1. Introdução
A principal discussão, na atualidade, situa-se no fato de se a pessoa jurídica, fruto da criação do ser humano, pode ou não delinqüir. Não obstante existam algumas discrepâncias, essas discussões podem ser elencadas dentro de duas teorias, ou grupos, tal como ocorria já no início deste século: teorias da ficção e da realidade.
A primeira teoria, que tem suas raízes no direito romano, adotou o princípio indidualístico, consubstanciado na expressão largamente divulgada "societas deliquere non potest". Este posicionamento, após estudos desenvolvidos no período medieval, dentre eles os realizados pelo pós-glosador Bártolo, foi ganhar contornos praticamente definitivos com a genialidade de Savigny em 1840, e, ainda hoje, como observa Fernando Mantovani, é o sistema jurídico predominante na Europa continental, tido como apto para enfrentar a criminalidade societária.
Nos termos postos por esta teoria só o ser humano pode delinqüir, posto que somente ele é dotado de vontade e de capacidade para dirigir essa vontade no mundo exterior, ou, como salta do princípio jusnaturalístico, em todo direito subjetivo existe a causa da liberdade moral, que se encontra ínsita em cada homem. Portanto, como pôs a calvo o próprio Savigny, só o homem, individualmente considerado, é dotado pela natureza de capacidade para ser sujeito de direitos e de personalidade.
A outra teoria, a qual encontra suas raízes na mentalidade germânica, foi trazida até nós principalmente por Gierke, e por seu divulgador maior, o francês Aquiles Mestre. O labor de Mestre, cuja tradução para o espanhol foi feita em 1930 por Quintiliano Saldaña, ingressou profundamente na doutrina latino-americana, e ao tempo em prepondera nos países anglo-saxãos, vai conquistando cada vez mais adeptos em todo o mundo. Em tais países anglo-saxãos a responsabilidade penal dessas entidades, e mui especialmente das sociedades com fim lucrativo, ganhou ainda maior realce com o Model Penal Code de 1962 e com o Proposed Criminal Code Reform Act, de 1981 nos Estados Unidos da América.
Para esta teoria, denominada da realidade ou organicista, a pessoa jurídica é um ser real, cuja vontade não é a somatória das vontades de seus associados ou de seus diretores e administradores. Em verdade, possui uma vontade própria, que segundo Aquiles Mestre, atua sobre as coisas e vai constituir o poder do grupo, poder que o Estado, às vezes, vem limitar e sancionar em nome do direito, com o reconhecimento da personalidade do grupo.
2. Visualização moderna da problemática
Embora não seja nosso propósito estudar aqui, com maior amplitude, a situação pela qual passa a doutrina acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, há de se passar, ao menos, pelas linhas gerais do que se tem nas conclusões de tantos estudos.
Se de um lado se tem por assente a responsabilidade pessoal na teoria da ficção, por outro, fixa-se a responsabilidade social para a da pessoa jurídica. A questão da possibilidade ou não de conduta por parte dos entes, continua a ser questão candente na doutrina, mas não mais se a tem na qualidade de obstáculo intransponível como nas décadas anteriores, pois, com uma certa ousadia, pode-se romper com os preconceitos da ordem dogmática e optar-se por soluções que os novos tempos estão a reclamar. Também já não se há de falar em dificuldades para se efetivar a punição da pessoa jurídica, posto que além da multa, espécie de sanção penal que se tem como de uso prioritário, o direito penal moderno possui uma gama de penas que podem ser utilizadas.
Hodiernamente pode-se afirmar, com absoluta segurança, ser a responsabilidade ou irresponsabilidade das pessoas jurídicas, mais do que um problema ontológico ou dogmático, sendo mesmo uma questão de sistema político-econômico e de prática utilidade e eficiência. O sistema da responsabilidade individual se amolda aos postulados da dogmática tradicional, e, portanto, entre nós, no sistema do Código Penal, toda a legislação em que se adote a responsabilidade penal da pessoa coletiva deve ser realizada em legislações esparsas, ou seja, legislação penal especial, cuja elaboração reclama extrema prudência. Deve-se ter por presente, que mesmo a responsabilidade social é uma concepção bastante complexa, cujos componentes, atribuibilidade e a exigibilidade registram tanto situações de fato, como ingredientes de valoração, com bem diz David Baigún.
A fundamentação em sentido contrário à adoção da tese da responsabilidade penal da pessoa jurídica aponta quatro argumentos principais, os quais não estão a merecer a mesma valoração, mas que reunidos formam uma respeitável argumentação em favor da adoção do princípio da responsabilidade individual, a saber: a) não há responsabilidade sem culpa; b) o princípio da personalidade das penas; c) algumas espécies de penas jamais poderiam ser aplicadas às pessoas jurídicas, como as de prisão; d) a pessoa jurídica é incapaz de arrependimento, não podendo, pois, ser intimidada, emendada ou reeducada.
De tais ponderações, temos as duas primeiras como de grande importância, porém, "é inútil fechar os olhos à tendência crescente para a revisão do velho princípio societas delinquere non potest", no dizer do conhecido penalista lusitano Manuel Antônio Lopes Rocha, quem assim conclui: "E é um facto que, sobretudo nos últimos anos, a ortodoxia clássica sofreu violentos assaltos e são cada vez mais numerosos os juristas que consideram desejável a consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas, pelo menos em matéria de infracções às normas de direito económico, do direito social e da legislação protectora do ambiente."
Percorrendo esta mesma senda, nosso companheiro de trabalho de hoje, o Desembargador Eládio Lecey escreveu: "As infrações contra as relações de consumo, assim como as demais de Direito Econômico (como os delitos ambientais), são infrações de massa, contra a coletividade, atentando contra interesses coletivos e difusos, e não só contra bens individuais como a saúde e a vida das pessoas.
"De nossa parte, em outras oportunidades, já ressaltamos a pluriofensividade de tais condutas, que quanto ao meio ambiente atentam contra bens jurídicos ultra-geracionais, o que "obriga ao rompimento com princípios e regras assentes no direito penal liberal." Também deve ser relembrado que tais providências só devem ser feitas através de leis penais extravagantes, pois, para nós, torna-se impossível tê-las dentro de um código penal vinculado ao princípio da responsabilidade penal individual, como exsurge de quase todas as constituições do mundo. Nossa Carta Magna, no mesmo rumo, afora as ressalvas ainda por análise nestas linhas, fixa-se também na responsabilidade penal individual.
3. A responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição de 1988
O principal questionamento se funda em saber se a Constituição de 1988 consagrou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. A questão tem merecido a atenção dos exegetas e apresenta um placar praticamente empatado.
No tanto quanto nos interessa, temos os artigos 173, § 3º e 225, § 3º, os quais dispõem acerca dos atos praticados contra a ordem econômica e financeira, e contra a economia popular, em relação às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Tais condutas e atividades, quando lesivas ao meio ambiente, sujeitam os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, à sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparação dos danos causados. Neste aspecto surge dúvida no sentido de saber se as sanções para pessoas físicas e jurídicas seriam diversificadas, porém, pretendesse o constituinte assim dispor, teria empregado apenas e tão somente a expressão respectivamente. Não o fez, e, portanto, possibilitou a duplicidade de interpretações, as quais, agora, com o advento da Lei n.º 9.605/98 perdem a importância, tornando-se questões bizantinas, pois, o legislador ordinário, optou pela responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais.
Em verdade, ao fixar a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crime praticado contra o meio ambiente, o legislador ordinário atendeu às Recomendações do 15º Congresso da Associação Internacional de Direito Penal no Rio de Janeiro, realizado de 4 a 10 de setembro de 1994. Acresce salientar, ter o legislador brasileiro optado pelo sistema de RESPONSABILIDADE PENAL CUMULATIVA, isto é, a responsabilidade do ser coletivo não exclui a de seus diretores e administradores, tal como previsto em lei ou em estatuto. Dessa maneira, não descura a lei da conexão entre os fatos praticados pela pessoa jurídica e as vantagens ou proveitos que deles podem decorrer para as pessoas físicas supra mencionadas.
4. Das penas previstas para as pessoas jurídicas na lei ambiental
A doutrina tem preconizado ser a multa a pena por excelência para a punição das pessoas jurídicas. Para estas, e para as pessoas físicas, na legislação brasileira recente, na aplicação da pena de multa o juiz deve atentar para a situação econômica do infrator (art. 6º, III). Ainda neste sentido, diz o artigo 18, do mesmo diploma, que a multa será calculada segundo os critérios do Código Penal, e, em se revelando ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada em até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida. Por outras palavras, permite-se, assim, em caso da previsão tornar-se insuficiente diante da vantagem econômica auferida com a prática do crime, seja aumentada até três vezes por essa razão. Dessarte, a pena máxima de multa, adotado o critério do dia-multa do Código Penal, pode atingir R$ 734.400,00, no seu grau máximo ( 5 x salário mínimo x 360 dias x 3 ), a qual não poderá ser majorada, ainda quando concorrerem as circunstâncias agravantes do art. 15. Entendemos ter sido prudente o legislador ao fixar tal sanção pecuniária máxima, pois que tais valores podem se apresentar significativos até para as empresas de grande porte, tornando-se a pena apta para cumprir as funções de reprovação e prevenção geral e especial. Dentro desse mesmo critério, é verdade, também é prevista a prestação pecuniária como pena restritiva de direito (art. 8º, IV), cujos limites foram fixados entre R$ 136,00 (salário mínimo) e R$ 48.960,00 (1 salário mínimo x 360) art. 12.
A lei prevê também para as pessoas jurídicas outras espécies de sanções, tais como as próprias penas restritivas de direitos, previstas a suspensão parcial ou total de suas atividades, a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, e, a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (art. 22, incisos I, II e III respectivamente). A suspensão será aplicada quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo as disposições legais ou regulamentares relativas ao meio ambiente (§ 1º); a interdição quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar (§ 2º); a proibição de contratar como Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos (§ 3º).
O artigo 23 prevê como pena restritiva de direito a prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica, a qual será executada pelo custeio de programas e de projetos ambientais ( inciso I); execução de obras de recuperação de áreas degradadas (inciso II); manutenção de espaços públicos (inciso III) e, contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas (inciso IV).
A mais grave das sanções para a pessoa jurídica está contemplada pelo artigo 24: a liquidação forçada, aplicada essa pena quando a pessoa jurídica é constituída ou utilizada, com o fim, preponderantemente, de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido na lei ambiental. Seu patrimônio, diz o artigo citado, será considerado instrumento de crime, e como tal, perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.
A liquidação forçada, em verdade, constitui sanção equivalente à pena de morte para a pessoa física, tivesse esta sido contemplada pelo Código Penal ou por outras leis penais civis. É senão "a morte da pessoa jurídica".