5. Da impossibilidade de aplicação da "reformatio in pejus"
A possibilidade ou não de se agravar o resultado da decisão, após a interposição do recurso, é uma celeuma enfrentada pelos operadores do direito disciplinar militar. Trata-se da aplicação da "reformatio in pejus" ou reforma para pior, que implica na possibilidade de haver decisão em recurso agravando a situação inicial.
Em termos doutrinários, duas correntes se contrapõem. Há os que entendem que a decisão do recurso interposto na esfera administrativa pode agravar a situação do recorrente, em detrimento dos que entendem pela absoluta impossibilidade.
Os primeiros pregam a similitude do direito administrativo punitivo com o direito penal processual, que é o grande propulsor do referido princípio. Assim, não seria permitido o prejuízo do recorrente que tentou obter uma decisão mais branda para o seu caso. Normalmente fundam as suas posições em critérios metajurídicos de justiça e equidade. Cite-se, como exemplo, as lições de Lazzarini (1999, p. 408):
"Em que pesem respeitáveis opiniões em contrário, é de entender-se, porém, que o apenado, que recorreu ou pediu reconsideração (anote-se que na Polícia Militar e no Exército, pedido de reconsideração é tido, por força regulamentar, como recurso) não quer agravada a sua situação, ferindo o senso de justiça que, na decisão, ocorra o agravamento não pretendido."
Por outro lado, os opositores desta corrente rebatem que o direito penal e direito administrativo punitivo, embora com semelhanças, possuem diferentes interesses em jogo, o que inviabilizaria a migração aleatória de princípios jurídicos de um para o outro. Afirmam também que impera no direito administrativo o princípio da legalidade, o qual demanda uma solução imperativa da lei em detrimento de qualquer interesse privado. Deve prevalecer a decisão que confere maior proximidade do comando legal. No mesmo sentido, argumentam que no processo administrativo prevalece o "princípio da verdade material" e que a agravação da decisão original é uma correção de aplicação indispensável, como forma de cumprir a lei.
Não obstante as duas correntes doutrinárias básicas, José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 748) faz uma distinção no tocante à corrente que admite a "reformatio in pejus". O referido autor distingue as situações em que a reforma da decisão atende a critérios objetivos ou subjetivos. Veja-se.
Se houver necessidade de correção da decisão original por elementos essencialmente objetivos, tais como correlação da pena com a gravidade, enquadramento incorreto, utilização errônea de circunstâncias atenuantes ou agravantes, dentre outras, é possível que o órgão julgador do recurso proceda a correta aplicação da lei ao caso concreto e corrija a decisão recorrida, ainda que o resultado seja desfavorável ao recorrente. Em suma, no caso de comprovada ilegalidade, seria possível a reformatio in pejus.
No caso oposto, todavia, quando houver a apreciação apenas subjetiva dos elementos constantes dos autos, tais como apreciação das provas, dos elementos do processo, do grau de dolo ou de culpa, dentre outros, não poderá haver a reforma para pior, segundo o magistério do referido autor. É que neste caso não consta uma análise de legalidade, mas apenas uma apreciação subjetiva divergente, acerca das mesmas circunstâncias jurídicas formalmente válidas.
A par destas constatações, deve-se perquirir sobre o que se encontra positivado na legislação (RDE) e, além de uma interpretação meramente literal, averiguar outras formas de exegese. Para tanto, veja-se o que diz o RDE nos seus artigos 41 e 55, verbis:
"Art. 41. A punição disciplinar aplicada pode ser anulada, relevada ou atenuada pela autoridade para tanto competente, quando tiver conhecimento de fatos que recomendem este procedimento, devendo a respectiva decisão ser justificada e publicada em boletim.
(...)
Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado.
Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada." (grifei)
O RDE não prevê expressamente a agravação da punição. Prevê apenas a atenuação, que seria uma diminuição no seu quantum. A partir de uma interpretação histórica acerca da questão específica, percebe-se que no antigo regulamento disciplinar (Decreto 90.608 de 1984) era prevista a agravação da punição disciplinar, que assim versava:
"Art 39 - A punição aplicada pode ser anulada, relevada, atenuada ou agravada pela autoridade que a aplicar ou por outra, superior e competente, quando tiver conhecimento de fatos que recomendem tal procedimento." (grifei) Decreto 90.608/84
Com o silêncio acerca do preceito agravador pelo novo RDE, nos artigos 41 e 55, pode-se entender que houve a revogação da norma anterior, pois quando um novo diploma regula inteiramente matéria idêntica e expressamente a declara, há a revogação total do diploma. Vide a Lei de Introdução ao código civil [15], que trata desta questão interpretativa.
Nesse caso específico do Regulamento não existe lacuna normativa e sim o "silêncio eloquente". O RDE apresenta claramente quais são as possibilidades de decisão em recursos disciplinares. Como não há qualquer contradição interna com suas próprias regras, tampouco com outras regras das Leis estatutárias ou da Constituição Federal, deduz-se pela interpretação sistemática que o texto regulamentar alinhou-se à corrente doutrinária que inadmite a agravação da decisão em sede recursal. Percebe-se nas entrelinhas a preocupação com os ditames de justiça e equidade em face daquele que responde a um processo disciplinar. Logo, o silêncio da norma é do tipo "eloquente" e deve ser interpretado como vedação à possibilidade de agravação de punição em sede de recurso.
6. Da possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso disciplinar
Os recursos disciplinares, à similitude dos recursos judiciais, podem ser dotados de duplo efeito: devolutivo e suspensivo.
O efeito devolutivo, que é a regra, ocorre pelo conhecimento de toda a matéria objeto de análise pelo órgão julgador do recurso. Devolve-se àquele que irá julgar o recurso todas as questões discutidas no processo disciplinar.
Já o efeito suspensivo se caracteriza pela impossibilidade de cumprimento da punição disciplinar aplicada no processo originário, enquanto não houver um novo pronunciamento do órgão superior que ratifique aquela decisão. Ocorre ainda com a suspensão do cumprimento da punição, após interposição do recurso, até o seu julgamento final. Nesse caso, confirmada a punição na decisão do recurso, reinicia-se o cumprimento do restante que faltava para o término do prazo.
Ressalte-se, no entanto, que o efeito suspensivo somente ocorrerá se houver previsão expressa no diploma disciplinar, conforme asseverado por maciça doutrina. Neste sentido:
"Vale dizer, o efeito será meramente devolutivo, não alterando, portanto, a plena eficácia, a plena execução do ato punitivo, isto é, o recurso ou o pedido de reconsideração não suspendem a execução do ato punitivo, salvo se, ao contrário, dispuser a lei ou o regulamento disciplinar." (LAZZARINI, 1999, p. 408)
Esta assertiva, longe de ser apenas uma construção doutrinária, encontra-se positivada na lei 9784/99: "Art. 61. Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo". Retome-se, portanto, o ensinamento da aplicação subsidiária desta lei ao processo disciplinar do RDE.
O fundamento da exceção ao efeito suspensivo é justamente a presunção de legitimidade dos atos administrativos disciplinares, pois o indivíduo terá que cumprir a decisão, até que apuração posterior possa desconstituí-la, se houver respaldo legal. Prevalecem, até prova em contrário, os efeitos da decisão da Administração.
Ressalte-se, também, que a ampla adoção do efeito suspensivo na seara militar poderia enfraquecer a regularidade dos serviços e relações no seio das organizações militares, posto que as punições disciplinares seriam postergadas no tempo, causando uma atenuação do necessário imediatismo disciplinar. Notadamente na esfera militar, tal circunstância destruiria os seus pilares básicos: a hierarquia e a disciplina, já que as punições para terem o efeito desejado precisam ser imediatas. A pronta disciplina no meio militar visa não somente à educação do punido, mas reveste-se também de fator preventivo e intimidatório com a educação da coletividade. [16]
O silêncio do RDE acerca do efeito suspensivo dos recursos não autoriza a sua utilização, a princípio. Ademais, essa imprevisão de efeito suspensivo é corroborada pela prescrição do seu artigo 47, que não prevê lapso temporal para o início do cumprimento da pena:
"Art. 47. O início do cumprimento de punição disciplinar deve ocorrer com a distribuição do boletim interno, da OM a que pertence o transgressor, que publicar a aplicação da punição disciplinar, especificando-se as datas de início e término."
Por outro lado, entendem os doutrinadores que há possibilidade de concessão do efeito suspensivo quando ficar patente a sua necessidade, mesmo ante a inexistência de previsão legal. Segundo Carvalho Filho (2005, p. 746), o fundamento desta medida seria a autotutela administrativa, pois se a autoridade pode paralisar de ofício sua atividade, poderá fazê-lo também diante de um recurso sem o efeito suspensivo. Na mesma linha é o entendimento de Meirelles (2001, p. 634):
No silêncio da lei ou do regulamento, o efeito presumível é o devolutivo, mas nada impede que, nessa omissão, diante do caso concreto, a autoridade receba expressamente o recurso com efeito suspensivo para evitar possíveis lesões ao direito do recorrente ou salvaguardar interesses superiores da Administração.
Observe-se que, da mesma forma, estas premissas estão assentadas no parágrafo único do artigo 61 da Lei 9.784/99: "Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso".
Assim, a partir de uma análise em que sejam sopesados os possíveis prejuízos para o administrado, poderá o julgador do recurso conceder ou não o efeito desejado. Transpondo tais ensinamentos para a esfera normativa do RDE, percebe-se que não se deve interpretar o silêncio do texto como um imperativo de cunho proibitivo. Veja-se.
Apesar da aplicação do princípio da hierarquia e disciplina militar e a necessidade de aplicação tempestiva e imediata da reprimenda disciplinar, os fundamentos para a concessão discricionária de efeito suspensivo estão assentados no princípio da eficiência. Se a autoridade vislumbra, desde logo, que há possível mácula no julgamento originário do processo e que o cumprimento da pena poderá se transformar em medida excessiva, poderá se valer do seu poder hierárquico para suspender a cumprimento da pena durante o processamento do recurso. Dessa forma, como guardião da moralidade e gestor da Administração, a autoridade militar evitará uma possível futura anulação da punição infligida.
Aplica-se, no caso, o princípio da autotulela administrativa em consonância com os pressupostos do "periculum in mora" descritos no artigo da lei citada.
Ressalte-se, no entanto, o caráter discricionário da medida, pois, além de verificar os pressupostos de urgência e necessidade, o julgador "poderá" ou não conceder o efeito suspensivo, de ofício ou a pedido do recorrente. Pela letra do RDE, e até mesmo pela utilização subsidiária da Lei 9.784/99, não existe a previsão de efeito suspensivo ao recurso, o que retira qualquer possibilidade de direito subjetivo por parte do recorrente.
Assim, do confronto entre os princípios constitucionais, autoridade disciplinar que julgar o recurso deverá sopesar aquele que deverá preponderar no caso concreto, se o princípio da hierarquia e disciplinar militar ou o princípio da eficiência e da segurança jurídica. Portanto, a Administração decidirá mediante critérios de conveniência e de oportunidade para a concessão do efeito suspensivo.
7. Considerações finais
A evolução do panorama jurídico a partir das últimas décadas foi marcada pela mudança do paradigma interpretativo, culminando na fase do Pós-positivismo jurídico. Os princípios passaram a ter maior aplicabilidade, desempenhando concomitantemente as funções fundamentadora ou criadora de normas, interpretativa, supletiva, integrativa, sistematizadora do ordenamento jurídico e limitativa de direitos.
Esse influxo de ideias confrontou-se com a inadequada e anacrônica interpretação literal que impregnava o tema dos regulamentos disciplinares militares e deixava questões em aberto. A partir da "filtragem constitucional" proporcionada pela moderna hermenêutica jurídica, erige-se a ideia de que o sistema disciplinar militar deve ser interpretado com base nos princípios da carta maior e nos princípios jurídicos de direito público, com a certeza de que as possíveis lacunas normativas serão preenchidas.
Desse modo, questões aparentemente lacunosas do RDE são solvidas com as seguintes interpretações: prescreve em cinco anos a pretensão punitiva da Administração Militar; não é possível o agravamento das decisões disciplinares proferidas em grau de recurso; e, por fim, torna-se possível conferir o efeito suspensivo ao recurso disciplinar, mediante discricionariedade da autoridade recorrida.
Longe de esgotar as possíveis controvérsias, este estudo deixa assente que há plena viabilidade de integração dos direitos individuais e das garantias constitucionais ao direito disciplinar militar, a partir da utilização dos princípios jurídicos como um novo vetor interpretativo.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 851, 01 nov. 2005. Disponível em: <"http://jus.com.br/artigos/7547">. Acesso em: 15 jan 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ª Ed. Rev e Atual. São Paulo: Malheiros, 2004.
BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Constituição Federal.
_______________________. Decreto Nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército.
_______________________. Decreto-lei Nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
_______________________. Lei Nº 6.880,de 09 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares.
_______________________. Lei Nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
_______________________. Lei Nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.
CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. 10ª ed. 6ª reimpressão. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2005.
Costa, José Armando da. Controle Judicial do Ato Disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
Costa, Nelson Nery. Processo Administrativo e suas espécies. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
DI Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.