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Inconstitucionalidade da emenda da reeleição

Agenda 19/11/1997 às 00:00

O Brasil vive um grave momento de sua história, havendo uma insinuação muito clara de caos social, pela falência das políticas governamentais. No presente, o país não tem política de desenvolvimento, estando todo o mandato do atual Presidente da República dedicado, exclusivamente, à aprovação da emenda constitucional da reeleição para os cargos executivos. Enquanto isso, a saúde, a educação e a segurança pública são destroçadas, sem falar nas outras áreas.

Aprovada a emenda constitucional da reeleição, é oportuno demonstrar a sua evidente inconstitucionalidade, atendendo a que os intérpretes do direito constitucional são variados em uma sociedade democrática. Assim, interpretam a Constituição os parlamentares, os funcionários públicos, aí incluídos os chefes do Executivo, as entidades não governamentais, os sindicatos, os partidos políticos, o Poder Judiciário e os juristas, dentre outros.

Primeiramente, revele-se que a emenda de reeleição dos cargos executivos viola o art. 60, 4º, inciso IV, da Constituição Federal. Este dispositivo impede não só a aprovação como a apreciação de emenda tendente a abolir direito ou garantia individual. Esses dois direitos inserem-se no conceito de direito fundamental do homem, que adquiriram status constitucional a partir da Revolução Francesa. Esse direito denomina-se fundamental porque sem ele o homem não pode atingir o seu processo de individuação, entendido no sentido de Jung, ou seja, como desabrochar da personalidade e desenvolvimento do seu ser; são aqueles direitos essenciais para o ser humano, que necessita deles para a realização de sua totalidade, considerando os novos padrões emergentes da visão holística do mundo.

No entender de José Afonso da Silva(Direito Constitucional Positivo, ED. RT., São Paulo, 5ª edição, 1989, p. 159) fundamental significa situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não convive e, às vezes, nem sobrevive, devendo ser material e concretamente efetivados. A seguir classifica José Afonso os direitos fundamentais em cinco grupos: direitos individuais(art. 5º), coletivos(art. 5º), sociais(art. 6º e 193 e ss.), à nacionalidade(art. 12) e políticos(arts. 14 a 17). Evidentemente, entre os direitos políticos fundamentais do homem e do cidadão brasileiro está o direito à irreelegibilidade dos detentores de cargos executivos.

Peces-Barba, ao definir o que chama de direitos subjetivos fundamentales (equivalente ao nosso direito fundamental), inclui entre esses a "facultad que la norma atribuye de protección a la persona en lo referente a ... su participación política o social"(apud Silva, J. A, ob. cit., p. 160). Mesmo que no conceito moderno de direitos fundamentais do homem não estivessem incluídos os seus direitos políticos, seria impossível impedir a sua revisão, pois esse conceito se impõe a partir da própria Constituição brasileira de 1988, ao disciplinar esses direitos em Título I, capítulo IV.

A Constituição Federal de 1988 manteve a proibição à reeleição dos cargos políticos unipessoais, para impedir a elegibilidade de detentores de cargos dos Presidente da República, Governador e Prefeito. Esse direito à irreelegibilidade, termo mais técnico segundo Pinto Ferreira, vem desde a primeira constituição republicana de 1891 e foi mantido por todas as constituições democráticas posteriores. Como se vê, historicamente esse direito foi mantido pelas constituições brasileiras e é um principio informador de todo o nosso sistema político, que não foi mudado nem durante o período mais negro da ditadura militar de 1964, especialmente durante o AI - 5.

Sendo direito fundamental do homem e cidadão brasileiro a irreelegibilidade dos ocupantes dos cargos de chefia do Poder Executivo para o mandato seguinte, é inconstitucional a Emenda Constitucional nº 16, que aprovou a reeleição para esses cargos no período subsequente, por violentar o art. 60, 4º, inciso IV, da Constituição Federal. É uma cláusula pétrea que foi ignorada a troco de grave prejuízo para a Nação, que tem sofrido as conseqüências do atual estado de coisas.

Analisando essa emenda de outro ângulo, é ela igualmente inconstitucional por ferir um princípio constitucional fundamental à nossa federação. Os princípios constitucionais se dividem em duas categorias fundamentais, uma de princípios políticos-constitucionais e outra de princípios jurídico-constitucionais. Os primeiros são princípios fundamentais positivados em normais instituidoras que "traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição", no dizer de Gomes Canotilho(apud Silva, J. A. da, ob. cit., p. 82), enquanto aqueloutros são princípios gerais, muitas vezes derivados dos primeiros, tais como o principio da supremacia da constituição, da liberdade, da igualdade.

Um princípio político-constitucional introduzido com a república federativa constitucional de 1891 é o da não elegibilidade de ocupantes dos cargos de chefia do Poder Executivo para o período subsequente. É, inclusive, uma construção brasileira. O conceito de federação nosso é diferente de outros povos, porque aqui a federação inclui três entidades políticas autônomas, a União, os Estados e os Municípios. Portanto, no conceito de federação, no Brasil, inclui-se, igualmente, o da irreelegibilidade dos ocupante dos cargos de Presidente da República, Governador e Prefeito e de seus vices, para os mesmos cargos, para o mandato imediato(art. 1º, caput, c/c o art. 14, 5º, da Const. Fed.). Por esse motivo, a Emenda Constitucional nº 16 violou o art. 60, 4º, inciso I, da Constituição Federal em vigor.

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Nesse assunto é mister lembrarmo-nos de lição de João Mangabeira, ao ponderar que "numa Constituição há princípios expressos, princípios inerentes, princípios implícitos, princípios resultantes, princípios fundamentais e princípios circunstaciais. Todos eles pertencem tanto à Constituição quanto os explícitos"(apud Josaphat Marinho, Estudos Constitucionais, p. 165), sob pena de vilipendiarmos a nossa Constituição Cidadã, como a denominou o velho navegador Ulisses Guimarães, cuja falta é grande neste grave momento em que estão transformando-a em Constituição Leviatã.

Essa reforma constitucional insere-se em uma reforma maior, iniciada com o atual mandado do Presidente da República, significando que o Congresso Nacional está atuando como Poder Constituído Originário, de forma absolutamente inaceitável, rasgando toda a Constituição. O Poder Constituinte Derivado não pode, dentro do Estado Democrático de Direito, reformar totalmente a Constituição, como está sendo feito, porque ele é limitado a mudanças individuais e jamais ao conjunto da Carta Suprema. Essa reformas "parciais" estão abalando os fundamentos de nossa Constituição, destruindo a Federação e acabando com o patrimônio da Nação, entregue a preço de banana às empresas multinacionais, como foi a venda da Vale do Rio Doce.

Válido a lição de Paulo Bonavides, in verbis:

"Trata-se em verdade de reformas totais, feias por meio de reformas parciais. Urge precatar-se contra essa espécie de revisões que, sendo formalmente parciais, examinadas, todavia, pelo critério material, ab-rogam a Constituição, de modo que se fazem equivalentes a uma reforma total, pela mudança de conteúdo, princípio, espírito e fundamento da lei constitucional."
(Curso de Direito Constitucional, 7ª edição, Malheiros, SP, 1997, p. 179).

Digamos, com Celso Antônio Bandeira de Mello, que a "sociedade real, a que congrega a esmagadora maioria do povo, já está exibindo sinais claros de descontentamento e impaciência, que podem, vir a se tornar perigosos´, como demonstrou a revolta das Polícias Civis e Militares da maioria dos Estados. "A sociedade pode resistir ativamente ao indivíduo que a tiraniza porque, fazendo-o, resiste à força bruta ..." como advertia Felipe Neri Collaço no século passado e, como diz Voltaire, o tirano não é mais do que o soberano que só conhece uma lei: a do seu capricho(apud Artur Machado Paupério, Teoria Democrática de Resistência, volume 3, Forense Universitária, 3ª edição, 1997, p. 244). A falta de uma posição firme do órgão de cúpula de todo o nosso sistema judiciário está levando toda a sociedade a sentir-se desamparada, levando-a a usar o seu direito de resistência, como revelam esses movimentos das polícias, dos sem-terra, sem-teto, sem-escola e sem-emprego.

É preciso lembrar, também, que a emenda constitucional que aprovou a reeleição foi votada e aprovada durante intervenção federal no estado de Alagoas, o que é inconstitucional. Convém esclarecer que na definição e reconhecimento de um instituto jurídico de nada vale o seu nome, mas a sua verdadeira natureza. Ou seja, o que interessa é a essência do instituto jurídico, pouco importando o nome que se lhe dê. Este entendimento é unânime entre os juristas, sendo um princípio informador da ordem jurídica brasileira.

Assim, evidente que diante do grave comprometimento da ordem pública no Estado de Alagoas(art. 34, III, da CF), do conflito com o Poder Judiciário( art. 34, IV), da desorganização de suas finanças(art. 34, V) e para assegurar o respeito aos direitos da pessoa humana(art. 34, VII, b) a ação do Governo Federal não constitui cooperação, mas intervenção disfarçada para burlar o art. 60, 1º, da Constituição Federal, que proíbe expressamente a emenda da Constituição durante a intervenção federal em estado-membro.

Conforme salientado, não é o nome dado pelo Presidente da República que irá modificar o instituto da intervenção federal no estado pela união, pois o que importa é a sua natureza. No sentido do Direito Constitucional define-se intervenção como ato político que consiste na incursão da entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta. Portanto, vê-se que desde finais de 1996 o Presidente da República decretou a intervenção federal em Alagoas, determinando a atuação da Polícia Federal em negócios típicos do estado-membro, bem como tomando decisões afetas a assuntos do estado, chegando ao ponto de nomear secretário da Fazenda para Administrar as Finanças falidas de Alagoas.

Há, inegavelmente, intervenção federal de fato desde 1996 no Estado de Alagoas, o que acarreta a inconstitucionalidade da emenda constitucional da reeleição, por ter havido violência ao art. 60, 1º, da Constituição Federal.

Há, ainda, um quarto motivo para inconstitucionalidade da emenda da reeleição. O art. 37, caput, da Constituição determina que a administração obedecerá a alguns princípios inafastáveis, entre eles o da moralidade administrativa. É óbvio que o princípio da moralidade se aplica aos parlamentares no momento da aprovação das leis, tanto que o art. 55, 1º, estipula que perderá o mandato o deputado ou senador que perceber vantagens indevidas.

O jornal Folha de São Paulo divulgou conversas gravadas em fitas cassete onde se demonstra a compra de votos para aprovar a emenda da reeleição, fato realizado pelo tesoureiro da campanha eleitoral do atual Presidente da República e Ministro das Comunicações Sérgio Mota. Diante disso, verifica-se que a emenda da reeleição foi aprovada por alguns deputados que tiveram comportamento imoral, violando deveres do art. 37, caput, c/c o art. 55, 1º, da Constituição. É sabido e reconhecido que o ato político, ao ser realizado infringindo a moralidade administrativa, é nulo de forma absoluta, sendo desprovido de valor.

Na aprovação da emenda da reeleição houve abuso de poder por parte de deputados, maculando todo o processo legislativo. O desvio de finalidade é manifesto, atingindo ainda o princípio da impessoalidade, pois a emenda foi aprovada exclusivamente para possibilitar a reeleição do atual Presidente da República, o que enseja nulidade absoluta.

O Supremo Tribunal Federal já acatou a tese de que é plenamente possível a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional, o que não poderia ser diferente face à redação firme do art. 60, 4º, da Constituição. A Suprema Corte deverá levar em consideração os altos interesses da Nação ao apreciar este assunto e não se deixar tolher pelas ações do atual Presidente da República. A Nação, a Federação e a Democracia estão em perigo; o momento é grave e exige ações firmes de toda a sociedade, para impedir a destruição de nossas frágeis instituições democráticas. Vivemos um momento de quase-ditadura, onde o Presidente da República manobra o Congresso Nacional ao seu bel prazer e onde o STF, às vezes, também é influenciado, sendo exemplo marcante as medidas provisórias inconstitucionais reeditadas mil e uma vezes e aceitas pelo Supremo Tribunal, em desfavor da Constituição Federal.

Este comportamento equivocado do Supremo Tribunal repetiu-se em julgamento rumoroso envolvendo o Congresso Nacional e onde apenas o Ministro Marco Aurélio votou de forma correta, reconhecendo a autoridade da Constituição. O Senador constitucionalista Josaphat Marinho nos informa de diversos erros da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, como o julgamento Dred Scott, que consagrou a escravidão(Estudos Constitucionais, da constituição de 1946 à de 1988, UFBA, Centro de Estudos Baianos, Salvador, 1989, p. 49/50). Aliás, um membro da própria Suprema Corte, Hugo Lafayette Black, criticou duramente o tribunal por lavar as mãos no caso da perseguição aos comunistas, abdicando de suas prerrogativas constitucionais.

No Brasil vivemos momento semelhante, onde as medidas provisórias são editadas e reeditadas diariamente, violando estupidamente a Constituição, enquanto o Supremo finge que não vê e renuncia à sua obrigação constitucional. Esta atitude vai acabar com o regime democrático e a própria Justiça, como um todo acabará sendo também violentada. Essas medidas provisórias "emascularam e transformaram o país, na realidade, em uma ditadura do Executivo" para adotar a expressão de Celso Antônio Bandeira de Melo(O chupa-cabra, Folha de São Paulo, 01.08.97).

No julgamento das questões constitucionais o "... Juiz não deve ser conservador, no sentido de resistente às transformações necessárias, nem revolucionário, como propugnador de soluções bruscas. Exercitando a autonomia de raciocínio, com energia e prudência, há de buscar o equilíbrio, que concorre para o desenvolvimento ordenado", no dizer de Josaphat Marinho(ob. cit., p. 31); a balança da Justiça está desequilibrada, havendo um beneplácito da Corte Suprema com atos inconstitucionais do Executivo, salvo algumas questões envolvendo tributos.

É forçoso concluir com Tobias Barreto que não podemos deixar o Direito "tornar-se uma ciência puramente nominal, que pode dar o pão, porém não dá honra a ninguém" (Estudos de Direito I, Edição Comemorativa, Ed. Record/Governo de Sergipe, Aracaju, SE, 1991, p. 47).

Sobre o autor
Ivan Carlos Novaes Machado

promotor de Justiça em Irecê (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Ivan Carlos Novaes. Inconstitucionalidade da emenda da reeleição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 21, 19 nov. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1509. Acesso em: 22 dez. 2024.

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