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Reforma agrária: titulação coletiva de populações tradicionais do Pará.

Elementos de experiência para um novo paradigma

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Agenda 01/10/2000 às 00:00

O CASO DOS TRABLHADORES RURAIS DO CAMUTÁ DO PUCURUI

Caso que também partilhamos a experiência que consideramos inovadora, diz respeito à concessão de direito real de uso de uma área de 17.961 ha, concedido para a Associação dos Trabalhadores Rurais do Camutá do Pucuruí, - ATARCP - em nome da Comunidade de Nossa Senhora de Fátima do Camutá do Pucuruí, assinado no mês de julho corrente pelo Governo do Estado.

O Objeto do pedido formulado consistia na concessão pelo Estado do Pará de Direito Real de Uso de uma área de 17.961 há, localizada no Rio Pucuruí - Igarapé Camutá do Pucurui, município de Gurupá, a fim de ser desenvolvido na área pela Comunidade requerente um projeto agro-extrativista, mediante Plano de Manejo Florestal Comunitário.

Foram juntados aos autos o Estatuto Social da ATARCP, Ata da Assembléia de Constituição da Associação, devidamente certificados os seus registros perante o Cartório da Comarca de Gurupá, no Livro de Registro de Pessoas Jurídicas, bem como foram juntadas cópias autenticadas dos documentos pessoais dos representantes legais da Associação, constituindo-se a requerente de entidade de direito privado e sem fins lucrativos, de número de sócios ilimitados, tendo como área de abrangência a Comunidade de Nossa Senhora de Fátima do Camutá do Pucurui, comunidade de ocupação tradicional de ditas terras.

Foi apresentado Plano de Manejo Florestal Comunitário da Comunidade, com largo espectro de técnicas e detalhes, elaborado com ajuda da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional –FASE.

Cumpre observar que o pedido da Associação dirigia-se a uma forma especifica de concessão de uso da terra, qual seja, a titulação mediante Concessão de Direito Real de Uso da área, logo, onde a propriedade permanece com o Estado, sendo somente o uso desmembrado ao particular por prazo certo e mediante clausulas contratuais a serem fixadas.

O Direito Real de Uso é nos limites clássicos do direito civil como o direito que o titular possui de retirar da coisa alheia as utilidades compatíveis para atender às necessidades próprias e da sua família (25).

Vemos, assim, que nos termos do vetusto código civil, artigos 742 a 745, temos critérios que permitem definir a concessão de uso como um meio de destinação social, evidentemente que um código erigido sob os ventos do positivismo clássico onde imperavam os meios de uso e valorização do indivíduo, não poderia regular os meios deste instituto por organizações comunitárias, como no presente caso.

Mas fazendo-se as devidas proporções de tempo e espaço histórico, o valor social protegido é o mesmo, qual seja possibilitar a organização e aos familiares o seu sustento. No caso, a ATARCP como bem define o artigo 1o. dos seus Estatutos Sociais prevê que esta é uma entidade civil sem fins lucrativos, tendo como objetivo "melhorar o padrão de vida e trabalho, a capacitação técnica e profissional, incrementando o nível de consciência política, social e ambiental dos seus sócios e da comunidade em geral" ( art. 2o,. inciso I do Estatuto) .

Registre-se, que a área de Abrangência da ATARCP são os moradores das famílias da Comunidade de Nossa Senhora de Fátima do Camutá do Pucuruí, sendo que o "ingresso de outras famílias não residentes nas terras da ATARCP, só será permitido com a autorização da mesma" ( art. 25 do Estatuto – Atos das Disposições Gerais e Transitórias), logo percebe-se claramente que se trata de organização social comunitária de ocupantes tradicionais da área requerida, famílias que historicamente vem na posse de ditas terras.

Neste diapasão, destacamos que o constituinte estadual valorizou as formas organizativas de trabalhadores em caráter comunitário, tanto, que o seu artigo 293, inciso VI, estabelece , que política agrícola, agrária e fundiária será executada levando em conta preferencialmente :

Art. 293 – . . omissis. . . . . .

VI - A transferência das terras públicas do Estado a pessoas físicas ou jurídicas, inclusive de caráter comunitário, ou qualquer forma associativa de trabalhadores rurais, através da alienação gratuita ou onerosa, ou concessão de uso, precedida de demarcação oficial, nos termos da lei, que estabelecerá as hipóteses em que a demarcação será gratuita e regulará a remessa dos respectivos laudos para o colegiado competente."(grifo nosso)

Neste diapasão não poderia subsistir argumento de que não existiria legislação para amparar o pleito, pois existe expressivo mandamento constitucional que coloca como política agrária preferencial as organizações de caráter comunitário ou qualquer forma associativa de trabalhadores rurais, registrando como uma das formas de uso das terras públicas mediante a concessão de uso.

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Assim, existindo norma constitucional como norma de direito positivo que é, suprema positividade inclusive como fundamento legitimador do sistema de direito positivo estadual, não poderia ser negada a sua eficácia. Ressalta-se, especialmente que as formas organizativas dos trabalhadores, aqui valorizadas pelo Constituinte, como resultado da clássico histórico de formação da propriedade no Brasil, apesar de historicamente construírem a sua relação com a terra através do trabalho, sempre estiveram em desvantagem na aquisição do domínio, pois distantes dos amigos do rei, a quem eram distribuídos os "títulos" de acesso à terra.(26)

Apontamos, portanto, uma clara opção do constituinte pela posse agrária que vem sendo historicamente construída pelas populações tradicionais que ocupam a terra, como é o caso das famílias da Comunidade de Nossa Senhora de Fátima do Camutá do Pucurui.


Supremacia Constitucional – Opção pela Posse Agrária - Impossibilidade de usucapião de terras públicas

A supremacia constitucional se manifesta pela impossibilidade de qualquer norma contrariar os seus ditames, seja na sua literalidade ou no sentido de proibição ou permissivo constitucional. Assim, qualquer norma que contrarie a constituição deve ser expurgada do sistema, onde a mais grave contrariedade constitucional é aquela que viola os princípios eleitos pelo constituinte(27).

Assim, qualquer norma que seja incompatível com a Constituição, ou restritiva do seu conteúdo, deve ainda que regulamentadora, ter negada a sua eficácia por incompatibilidade constitucional, ou complementados os seus preceitos pela preceituação constitucional sob pena de todo o sistema tornar-se inseguro e ineficaz, pois que, negada a eficácia da Constituição, todo o resto do ordenamento jurídico torna-se ineficaz por falta de fundamento de validade.

Realmente, a norma constitucional é o centro do qual emana a validade do ordenamento que lhe segue, somente nele se acolhendo o preceito que seja com ela compatível e coerente.

Dizer que não pode existir contrária à constituição, também é dizer que a falta de aplicação das normas e princípios da constituição, negando a sua aplicação também é uma forma de sua violação.

Ao particular não é possível o usucapião de terras públicas, mas lhe cabe somente as vias administrativas da legitimação, da regularização da posse, contratos administrativos de concessão de uso e compra de terras públicas etc, para o acesso ao uso ou aquisição do domínio sobre terras públicas, preenchidos os requisitos de morada habitual e produção na terra, de longa data definidos nos institutos de direito agrário brasileiro.

Desta forma, seria evidentemente inconstitucional se impedir que famílias que tradicionalmente ocupam a terra, uma vez vedado o seu usucapião, ter fechada de forma categórica a possibilidade de regularizar perante o Estado a sua forma de ocupação tradicional da terra, em verdadeiro exercício da posse agrária .

Lembre-se que mesmo Kelsen não se furta apontar, sem olvidar a pureza metodológica de sua teoria, que existe uma relação indireta das normas com a comunidade, refletida pela circunstância de que a conduta normatizada serve ao interesse comunitário ou lesa-o, e isto é decisivo para o fato de que esta conduta se torne objeto de uma norma, e, mesmo no caso dos chamados deveres da pessoa contra si mesma estes são deveres sociais, pois a função das normas é prescrever a conduta de uma pessoa em face de outra pessoa(28).

Desta forma, apesar do caráter lógico-epistêmico do pensamento Kelseniano, mesmo nesta teoria tão valorizada numa perspectiva histórica, ainda que distorcida, de que seja o fenômeno jurídico compreendido e confundido com o seu viés normativo necessário e essencial, a solução para compreensão do direito e a luta por um fundamento especifico (a norma), não deixou de todo ao lado as experiências extra-jurídicas.

Assim, não podemos deixar de reconhecer que existe uma justificação social para o Constituinte optar e destacar e privilegiar as formas de organização social dos trabalhadores e o exercício da posse agrária que representam, assim, esta opção deve ser respeitada e aplicada, pois norma sem eficácia não é norma jurídica, o que seria um absurdo dizer que a Constituição Estadual não é norma.

Corolário do retro apontado, seria inconstitucional vedar-se o acesso à terra a estas comunidades tradicionais de exercer um direito constitucionalmente previsto, uma vez preenchidos todos os requisitos de regular procedimento administrativo para a concessão do direito real de uso da terra.

Optou, portanto o constituinte estadual em abandonar a teoria possessória comum ou civilista centrada em função da propriedade(29). Preferiu apostar na posse agrária, pois optou por permitir o acesso às terras públicas de forma preferencial às pessoas jurídicas de caráter comunitário ou qualquer forma associativa de trabalhadores rurais, desde que provem dentro dos procedimentos administrativos perante o Estado a sua labuta efetiva sobre a terra, exercendo uma verdadeira posse agrária.

O trabalho ou atividade agrária singulariza a posse de Direito Agrário, pois é a essência, o elemento constitutivo básico do Direito Agrário . Como elemento estrutural da posse agrária.

Na lição precisa de Antônio José de Mattos Neto, nos elementos da posse agrária :

"o corpus, o elemento objetivo, é traduzido por atos que exteriorizam a vinculação direta, material, imediata do possuidor à terra. A posse agrária exige uma apreensão imediata e direta sobre a coisa. A relação entre o homem e a terra é direta, física, revelada por atos materiais."(30)

Por outro lado :

"o fator subjetivo da posse, o animus, a intenção é representada pelo trabalho que o possuidor agrário desempenha na terra. O possuidor agrário não importa a intenção imediata de exercer o direito de propriedade como se fosse seu titular (animus domini). Muito menos é detentor da vontade de proceder como habitualmente faz o proprietário (affectio tenendi) . A intenção do possuidor agrário é de trabalhar a terra."(31)

Portanto, esta posse agrária é evidente quando temos famílias que tradicionalmente ocupam a terra, realizam pleito para que a sua posse tradicional seja regularizada perante o Estado, através da sua entidade competente, requerendo que o Estado lhes conceda o a concessão de uso desta terra, permanecendo-lhe a propriedade.

Temos caracterizado um instrumento constitucional e eficaz para tentar fazer estancar a sangria da injusta situação fundiária do Estado, com a concentração de terras em nome de poucos, corrigindo-se uma distorção histórica onde sempre existiu uma opção por se preferir o domínio e a posse civil em detrimento da posse agrária de contornos sociais mais definidos, uma sociedade que preferiu a propriedade estéril que privilegia a forma de manifestação do domínio sobre a terra ao invés do trabalho sobre a terra.

A opção do constituinte pela posse agrária, especialmente pela formas representativas de trabalhadores organizados em caráter comunitário deve ser valorizado e aplicado como meio de afirmação da cidadania, e do princípio de que todo o poder emana do povo, e valorização do valores sociais do trabalho, cidadania, e dignidade humana ( artigo 1o. da CF/88)

Não bastasse a existência de Norma Constitucional a amparar o pedido dos requerentes, devemos lembrar a Lição de Carlos Alberto Bittar, que existe uma forma especial de direito real de uso para fins de uso especial que não previsto no código civil, como direito real de superfície, de caráter resolúvel, para efeito de urbanização, edificação, industrialização, cultivo ou outra finalidade de cunho social, que está regulado pelo Dec-Lei no. 271, de 28.02.67(32)

Desta forma, existe amparo de lei federal para a forma de com concessão pretendida, logo pode muito bem ser aplicado o regime da Decreto-lei 271/67 na concessão do direito pleiteado.

O artigo 1o., parágrafo 1o. da Lei 4.504/64 – Estatuto da Terra – considera a Reforma Agrária como:

Art. 1o. . . . omissis. . . .

§ 1o. Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios da justiça social e ao aumento de produtividade (grifo nosso)

Podemos verificar claramente, que também o Estatuto Federal dá importância aos elementos posse e uso, característicos da posse agrária, como instrumentos para realização da Reforma Agrária, logo, trancar-se o uso da terra de forma sumária à populações que tradicionalmente a ocupam é violação frontal a uma política de reforma agrária.

Neste diapasão temos claramente que o pleito da Comunidade requerente pode ser perfeitamente definido o seu deferimento como uma forma de Realização da Reforma Agrária. Ainda mais, que se tratando a área de terras públicas e devolutas, há mandamento expresso constitucional federal de que a sua destinação deve ser compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188 da CF/88)

Uma vez que a área pública a ser destinada pode ser perfeitamente delimitada como para fins de reforma agrária, temos que mesmo a área pretendida seja de aproximadamente 17.961 ha, foge da necessidade de prévia consulta ao Congresso Nacional, previsto no artigo 188 § 1o. da CF, nos termos do parágrafo 2o. da citada norma constitucional federal.

Importante destacar-se que o projeto para a área vem construído como de Manejo Florestal Comunitário, mas longe do que poderia aparentar o projeto de exploração não se destina a uma específica forma de exploração florestal que podemos chamar de típica, que seria a exploração da madeira, mais a partir de uma análise mais detalhada da viabilidade do projeto, como objeto de avaliação específica do Departamento Técnico do ITERPA e SECTAM, foi constatada a construção de um modelo de exploração econômica da área no que diz respeito aos recursos da floresta, pesca e agricultura de forma integrada, tratando-se de um projeto agro-extrativista.

A muito vem sendo superada o paradigma onde o meio ambiente é visto como algo separado do homem e da sua forma particular com a natureza, onde predomina uma relação de senhor e dominante, ainda, que esta relação tenha modificado o seu enfoque para uma relação de domínio não ditatorial, mas poderíamos dizer democrática e auto sustentável, paradigma que vem sendo construído a partir das conferências mundiais de meio ambiente.

A necessidade de uma noção unitária de ambiente resulta não só da multiplicidade de aspectos que caracterizam as atividades danosas para o equilíbrio ambiental, por conseguinte de uma planificação global, mas também, da necessidade de relacionar o problema da tutela do ambiente com os direitos fundamentais da pessoa humana, preocupação esta inserida na discussão ambiental a partir da alarmante situação de pobreza das populações do terceiro mundo, onde se encontram a maioria das florestas tropicais. Aspecto bem conhecido de nós, amazônidas.

Dentro deste viés podemos perceber claramente que o projeto apresentado se apresenta como abordagem destes aspectos de forma integrada, procurando compatibilizar as necessidades de proteção do meio ambiente global e os interesses de cidadania e defesa dos interesses básicos de dignidade humana dos moradores da Comunidade do Camutá do Pucuruí.

Desta forma, o projeto agro-extrativista apresentado e o seu requerimento não podem ser compreendidos isoladamente como um projeto de agrícola ou de preservação ambiental, mas sim um projeto de paradigma para consolidação de preservação ambiental e desenvolvimento agrícola da comunidade, um projeto agro-extrativista.

Sobre o autor
Ibraim José das Mercês Rocha

advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Direito pela UFPA, secretário do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Pará, ex-diretor do departamento jurídico do Instituto de Terras do Pará (ITERPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ibraim José Mercês. Reforma agrária: titulação coletiva de populações tradicionais do Pará.: Elementos de experiência para um novo paradigma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1673. Acesso em: 21 nov. 2024.

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