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Efetividade e pensamento crítico no Direito

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Agenda 01/11/2000 às 00:00

6. Justiça e Sociedade

Antes de incursionarmos pela problematização do tema central, temos que basear-nos ainda em algumas perspectivas, tais como a justiça, a sociedade e os direitos da personalidade, para, então, insistirmos na persecução da eficácia do ordenamento.

Em primeira análise, a justiça figura como elemento primordial da finalidade do direito. Em apertada síntese, a visão mais funcional que pode ser dada ao ordenamento é a de que o direito tem como fim a pacificação social justa. Nesta órbita, repousa a teoria de John Rawls que identifica como objeto primário da justiça a estrutura societal e a maneira como as instituições sociais distribuem direitos e deveres, na ordem em que a justiça consiste em qualquer disposição da vida humana, seja ela por meio das atitudes, das imputações, dos sistemas legais etc.(11) A justiça é, por excelência, o sentimento mais afeto ao direito, traço marcante da própria concepção lingüística do vocábulo direito. É, também, o reconhecimento das prerrogativas da pessoa humana, impulso fundamental para a evolução do conceito dos direitos da personalidade, dos direitos subjetivos. Destarte, a justiça possui um conceito análogo(12), denotando-se em outras diretivas do ordenamento jurídico, várias nuances que estão nitidamente interligadas ao conceito original de justiça ou lhe são propriamente integrantes. Assim, a segurança jurídica, a ordem social e a própria respeitabilidade do direito, em sentido lato, correspondem à gama de elementos que compõe ou, pelo menos, refletem a concepção de justiça. A justiça como eqüidade tem como fundamento básico, primeiramente, a observância de dois princípios: o da liberdade e o da igualdade. No segundo plano, tais princípios são superiores a todos os demais aplicáveis aos cidadãos, como pessoas livres e iguais. Entretanto, o ponto nodal é saber o que significa conceber os cidadãos como pessoas livres e iguais. Em síntese, a realização dos valores de liberdade e igualdade na estrutura básica da sociedade incide sempre que os cidadãos são considerados detentores das capacidades de personalidade que os habilitam a participar da sociedade, vista como um sistema de cooperação justa para o benefício mútuo.

Retornando à posição originária formulada por Rawls, são dois os princípios fundamentais: o primeiro é que "cada pessoa tem de ter um igual direito ao mais extensivo sistema de básicas liberdades, compatíveis com um similar sistema de liberdade para todos"; o segundo princípio dispõe que "as desigualdades sociais e econômicas têm de ser ajustadas de maneira que sejam tanto: a) para o maior benefício dos menos privilegiados, consistente com o princípio justo de poupança; como b) ligadas a cargos e posições abertos a todos, sob condições de igualdade de oportunidades".(13) Diante disso, os princípios da justiça idealizados por Rawls são as liberdades públicas ou direitos fundamentais, que a melhor doutrina jurídica sobrepõe a todo e qualquer direito ou dever, até mesmo de natureza constitucional, já que são alicerce do próprio Estado de Direito. E essas liberdades são públicas porque, não obstante haver uma pluralidade de conceitos de justiça por parte dos indivíduos, estes acatam o sentido público que emana a justiça sob a epígrafe social, compactuando-se igualdades e aquiescendo-se desigualdades. Essa tônica de acatar a realidade e concordar com o padrão de justiça calcado na essência de cada situação da vida em sociedade.

Por fim, o tópico abordado reflete um importante caráter da eficácia do direito, salientando-se que o fim primário do espectro jurídico é a justiça na composição social. E o senso de justiça está intimamente relacionado com os elementos circundantes da realização do direito, quer seja como item moral ou comportamental, quer seja como produto da própria crença humana acerca da prestabilidade do direito.


7. Direitos Subjetivos: Perspectiva Essencial

Como proposição constante da epígrafe anterior, temos que a justiça constitui também o reconhecimento das individualidades, das prerrogativas da pessoa humana. Tais prerrogativas denotam a titularidade das pessoas em relação aos direitos imanentes à própria personalidade humana. Em síntese, as aspirações humanas ganharam um significativo impulso emancipatório, na medida em que o direito subjetivo alcançou o status supraindividual, onde os sujeitos não são apenas as pessoas físicas e jurídicas dotadas de interesses e vontades, mas sim algo mais, transmudado em todo e qualquer valor que se demonstre relevante para a humanidade. Assim, teríamos um imensa gama de entes a serem contemplados com o respeito dos indivíduos, baseado num interesse de sobrevivência plural dos componentes da vida, não só baseando-os na voluntariedade ou, contrariamente, na proteção dos interesses humanos, conjugando-os em paridade, na intensa persecução da adequação dos elementos diretivos, de forma a empreender-se a justa consecução das necessidades humanas. Enfim, o direito volta-se à proteção dos direitos da pessoa humana e de todo o aparato circundante da própria existência dela, tal qual a natureza, o patrimônio histórico, as formas culturais, as experimentações da vida, os interesses pluralizados etc, fruto de uma revolução interdisciplinar surgida tardiamente, mas vitalmente oxigenadora. Forçosamente, o reconhecimento de que existem interesses difusos a serem tutelados correspondeu a um grande passo para o direito em sua acepção de garantia das liberdades.

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Neste mesmo escopo, notável a evolução da proteção dos direitos humanos, cuja gênese encontra-se no próprio conceito de liberdade, bem como no aperfeiçoamento da idéia de cidadania, agraciada com o advento de prognósticos legais que visam reforçar a noção de dever e direito inerente aos indivíduos. Tais avanços são primordiais para a sofisticada busca da efetividade jurídica, com vista à garantia de cumprimento da ordem justa e equilibrada, onde o respeito à dignidade humana centraliza grandes preocupações antes inobservadas. Tem-se aí que os direitos subjetivos refletem-se na consciência humana com imensa propriedade, interagindo diretamente com as regras do jogo e, por conseguinte, importando nas atuações da coletividade, de modo que a eficácia do direito no mundo sensível demonstra-se como fator preponderante para o sucesso das relações humanas.

Por outro aspecto, de grande relevância a ponderação acerca da existência de um direito não estatal, produzido por diversos subsistemas sociais de maneira autônoma, sem a interferência do Estado, tão bem delineado na análise de Boaventura de Sousa Santos que, no capítulo 3, da sua obra fundamental (Toward a new common sense; law,science and politics in the paradigmatic transition, New York-London, Routledge, 1995), agora ampliada em quatro volumes, adverte sobre a existência do que ele chama de direito infra-estatal, através de uma pesquisa realizada na favela do Jacarezinho (RJ). Esse direito emergente consagra também a existência de direitos subjetivos secundários, não chancelados pelo Estado, mas existentes no mundo sensível.


8. O Direito Idiossincrático: A Expectativa e a Experiência Geradoras do Direito

A realizabilidade é a essência do direito e este opera-se com sua expectativa, no momento em surge uma identificação entre as aspirações e a interferência jurídica, na qual uma interseção entre a provocação e a dicção do direito é possível pelos elementos que se pretende coligir; mas também opera-se pela experiência de ponderações pretéritas, em qualquer sistema, mas, fundamentalmente, no direito anglo-saxão. Desse modo, quando alguém deseja exteriorizar uma aspiração para verificar se os padrões normativos irão acolher ou negar sua pretensão, baseia esse exercício na plausibilidade de suas intenções. Mas pode também postular com base no que já foi decidido anteriormente. Ambas constituem expectativas e podem, obviamente, estar interligadas. Ocorre que, para que a experiência possa ser invocada, imprescindível constatar se a chancela jurídica existente coaduna-se com a conjectura proposta. Do contrário, a primeira motivação precisará suprir o questionamento sobre a propriedade da efetiva provocação por si só.

Nessa perspectiva, o direito, assim como o ser humano, revela suas idiossincrasias. Não é racional, como quis agraciar a dogmática, com o pressuposto ideológico da racionalidade, mas sim intuitivo, emocional, prático. Assente na crítica jurídica, o conceito de que o significado das normas é autônomo também já foi desmistificado: ele vem de vem de fora e é atribuído pelo intérprete, conforme seus interesses, ou os interesses do cliente, sendo o significado, portanto, heterônomo. Da mesma forma, o significado das normas não é unívoco mas equívoco e plurívoco, pois comporta vários significados, todos eles verdadeiros, muito embora contraditórios entre si. E a função do intérprete não é descobrir um significado, mas criar o sentido que mais convém a seu interesse; Não existe o referencial semântico alardeado. O referencial da norma é pragmático, ou seja, depende dos resultados sociais de sua aplicação e da conformidade dos seus efeitos pela sociedade.

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Baseado na distinção entre uma Ética do resultado e uma Ética da intenção, originalmente formulada por Nicolai Hartmann, Hans Welzel expõe que as proposições jurídicas são obrigatórias por excelência, por ser-lhes inerentes os valores, concebidos como entidades objetivas que atuam como paradigmas da experiência jurídica(14). No mesmo sentido, as aspirações impendem um senso de ontologismo axiológico, posto que as proposições jurídicas necessitam de uma provocação fundada na experiência conhecida, além do ânimo da descoberta.

Se um cidadão depara com uma situação suscetível da interferência do ordenamento, com base na experiência jurídica e em suas próprias noções de justiça e de vida em sociedade, contemplará um prognóstico de como esse impasse chegará a termo. Ocorre que a correspondência entre a realidade sensível e o pronunciamento jurisdicional pode se revelar iníqua, eis que o direito não decorre da simples subsunção legal das circunstâncias fáticas, como vimos, mas sim de uma complexa estrutura ideológica historicamente sistematizada.

A expectativa criada em relação a um determinado desdobramento jurídico geralmente se direciona a constituir uma preocupação estatística (comum à Sociologia), ou implica em uma preocupação qualitativa em torno do Poder Judiciário (relacionada com o Direito Processual). Em verdade, essa expectativa não dispõe de uma disciplina específica que dê provimento à instigação cognitiva. Suponha-se, agora, que um advogado militante, ao deparar-se com um julgamento convencional cuja matéria ele já teve a oportunidade de enfrentar inúmeras vezes, anteriormente, arrisca um palpite de quanto tempo irá levar para que a demanda seja apreciada definitivamente. Ao sopesar os elementos de veracidade do caso e o trâmite legal pelo qual a ação vai desenrolar-se, o advogado percebe que o caso necessitará de muitos anos para chegar a uma posição final. Nessas condições, como o causídico poderá transmitir ao seu cliente a questão da prestabilidade do Judiciário? Poderia apoiar-se na Sociologia Jurídica e sentenciar que as formas de poder influem no paradigma da Justiça in concreto, e a demora não passa de um convencionalismo do sistema jurídico vigente, verificada normalmente como um dado do status quo; De outra leva, poderia basear-se na disciplina processual, questionando seus princípios e suas normas, indigitando a estrutura recursal, desdenhando a organização judiciária, inflingindo, finalmente, ao sistema processual o ônus pela imprestabilidade proporcionada pela demora?

A resposta é que os resultados do direito situam-se num campo mais vasto, onde as verificações acerca da "verdade relativa" ou do "equilíbrio refletido" colidem segundo após segundo. Como bem afirma Benjamin Cardozo a esse respeito, as pessoas vivem freqüentemente as regras do direito sem a compulsoriedade de recorrem aos tribunais para delimitá-las em seu cotidiano(15).

Nesse exemplo cotidiano, outras matérias ou disciplinas poderiam interferir, de modo a ser formulada uma justificativa da falta de celeridade do pronunciamento judicante. Mas não coaduna-se a esse mister o surgimento de um ramo de investigação próprio para definir a realizabilidade do direito, até mesmo porque tal qualidade está incrustada na própria essência do ordenamento. A tônica, entrementes, é a interdisciplinaridade ou pluridisciplinaridade, como preferem alguns pensadores, posto que o conhecimento científico moderno é resultante de um entrecruzamento de todas as áreas de investigação cognoscíveis. Superando-se a questão da clausura epistemológica do direito, o flerte com outros ramos do conhecimento possibilitarão justificar as falhas do ordenamento, bem como apontar para o terreno firme do aperfeiçoamento constante e inafastável. Fundamental, à guisa de exemplo, a aplicação do funcionalismo de Niklas Luhman, cuja ênfase primeira é a Sociologia Jurídica.

Para Luhman, "o comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de graduações que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a partir de expectativas sobre tais expectativas."(16) E arremata o preclaro autor, com indelével lucidez, que "o direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas. O alívio consiste na disponibilidade de caminhos congruentemente generalizados para as expectativas, significando uma eficiente indiferença inofensiva contra outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco da expectativa contrafática".(17)

Esse tirocínio é bastante para concluirmos que, corolário de uma expectativa anterior, o direito apoia-se na experiência para dimensionar uma nova expectativa, de forma congruente, até chegar a um resultado – que não corresponde, necessariamente, ao seu fim. Nesse contexto, insere-se a tese fundamental da teoria crítica do direito: o direito não é o passado que condiciona o presente, mas o presente que constrói o futuro(18).

Sobre o autor
Gustavo Rabay Guerra

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor e pesquisador em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UNB), professor do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Gustavo Rabay. Efetividade e pensamento crítico no Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15. Acesso em: 22 mai. 2024.

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