1 INTRODUÇÃO
A ordem constitucional inaugurada em 1988 foi um marco não somente sob o prisma jurídico, mas também filosófico e histórico. A redemocratização do Brasil, ainda que tardia, soprou na sociedade ares de esperança, mostrando que a democracia poderia ser o ambiente para se viver com dignidade, paz e, possivelmente, direitos efetivados.
Esse novo episódio do constitucionalismo brasileiro introduziu no cenário jurídico inúmeras discussões envolvendo, sobretudo, o papel da Constituição Federal, a efetividade dos direitos fundamentais de segunda dimensão, a necessidade da (re)discussão da hermenêutica jurídica, com a criação/importação de novos métodos e princípios de interpretação, dentre diversas outras questões de grande valia na busca pela eficácia social das normas constitucionais.
Diante desse novo modelo, o positivismo normativista kelseniano mereceu, necessariamente, nova análise, em vista da positivação de princípios constitucionais de notória carga axiológica. Este novo ideário marca, enfim, a reaproximação entre o Direito e a ética.
Partindo dessas premissas, o presente trabalho busca expor as bases do constitucionalismo brasileiro inaugurado em 1988, trazendo, ainda, as principais contribuições da doutrina pós-positivista. Com o fito de melhor clarificar a discussão proposta, analisar-se-á a importância da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, cuja inserção nos documentos constitucionais consagra e identifica o constitucionalismo do segundo pós-guerra.
2 DO NEOCONSTITUCIONALISMO NO BRASIL
O constitucionalismo, tal como hoje compreendido, tem seu início no século XVIII. De moldes liberais, tratou eminentemente de declarar os direitos humanos de primeira dimensão e delimitar o âmbito de atuação do Estado por meio da separação de poderes, introduzindo na história o paradigma de Estado Liberal. Segundo Comparato (2010, p. 63), o Estado liberal-burguês foi "a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a nobreza - e tornar o governo responsável perante a classe burguesa".
Em decorrência de fatores diversos, a pouca intervenção do Estado Liberal nas relações privadas gerou a pauperização da classe trabalhadora, que era explorada avassaladoramente por aqueles que detinham o poder econômico e, por tal razão, estabeleciam ao seu alvedrio as condições de trabalho [01]. Ainda conforme Comparato (2010, p. 66),
o resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalhadora.
Com a crise engendrada pelo Estado Liberal [02] e em decorrência dos movimentos socialistas a partir do século XIX, o Estado passa a intervir nas relações privadas, reduzindo o âmbito de autonomia individual, a fim de evitar a exploração do homem. Surge assim o Estado Social de Direito (ou Welfare State).
Esse novo modelo de organização política teve por escopo superar o individualismo e a isonomia formal reinantes no Estado Liberal, buscando, para tanto, o implemento de instrumentos que garantissem condições mínimas de subsistência por meio da promoção da igualdade material e da realização da justiça social. O caminho para concretizar o ideal de bem-estar proposto pelo Estado Social seria trilhado pela concretização dos direitos de segunda dimensão, que, indubitavelmente, foi a principal herança deixada pelo constitucionalismo (social) inaugurado nesse período [03].
No Brasil, pode-se dizer que o constitucionalismo seguiu os mesmos passos dos movimentos que se difundiram pelo mundo, com algumas ressalvas concernentes a aspectos temporais e políticos. A bem da verdade, a história constitucional brasileira demonstra que o constitucionalismo social chegou ao Brasil somente na Constituição de 1934 [04], na tentativa de se construir um Estado com olhos voltados à questão social dos trabalhadores.
Sem êxito, a Constituição de 1934 relegou ao plano das promessas a tarefa de se efetivar os direitos sociais [05], cabendo, como o tempo incumbiu-se de demonstrar, ao Estado Democrático de Direito a tarefa de assegurar a efetividade de determinados direitos fundamentais.
O século XX, desse modo, é marcado pelo surgimento dos Estados Constitucionais, erigidos sobre o constitucionalismo democrático difundido no segundo pós-guerra, tendo por escopo a realização das promessas (ainda) não realizadas pelo Estado Social de Direito, intento que será possível por força do plus normativo agregado a essa nova ordem constitucional (STRECK, 2009, p. 37).
2.2 Do pós-positivismo como marco filosófico para uma nova compreensão do direito constitucional – o neoconstitucionalismo
A decadência dos regimes autoritários em meados do século passado gerou importantes consequências no mundo do Direito, possibilitando o seu reencontro com a ética. Conforme descrito por Barroso (2009, p. 327), "ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido."
Assim, o último quarto do século XX marcou o declínio do positivismo jurídico [06], em virtude da derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, movimentos que, sob o manto da legalidade, cometeram uma das maiores barbáries da história ocidental [07].
Daí em diante tem início na Europa uma onda pela redemocratização dos Estados, tendo como principal marco a Lei Fundamental de Bonn da Alemanha, de 1949. Antes disso, a redemocratização ocorreu também na Itália, em 1947, e posteriormente em Portugal, em 1976, e na Espanha, em 1978. No Brasil, o direito constitucional renasce juntamente ao Estado Democrático de Direito, com a promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988. Estes são os marcos históricos do neoconstitucionalismo [08] mundial e brasileiro, respectivamente.
Esse novo direito constitucional tem como marco filosófico a superação do positivismo normativista kelseniano e o retorno da noção jusnaturalista [09] ao direito. Conforme salientado por Streck (2009, p. 7), "pós-positivismo deve ser entendido com o sentido de superação e não (mera) continuidade ou complementariedade" [10]. Assim, esse "ideário difuso" propõe uma (re)discussão de diversos pontos fundamentais da teoria geral do direito e, em particular, do direito constitucional, mais especificamente com relação à teoria dos direitos fundamentais e à hermenêutica constitucional.
No que tange ao marco teórico, o neoconstitucionalismo operou mudanças na dogmática e hermenêutica jurídica convencionais. Segundo Barroso [11], três grandes transformações podem ser identificadas com esta compreensão do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.
Nesse mesmo sentido, leciona Barcellos (2007, p. 2 e ss.), resumidamente, que as características específicas mais destacadas deste novo direito constitucional podem ser ordenadas em dois grupos: um que congrega elementos metodológico-formais e outro que reúne elementos materiais.
Sob o prisma metodológico-formal, o neoconstitucionalismo opera em três premissas fundamentais, a saber: (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento de que as normas constitucionais são dotadas de imperatividade/coercitividade; (ii) a superioridade da Constituição com relação às demais leis e atos normativos; e (iii) a centralidade da Carta no ordenamento jurídico, devendo ser concebida como um filtro da interpretação jurídica.
Nesse aspecto, segundo a referida autora, inserem-se no âmbito do direito constitucional discussões acerca da eficácia jurídica dos princípios constitucionais, das possibilidades de controle das omissões inconstitucionais e da interpretação das normas infraconstitucionais à luz da Constituição Federal.
Do ponto de vista material, o neoconstitucionalismo é caracterizado pelos seguintes elementos: (i) a incorporação expressa de valores (dignidade da pessoa humana) e opções políticas gerais (redução das desigualdades sociais) e específicas (a prestação de serviços de saúde, educação etc.) nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos (colisão de normas constitucionais, v.g., liberdade de expressão e de informação e intimidade, honra e vida privada) e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional.
Nesse sentido, muito antes de vincular a interpretação somente das normas constitucionais, o neoconstitucionalismo (e o pós-positivismo) marca a confluência de ideias despontadas no segundo pós-guerra com o fito de operar uma releitura da própria dogmática jurídica tradicional.
Para o nosso contexto, e com o fito de melhor compreender as características deste novo direito constitucional, é importante que se acrescente os seguintes fundamentos, trazidos à lume por Barroso (2009, p. 249-250), quando afirma que
a doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática, na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a ética.
Frise-se que a compreensão do neoconstitucionalismo, combinada à instituição de um Estado Democrático (e Social) de Direito (art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988), é de fundamental importância em um país de "modernidade tardia" como o Brasil. Isso se justifica porque o direito, de modo geral, interpretado à luz da Constituição, possui plena potencialidade de transformar a sociedade, uma vez que, nesse contexto, é sempre um instrumento para a realização das "promessas da modernidade", decorrentes, direta ou indiretamente, da Lei Maior, notadamente de seu art. 3º (STRECK, 2009, p. 2).
Portando, a discussão acerca da efetividade [12] das normas constitucionais deve-se aliar à compreensão do neoconstitucionalismo, a partir do seu marco filosófico (o pós-positivismo), sendo esse o ambiente propício e adequado para a discussão e realização da vontade constitucional, bem como para o desenvolvimento de um constitucionalismo dirigente e compromissado com o ideal de justiça social, meio pelo qual realizar-se-á o ideal de bem-estar (ainda) não concretizado no Brasil.
3 ALGUNS DELINEAMENTOS EM TORNO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Empreender o estudo do princípio da dignidade da pessoa humana no atual paradigma constitucional é tarefa imprescindível não só pela sua positivação implicar na inserção de valores suprapositivos no ordenamento jurídico, mas, sobretudo, em razão de seu caráter garantista.
O tema, por si só, ocuparia o título de extenso estudo. Não objetivando maiores digressões, o referido princípio será aqui abordado tomando por base sua eficácia interpretativa e seu potencial garantista concernente ao núcleo do mínimo existencial.
A Constituição abarca em seu texto uma diversidade de normas, que ora se traduzem em regras, ora em princípios. Quanto às regras, geralmente, não se vislumbram maiores problemas na sua aplicação, o que pode ser resolvido mediante mera subsunção dos fatos à norma, uma vez que traduzem-se em comandos objetivos, prescrições que expressam diretamente um preceito, uma proibição ou permissão (BARROSO, 2009, p. 206).
Já com relação aos princípios, sobretudo os extraídos da Constituição, tal não ocorre, uma vez que figuram como enunciados dotados de conteúdo aberto e possuidores de grande carga axiológica. Entrando em rota de colisão, cabe ao intérprete solucionar o conflito com a correta ponderação, de modo a aplicar ambos, preservando seu núcleo mínimo essencial.
Nesse prisma, diversos princípios constitucionais assumem função não só integrativa e subsidiária na aplicação do Direito, mas, sobretudo, dão unidade ao ordenamento e tomam posição destacada no sistema jurídico. Os princípios funcionam, portanto, como um mecanismo dinâmico na solução de normas constitucionais.
Em vista de sua normatividade, os princípios não se situam no texto constitucional somente como um convite à atuação dos Poderes Públicos na concretização dos mandamentos constitucionais. A força normativa atribuída às normas constitucionais [13], por vezes consubstanciadas em princípios, pretende dar a máxima efetividade às mesmas, isto é, operar a conjugação do dever-ser normativo ao ser da realidade.
Assim, ainda em conformidade ao pensamento de Barroso (2009, p. 329), pode-se dizer que os papéis desempenhados pelos princípios no ordenamento são: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.
Assentadas essas bases, cumpre atentarmos para a importância da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana [14] no ordenamento jurídico pátrio, no art. 1º, III, da CF/88. Conforme se depreende do texto constitucional, a dignidade da pessoa humana, além de ser matriz de diversos direitos fundamentais, foi alçada pelo constituinte originário a princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Por esse motivo, o referido princípio "constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional" (SARLET, 1998, p. 110), sendo, ainda, um traço marcante da incorporação do pós-positivismo [15].
Afirma Piovesan (2010, p. 27) que "o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional".
De forma peculiar, Bonavides (2001, p. 233) salienta que
toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados.
Desse modo, segundo o citado autor, "nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana" (2001, p. 233).
No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana exerce diversas funções, dentre elas, destacadamente, a de demarcar a fundamentalidade dos direitos, operando determinante contribuição na identificação de outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados na Constituição Federal de 1988, ou dos tratados internacionais dos quais a República brasileira seja parte.
O princípio pode ser visto também sob diferentes perspectivas. Com arrimo no ensinamento de Sarlet (1998), pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana é, simultaneamente, limite e tarefa do Estado. Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é direito que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, uma vez que, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado.
No que tange à dignidade como tarefa do Estado, referido princípio, segundo o autor,
reclama que este [Estado] guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do estado ou da comunidade [...] (SARLET, 1998, p. 106).
Dando prosseguimento ao estudo das múltiplas facetas do princípio da dignidade da pessoa humana, este pode ser visto ainda tanto pelo prisma abstrato (ou subjetivo), como pelo concreto (ou objetivo). Subjetivamente, dignidade se relaciona com a liberdade e os valores do espírito e, no plano concreto, diz respeito à existência de condições materiais de subsistência.
É no plano objetivo que com maior intensidade se fala na garantia do mínimo existencial, que garante ao cidadão uma esfera intocável de garantias (dimensão negativa) e, por vezes, depende de prestações positivas do Estado para se ver preservado (dimensão positiva).
Essa esfera intocável de direitos básicos envolve diversas garantias jusfundamentais, como, por exemplo, patamares mínimos de saúde, uma educação básica capaz de atender ao mínimo exigido em determinada sociedade, uma renda mínima que possibilite ao trabalhador adquirir os bens materiais e imateriais suficientes ao seu sustento, dentre outros.
Nota-se, portanto, que a dignidade pode ser variável de acordo com as necessidades da sociedade na qual se vive. No entanto, uma premissa nos parece certa: a garantia do mínimo capaz de gerar uma existência digna aos cidadãos se reveste daqueles direitos básicos garantidos no ordenamento jurídico, direitos esses que, a depender das necessidades contextuais (objetivas e subjetivas), uma vez não garantidos ou efetivados, são passíveis de figurarem como objeto de uma demanda judicial, impondo aos entes federados o dever de prestação positiva [16].
Conforme preleciona Barcellos (2002, p. 305), a compreensão de uma esfera intocável de garantias, no que tange aos elementos materiais de dignidade, é composta pelo mínimo existencial,
que consiste em um conjunto de prestações mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. (...) Uma proposta de concretização de mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos á educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e o acesso à justiça.
Dessas lições se conclui que o mínimo existencial, além de assegurar a efetivação de direitos materialmente fundamentais, também abarca uma garantia de natureza instrumental (o direito de acesso à justiça).
Assentadas essas bases substanciais acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre tecer alguns comentários sobre da sua eficácia exegética, isto é, do modo como o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como vetor interpretativo no exercício da atividade jurisdicional.
No plano da eficácia interpretativa, os princípios podem, em alguns casos, assumir a função de condicionadores da atividade exegética, isto é, havendo a possibilidade de aplicação de duas normas ao mesmo caso concreto, o intérprete deve guiar-se pela que melhor atenda à vontade constitucional, tomando por base os postulados principiológicos.
Desse modo, é inegável que, na atividade hermenêutica, o princípio basilar da dignidade da pessoa humana assume certa prevalência em relação às demais normas. Em diversas ocasiões nossos Tribunais Superiores julgaram casos de grande relevância tomando por base o postulado inscrito no art. 1º, inc. III, da CF/88.
Em paradigmática decisão, o Min. Celso de Mello se manifestou da seguinte maneira:
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. (STF, ADPF n. 45 MC/PR, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 29.04.2004, publicado em 04.05.2004).
Em outra oportunidade, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo, o STF possibilitou o cumprimento de pena nos moldes da prisão domiciliar à condenada por tráfico ilícito de entorpecentes, portadora de doença grave, não obstante o regime de cumprimento não autorizar tal medida. Nos termos de decisão lavrada pelo Min. Rel. Celso de Mello,
a transferência de condenado não sujeito a regime aberto para cumprimento da pena em regime domiciliar é medida excepcional, que se apóia no postulado da dignidade da pessoa humana, o qual representa, considerada a centralidade desse princípio essencial, significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Concluiu-se que, na espécie, impor-se-ia a concessão do benefício da prisão domiciliar para efeito de cumprimento da pena, independentemente da modalidade de regime de execução penal, pois demonstrada, mediante perícia idônea, a impossibilidade de assistência e tratamento médicos adequados no estabelecimento penitenciário em que recolhida a sentenciada, sob pena de, caso negada a transferência pretendida pelo Ministério Público Federal, ora recorrente, expor-se a condenada a risco de morte. RHC provido para assegurar a ora paciente o direito ao cumprimento do restante de sua pena em regime de prisão domiciliar, devendo o juiz de direito da vara de execuções criminais adotar as medidas necessárias e as cautelas pertinentes ao cumprimento da presente decisão. (RHC n. 94.358/SC, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29/04/2008, destaques acrescentados).
Mesmo diante da proeminência do princípio em questão no ordenamento jurídico, somente à luz do caso concreto, no entanto, poder-se-á dizer, com segurança, haver a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre outro princípio, em casos de colisão entre eles, uma vez que tanto os direitos fundamentais como os princípios não são absolutos, havendo meios próprios e pertinentes utilizados na sua aplicação e limitação, quando necessária.