IV) SISTEMAS MAJORITÁRIOS UNI OU PLURINOMINAIS E VOTO DISTRITAL
Convém se estabeleça que sistema distrital e voto distrital são coisas distintas. Na definição de SÉRVULO DA CUNHA "o voto é distrital quando o eleitor só pode votar em candidatos do seu distrito. Isto independe do modo como se fará a distribuição dos cargos de deputados: se pelo sistema proporcional, se pelo sistema majoritário. Quando o voto é distrital e a atribuição de cadeiras pelo modo majoritário, o sistema é distrital" (36).
Na prática pode-se dizer que no Brasil, por exemplo, a eleição para deputado federal se faz pelo sistema proporcional (porque as cadeiras são distribuídas proporcionalmente entre os partidos), através do voto distrital (porque para composição da Câmara dos Deputados o eleitor só pode votar em candidatos do seu estado, que funciona, no caso, como distrito eleitoral) (37) .
O sistema seria ainda distrital se um estado que eleja sessenta deputados fosse dividido em sessenta distritos uninominais, ou trinta ou vinte plurinominais, elegendo respectivamente dois ou três deputados, desde que a distribuição de cadeiras fosse feita aos mais votados em cada distrito ou circunscrição eleitoral.
IV. I) Proposta de Modificação do sistema eleitoral em Portugal (Resolução do Conselho de Ministros nº 195/97):
Em Portugal a Resolução do Conselho de Ministros nº 195/97 propunha alterações ao sistema eleitoral como parte da reforma da Lei Eleitoral, dividindo o país em três níveis de círculos eleitorais - o nacional, com sede em Lisboa, os parciais (art. 2º, nº 1) coincidindo, no continente, com as áreas dos distritos administrativos (art. 12, nº 2) e os uninominais em que se dividem estes últimos (art. 13). Grosso modo, duas eram as alterações substanciais no sistema eleitoral vigente cuja introdução se pretendia através da referida proposta de lei, a saber: a reestruturação do mapa dos círculos eleitorais, fundindo alguns e fragmentando outros, e o abandono do sistema de lista fechada, pela atribuição de mandato ao candidato que tivesse obtido maior votação no círculo uninominal: introduzia, portanto, uma componente maioritária, o que a aproximava do sistema alemão (38).
Em que pese a alteração dos sistemas eleitoral e partidário em Portugal já vir sendo preconizada desde a eleição do primeiro Presidente da República oriundo do sistema partidário em 86 e a obtenção da primeira maioria absoluta por um só partido em 87, a proposta foi rejeitada no Parlamento por voto do partido de oposição ao atual governo, o PSD, e mais o CDS/PP e o PCP. Pode ser que a tendência apontada por RAE de compressão da proporcionalidade pela diminuição dos círculos eleitorais, referida no caso português por ANTÔNIO VITORINO (39), somada à baixa tendência à migração do eleitorado português (40), tenha de alguma forma determinado o receio de se fortalecer uma maioria parlamentar socialista atualmente no poder em Portugal, como, aliás, na maioria dos países da União Européia.
IV. III) Críticas ao sistema distrital:
Usaremos a justifcativa constante da referida proposta de Lei do Conselho de Ministros português para expor as demais críticas que, na doutrina, se fazem ao sistema distrital. Dela constava expressamente ter-se pretendido, com a introdução da reforma, "uma maior personalização, aproximação e responsabilização política do eleito perante o eleitor". Fica claro que o legislador português cerrou posição ao lado dos defensores do distritalismo, no que diz respeito à maior interação entre representante e representados.
Vale notar que a doutrina brasileira já se ocupou especialmente do tema tempos atrás, e, mais recentemente, quando da implantação do sistema distrital no país através da Emenda Constitucional nº 22/82, que não chegou a entrar em vigor devido à morte do Presidente Tancredo Neves e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Mas os debates travados na época culminaram por colocar em evidência os argumentos mais comumente utilizados a favor e contra o sistema:
a) Comentando as pretensas vantagens do distritalismo, ALVES DE SOUZA diz que o "conhecimento mais íntimo" do candidato pelo eleitor (o que pareceu se pretender na Mensagem com peronalização e aproximação) não gera, necessariamente, maior autenticidade de voto. A seu ver, a autenticidade deve decorrer, não só do conhecimento pessoal, mas também da capacidade política e dos programas apresentados pelo candidato. Assinala, mesmo, que a aproximação pelo conhecimento pode trazer uma deturpação, porque leva ao voto no conhecido, no compadre, mais do que no candidato (41) (42).
b) esta aproximação pode se dar ainda do representante eleito ao distrito que o elegeu, e aí se diz do perigo que haveria nesse sistema da diminuição do nível de capacidade dos candidatos, despreparados para enfrentar questões de âmbito nacional (43). Comentando este aspecto, NICOLAU indaga sobre o porquê de a representação territorial dever produzir resultados mais efetivos, numa época em que os eleitores estabelecem com seus representantes uma série de relações de identidade - feminismo, sindicalismo, raça etc (44). Não por outro motivo, em Portugal o art. 11 da Lei nº 14/79 (Lei Eleitoral para a Assembléia da República) estabelece que "os deputados da Assembléia da República representam todo o país, e não o círculo por que são eleitos."
c) quanto à responsabilização política, como regra geral esta só pode existir na medida em que o eleitor pode deixar de eleger no próximo pleito um candidato cuja atuação parlamentar não o tenha agradado - a não ser que haja o instituto do recall, o que não é o caso em Portugal, e, de resto, na maioria dos países ocidentais (45).
d) a adoção dos círculos uninominais é passível de suscitar questões delicadas no que diz respeito à sua demarcação. Na prática, dificuldades deverão surgir ao se ter de desdobrar regiões administrativas, fundindo-as ou dividindo-as (46). Não se pretende, aqui, fazer qualquer menção à prática referida na doutrina como gerrymandering - ao contrário, a demarcação de distritos eleitorais tem geralmente regras rígidas e transparentes - mas do sentimento de afinidade e unidade territorial que mesmo num estado unitário (que não tem entes federados), e territorialmente pequeno – caso de Portugal - visivelmente existe entre os habitantes das diversas regiões do país (47) (48).
e) outra objeção que se faz ao sistema distrital diz respeito à desigualdade que o mesmo introduz com relação à representação política, em si, dos cidadãos. A rigor, o princípio da igualdade não se concretiza a nível eleitoral no sistema majoritário, em que pouco menos da metade do eleitorado pode vir a ser representada por um deputado eleito por pouco mais. A questão aí não se restringe apenas ao fato de uma parcela do eleitorado ficar sem representação, mas sim, a de o próprio sistema gerar uma desigualdade, oriunda da falta de representação. Por exemplo, no caso que ora se comenta, a Resolução do Conselho de Ministros da República Portuguesa deixava claro que os votos desperdiçados nos distritos eram passíveis de serem aproveitados no círculo nacional, desde que, pela fórmula eleitoral adotada (método d´ Hondt), fosse atribuído ao partido ao menos um dos 226 assentos.
IV.IV) Desproporcionalidade entre votos e assentos:
Para se ter uma idéia da desigualdade entre a votação e a atribuição de assentos em alguns sistemas eleitorais de conformação majoritária, vejam-se os dados abaixo, referentes a países que, nos períodos indicados, adotavam sistemas deste tipo:
- África do Sul: (os dois maiores partidos)
Partidos |
Votos |
Assentos |
1961 |
||
Partido Unido |
36,2% |
31,4% |
Partido Nacional |
46,54% |
67,4% |
1966 |
||
Partido Unido |
37,1% |
23,5% |
Partido Nacional |
58,6% |
75,9% |
1970 |
||
Partido Unido |
37,5% |
28,5% |
Partido Nacional |
54,9% |
70,9% |
1974 |
||
Partido Unido |
31,4% |
25,7% |
Partido Nacional |
55,1% |
70,2% |
2) Estados Unidos da América – Presidenciais (Colégio Eleitoral): (os dois maiores partidos)
Partidos |
Votos |
Assentos |
1960 |
||
Democratas |
49,7% |
56,4% |
Republicanos |
49,5% |
40,8% |
1964 |
||
Democratas |
61,1% |
90,3% |
Republicanos |
38,5% |
9,7% |
1968 |
||
Democratas |
42,7% |
35,5% |
Republicanos |
43,4% |
55,9% |
1972 |
||
Democratas |
37,5% |
3,2% |
Republicanos |
60,7% |
96,7% |
1976 |
||
Democratas |
50,4% |
55,2% |
Republicanos |
48,3% |
44,8% |
1980 |
||
Democratas |
41,0% |
9,0% |
Republicanos |
50,7% |
91,0% |
3)Grã Bretanha: (os três maiores partidos)
Partidos |
Votos |
Assentos |
1964 |
||
Conservador |
43,4% |
48,3% |
Trabalhista |
44,1% |
50,3% |
Liberal |
11,2% |
1,4% |
1966 |
||
Conservador |
41,9% |
40,2% |
Trabalhista |
47,9% |
57,6% |
Liberal |
8,5% |
1,9% |
1970 |
||
Conservador |
46,4% |
52,4% |
Trabalhista |
43,0% |
45,5% |
Liberal |
7,5% |
0,9% |
1974 |
||
Conservador |
38,2% |
46,6% |
Trabalhista |
37,2% |
47,4% |
Liberal |
19,3% |
2,2% |
1974 |
||
Conservador |
35,8% |
43,6% |
Trabalhista |
39,2% |
50,2% |
Liberal |
18,3% |
2,1% |
1979 |
||
Conservador |
43,9% |
53,4% |
Trabalhista |
36,9% |
42,2% |
Liberal |
13,8% |
1,7% |
4) Nova Zelândia: (os três maiores partidos)
Partidos |
Votos |
Assentos |
1960 |
||
Nacionalistas |
47,6% |
57,5% |
Trabalhistas |
43,5% |
42,0% |
Social Credit |
8,6% |
0% |
1963 |
||
Nacionalistas |
47,1% |
56,2% |
Trabalhistas |
43,7% |
43,8% |
Social Credit |
7,9% |
0% |
1966 |
||
Nacionalistas |
43,6% |
55,0% |
Trabalhistas |
41,4% |
43,8% |
Social Credit |
14,5% |
1,2% |
1969 |
||
Nacionalistas |
45,2% |
53,6% |
Trabalhistas |
44,3% |
46,4% |
Social Credit |
9,2% |
0% |
1972 |
||
Nacionalistas |
41,5% |
36,8% |
Trabalhistas |
48,4% |
63,2% |
Social Credit |
6,7% |
0% |
1975 |
||
Nacionalistas |
47,4% |
60,9% |
Trabalhistas |
39,7% |
35,6% |
Social Credit |
7,4% |
1,2% |
1978 |
||
Nacionalistas |
39,7% |
55,4% |
Trabalhistas |
40,3% |
43,5% |
Social Credit |
16,3% |
0,9% |
Fonte: NOHLEN, Sistemas Electorales…
Na África do Sul, nos pleitos de 70 e 74 a desproporção entre a votação obtida por cada um dos partidos referidos na tabela e o número de assentos conquistados pelos mesmos é gritante. Da mesma forma na eleição para o Colégio Eleitoral que elege o Presidente da República nos Estados Unidos da América, observam-se desproporções consideráveis nos pleitos de 64 – a favor dos Democratas – e 72 e 80 – a favor dos Republicanos. Na Nova Zelândia, em 66, 69 e 72 a distância entre o número de assentos conquistados respectivamente por Nacionalistas e Trabalhistas guarda também alguma desproporção com relação à votação, enquanto que o sistema que parece se mostrar mais equilibrado, no período estudado, é o britânico.
Acima já se fez referência ao estudo de TAAGEPERA e SHUGART sobre o efeito psicológico da atribuição de assentos aos partidos sobre o eleitorado – a tendência deste de deixar de votar no partido em última análise prejudicado pelo sistema eleitoral. Mas em que medida a desproporção entre a votação obtida pelo partido e a atribuição de cadeiras a este mesmo partido pode afetar a disposição dos seus eleitores não só de continuar a votar num partido "perdedor", mas de continuar a participar do processo eleitoral? Isto é, será que haverá alguma relação entre o sistema eleitoral e o nível de abstenção dos eleitores?
Não foi escopo deste trabalho coletar dados numéricos e manipulá-los. Os únicos dados utilizados são simplesmente demonstrativos de uma realidade efetivamente conhecida – o sistema majoritário introduz distorções na representação do corpo eleitoral no que diz respeito à proporcionalidade desta representação. No entanto, cremos que a investigação experimental do problema apontado pode levar a alguma conclusão de relevo. O que parece é que o efeito psicológico descrito por TAAGEPERA e SHUGART pode se verificar no seio de um eleitorado cujo nível de conscientização política seja bastante elevado, em que o eleitor esteja efetivamente preocupado em participar politicamente. Mas que dizer de sociedades onde o grau de politização seja menor? Ou mesmo de sociedades multiétnicas, no sentido de várias etnias convivendo dentro das mesmas fronteiras nacionais, com predominância social, política, cultural ou mesmo militar de umas sobre as outras, caso de alguns países africanos (49) (50)?