psiquiátrico sobre o jurídico. Nada mais natural, desde que a ordem jurídica cede espaço ao saber médico, que passa a orientar e conduzir a ação do Estado-Juiz, ou pelo menos exercer considerável influência sobre essa ação, o que de qualquer modo é temerário, uma vez que, conforme a pesquisa demonstrou, "o discurso da psiquiatria não mantém uma lógica clínica baseada no diagnóstico e no prognóstico clínico, senão que assume um lugar jurídico de julgamento e sanção" (BRAVO, 2007, p. 39).

O fato é que se está diante de um conceito extremamente maleável, passível de manipulação pelo instrumental médico, que, através de um operador discursivo baseado no conceito de periculosidade, torna possível, manter o indivíduo encarcerado perpetuamente, em expresso confronto com a garantia insculpida na Constituição da República. Dessa forma, depreende-se que o propósito da medicina psiquiátrica, nesse ponto, não é terapêutico, mas jurídico, permitindo, conforme assevera Bravo (2007), sancionar a loucura quando está associada à ilicitude penal.

Basaglia (1985) sugere que a doença mental assume significados diversos, conforme o nível social do doente, determinando conseqüências diferentes, em termos de nível de destruição e institucionalização do paciente, que não podem ser consideradas enquanto a evolução direta da doença, mas da forma como o psiquiatra (e a sociedade que ele representa) se relaciona com o doente. Na análise da questão da periculosidade, a pesquisa de Bravo (2007) aponta algo no mesmo sentido.

Com isso, se quer dizer que os pacientes já vêm do meio social estigmatizados, desde que fazem parte de um grupo sócio-economicamente menos favorecido. O diagnóstico do portador de transtorno mental, sob esta perspectiva, assume a função de um rótulo que informa uma passividade dada por irreversível. O diagnóstico do louco infrator será, pois, duplamente estigmatizante. Produz-se uma dupla identidade que é introjetada pelo sujeito, que passa a se reconhecer como louco e como criminoso, sendo o seu mal-estar psíquico manifestação de sua periculosidade. Está aberta a trilha que leva diretamente à cronificação da perturbação mental e ao processo de institucionalização do doente. Não lhe é oportunizada a chance de elaborar o fato criminoso, que, do ponto de vista clínico, certamente contribuiria para sua recuperação.

Por fim, podemos afirmar que os inimputáveis submetidos à medida de segurança de internação compulsória em manicômios judiciários representam os agentes mais punidos do sistema penal brasileiro, porquanto são punidos sob duplo aspecto: pela condição de portadores de transtorno mental e pela condição de autores de ilícito penal. Assim, são sancionados por duas ordens de discursos: o saber médico, a partir de seu diagnóstico; e o jurídico, pela aplicação de uma sanção, ainda que sob o rótulo de instrumental terapêutico, podendo protrair-se indefinidamente no tempo.

De outro lado, observa-se que os dispositivos da lei nº 10.216/2001 parecem pôr em xeque o fundamento da internação compulsória, enquanto recurso terapêutico, pois a lei não faz qualquer ressalva relativamente ao cabimento e aplicabilidade dos seus dispositivos, que, portanto, são plenamente prescritos aos inimputáveis na situação em comento.

Primeiramente, o dispositivo legal reafirma, em seu primeiro artigo, a proteção irrestrita das pessoas acometidas de perturbações na saúde mental, em plena consonância com os princípios e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Em seguida, garante aos portadores de transtorno mental o acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, conforme demande as suas problemáticas pessoais.

Embora represente um avanço no movimento reformista em saúde mental e do movimento anti-manicomial, a lei prevê situações de internamento do paciente psiquiátrico, admitindo, como exceção à regra, o modelo asilar, prevendo o condicionamento da internação à apresentação de laudo médico circunstanciado. Malgrado esse fato, a lei exige o esgotamento dos recursos extra-hospitalares, isto é, o tratamento do paciente psiquiátrico deverá ocorrer, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental, evidenciando uma preocupação com sua reinserção social. Não por outro motivo, a lei espelha a preocupação em garantir ao paciente institucionalizado um tratamento diferenciado e contínuo, que busque sua reabilitação psicossocial, conforme preceitua o artigo 5º do dispositivo legal.

É importante frisar que a lei proíbe a internação dos pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, repousando nessa previsão o maior esforço de superação do modelo tradicional de atendimento em saúde mental, inviabilizando a efetivação da internação compulsória, ainda que o crime cometido seja sancionado com reclusão. Nota-se, inclusive, que não se deve mais considerar a possibilidade de escolha da sanção terapêutica a partir da espécie de pena aplicada ao caso concreto. Essa opção deixa de ser relevante, exatamente porque a escolha da forma de tratamento deve levar em consideração o indivíduo em sofrimento mental e suas necessidades específicas. Dessa forma, pode-se afirmar que a lei de reforma psiquiátrica não legitima a ação do Poder Judiciário quanto à aplicação da medida de segurança consistente na internação compulsória. Isto porque, conforme o exposto, a terapêutica fundamentada na segregação do indivíduo, na exclusão do seu meio social e familiar, no confinamento em um estabelecimento caracterizado pela violência e objetivização do sujeito, configura-se como aquela mais adequada à produção do efeito iatrogênico da perturbação mental, condenando o inimputável à pior das penas: a morte social, que, no mais das vezes precede à morte física.

A discussão acerca da internação compulsória como sanção penal implica fundamentalmente proceder à indagação a respeito de qual deve ser o lugar da loucura no direito, isto é, sob qual discurso o direito apreende o fenômeno da loucura e do louco criminoso, ou mais propriamente se é capaz de fazê-lo.

A relação entre os saberes médico e jurídico, ao longo de mais de dois séculos, estabeleceu uma forma peculiar de responder ao problema da ilicitude cometida pelo inimputável. Da mesma forma, a vinculação entre esses saberes tem sido objeto de questionamentos e reflexões, que nos faz repesar acerca da função social do direito de punir, na resolução dessa problemática específica.

Todo esse questionamento é razoável na medida em que se aborda uma temática de difícil penetração, em razão da multiplicidade de considerações e questionamentos envolvendo o conceito de comportamento anormal e doença mental, bem como acerca da diferenciação entre aquilo que constitui pena e o que constitui terapia. Se de um lado é necessário repensar os institutos jurídicos relativos ao tema, de outro é necessário reconsiderar a legitimidade do paradigma psiquiátrico tradicional, pois é necessário transcender a visão estreita que confina a loucura aos limites da doença mental, tornando-a uma questão eminentemente médica. Assim agindo, corre-se o risco de condenar o louco a não mais possuir voz, isto é, perder sua condição de cidadão em razão do rótulo de incapaz de entender plenamente uma realidade que está codificada pela visão da sociedade dita normal, uma realidade na qual se vê inconvenientemente inserido e cujos parâmetros podem se mostrar fora ou além da sua compreensão.

Em meio aos mais diversos questionamentos, o hospital psiquiátrico surge como sinônimo de instituição legitimadora da violência, que desconsidera o indivíduo enquanto ser histórico. De maneira análoga, os hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos legitimam a violência estatal, sob o pálio dos subsídios fornecidos pela ciência médica, na consideração daquele determinante que será primordial para a segregação do doente mental, que é o fluido conceito de periculosidade.

O certo é que não há condições objetivas de aferição desse grau de anti-sociabilidade do indivíduo, de modo que é possível concluir que o direito, ancorado no discurso psiquiátrico, avaliza a noção de que o louco é sempre um perigo em potencial. Esse posicionamento denota a conservação do caráter estigmatizante da loucura e do louco, cultivando a crença de que o sofrimento mental representa um risco para a sociedade. Ademais, a internação compulsória do inimputável em instituições asilares termina por exigir do Direito a resolução de um grande desafio: a busca da desinstitucionalização da loucura.

A reforma psiquiátrica, que se expressou nos últimos tempos através da lei nº 10.216/2001, perpetrou avanços importantes, significando a busca de novas propostas terapêuticas, baseadas na idéia central de reinserção social do doente, bem como na busca da cidadania do louco. Porém, muitos desafios se colocam no meio do caminho rumo ao processo de desinstitucionalização. A aplicação de medidas de segurança, e especificamente da internação compulsória, representa apenas um desses desafios. E, de qualquer modo, expressa a predominância de uma ideologia que submete nossa compreensão da loucura enquanto expressão singular da subjetividade humana. É preciso perceber que há, por assim dizer, "desejos de manicômio", na feliz expressão de Alverga e Dimenstein (2006), ou seja, um desejo de dominação, subjugação e, enfim, de controle. Esses desejos estão presentes no âmbito social, imiscuindo-se nas mais diversas instituições, sendo reproduzidos nas mais diversas atividades, com relevo para àquelas que compõem o sistema de jurídico- penal.

Nessa perspectiva, a reforma psiquiátrica precisa ganhar amplidão, não se limitando a reintroduzir o louco no âmbito de sua cidadania perdida, a partir de uma atuação que busque a concessão de direitos, mas estimular uma renovação no próprio processo de socialização. Ora, as medidas de segurança, enquanto sanções aplicadas pelo Estado e em seu interesse, devem se pautar pelos mesmos postulados. Assim, distintamente de uma reinserção social que implica, quase sempre, a culpabilização do indivíduo colocado à margem, bem como uma avaliação da falta de adequação social, observa-se que a atuação estatal deve se pautar pela busca da emancipação do sujeito, entendida no aspecto político, pessoal, social e cultural, que lhe permita ser considerado numa perspectiva mais complexa que a generalizante e igualitarista, estimulando a convivência com a diferença.

Dúvidas não há de que a aplicação da medida de segurança consistente na internação compulsória constitui um retrocesso, porquanto caminha na contramão do processo histórico.

De outra parte, ao se proceder à internação compulsória do indivíduo, efetiva-se sua marginalização, operando de forma excepcionalmente violenta, inclusive mais que na segregação dos condenados às penas, uma vez que estes, em que pesem as conseqüências da falência do sistema penitenciário brasileiro, possuem a capacidade de retorno ao convívio social, embora sob a pecha da criminalidade ou do crime cometido. Os loucos autores de ilícitos penais, no entanto, supostamente ficando à margem da atuação repressiva do Estado, perdem a possibilidade de retorno ao mundo social, pois que serão sempre percebidos como inadaptados ao convívio em sociedade. Assim, vê-se que não existe benefício nesse estado de não-responsabilidade, pois que a conseqüência evidente desse processo é, quase sempre, o ostracismo em que se precipita o agente.

Isso se dá porque a responsabilização do indivíduo abre caminho para o procedimento legalmente previsto, qual seja, julgamento perante órgãos competentes, que implica necessariamente um debate público. Comporta-se a dialética de teses do Ministério Público, que fala em nome da sociedade, e da defesa do acusado que inclusive apresenta, ele mesmo, sua interpretação pessoal dos fatos. Todo esse procedimento é informado pelo princípio da publicidade e é concluído pela deliberação do julgador que se pronuncia publicamente, absolvendo ou condenando o réu. No último caso, a aplicação da pena declara o reconhecimento do crime vinculado ao criminoso que recebe uma reprimenda definida com a qual se supõe que ele paga sua dívida à sociedade. A responsabilização, assim, proporciona uma expurgação do pecado, ou seja, a quitação do débito contraído junto à sociedade. Não obstante a dura realidade dos apenados no Brasil, não se pode deixar de admitir que constitua, ainda assim, uma situação menos complexa que aquela vivenciada pelo inimputável submetido à internação compulsória. No mínimo, há a garantia de que a pena possui limitação temporalmente estabelecida, em que pesem as degenerescências do sistema prisional da atualidade. A medida de segurança, quando confina o inimputável em um manicômio judiciário, não estabelece tal garantia. Pelo contrário, se é aplicada a internação compulsória, o criminoso desaparece da vida social. Opera-se a conversão do doente em um morto-vivo, um desaparecido, por assim dizer.

A partir de toda essa discussão, é possível afirmar a necessidade de adequação do sistema jurídico nacional para responder convenientemente à problemática em questão. Essa adequação passa pela construção de um modelo terapêutico que considere a subjetividade humana, num esforço para promover a desinstitucionalização não apenas do âmbito asilar, mas da que transcende os muros do hospital, desconstruindo relações sociais fundamentadas no paradigma racionalista problema-solução ou, especificamente doença-cura.

Finalmente, é necessário que haja a comunicação mais efetiva entre diversas ciências, escapando ao vínculo histórico direito-psiquiatria, na abordagem da responsabilização do louco autor de ilícito penal, porquanto até os dias atuais, essa vinculação resultou num sistema incoerente, suscitando a atuação estatal burocrática e acrítica, sem demonstrar maior comprometimento com a condição humana e, sobretudo, com a singularidade do doente.

É preciso, pois, construir um modelo de responsabilização do louco que passe necessariamente pelos novos ditames paradigmáticos estabelecidos pela reforma psiquiátrica, atentando-se sempre para o princípio da interdisciplinaridade, na busca pela edificação de um Estado efetivamente justo.


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Sobre o autor
Waldeci Gomes Confessor Júnior

Psicólogo; Bacharel em Direito; Servidor Público do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONFESSOR JÚNIOR, Waldeci Gomes. A internação compulsória no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2529, 4 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14967. Acesso em: 22 dez. 2024.

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