4 - PARTE CONCLUSIVA
As leis são amostras de comportamento que traduzem a consciência social de uma era e de um povo. O verdadeiro direito é aquele que anda de mãos dadas com a justiça social e com a realidade que desponta, para não se apartar de vez do homem e fenecer solitária.
O Direito destina-se a disciplinar as relações humanas, para o convívio harmônico e para o bem estar do homem, como de resto todas as coisas a ele se dirigem. Nada tem valor, senão estiver em função do ser humano. Na verdade, o universo tem sentido, para o homem; os bens e as coisas existem para satisfazerem suas necessidades. Assim, também as regras.
O Brasil, desde o nascedouro da República, no final do Século XIX, registra, no Texto Constitucional, a preocupação com o infortúnio daqueles que são vítimas de preconceito e discriminação, que encontraram neste século um ninho fértil para o seu desenvolvimento e, paradoxalmente, prosseguem célere, no final deste milênio, disfarçados em perigosos fundamentalismos religiosos, limpeza de etnias e até segregação social e biológica, que, na verdade, oculta todas as outras e devem ser combatidas a todo custo.
Deu-se um passo decisivo, no campo legislativo infra constitucional, quando, então, a vítima passou a ser lembrada, graças à vitimologia, cujas bases foram lançadas, por Benjamim Mendelsohn em 1945, (58) nos seus estudos de Sociologia Jurídica e teve em Drapkin um dos seus mais bem sucedidos estudiosos, seguindo os passos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo discurso preambular é uma das peças mais bem polidas pelo homem, in verbis:
"Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade da palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum." (59)
E o seu artigo II dispõe que:
"Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição",
conformando-se com o artigo I, molde primário de todos os demais dispositivos, com a seguinte dicção:
"todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade."
Por ser um País imigratório, que forjou sua nação e o povo, pelo amálgama de povos, os mais diversos, de etnias, procedência, credos, cor e religião distintos, os direitos e garantias fundamentais de brasileiros e estrangeiros mereceram do constituinte extremo apreço, desde o despertar da República.
O preconceito e a discriminação foram objeto de disciplina, no plano maior das leis, ganhando realce, na última Constituição, precedida que foi de ampla discussão, com a participação de grandes parcelas do povo.
A prática do racismo continuou a ser considerada crime, com força constitucional, agasalhada na Carta, que inscreveu, entre os princípios fundamentais, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e a regência por princípios, nas relações internacionais, de repúdio intransigente ao racismo.
Esses princípios viram-se transformados em norma positivo - constitucional, consubstanciando direitos e garantias, encimando a declaração impositiva de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, reforçando que a lei punirá qualquer discriminação, que atinja os direitos e liberdades fundamentais, e que a lei criminal punirá a prática de racismo.
O artigo 5º, inciso VI, abraça, ainda, uma garantia de invulgar interesse e importância, tornando a liberdade de consciência e de culto inviolável e assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
Mas esse Documento, de rara grandeza, não para aí.
O artigo 210 determina que o ensino religioso, conquanto de matrícula facultativa, será ministrado em horário normal das escolas públicas de ensino fundamental (leia-se o ensino religioso, qualquer que seja, sem restrição, porque esta norma deve ser lida em consonância com as regras estudadas e no contexto do sistema).
A Constituição, ao reconhecer às comunidades indígenas o uso de suas línguas maternas e os processos próprios de aprendizagem, consagrou uma notável inovação (60) , como forma de preservar sua cultura.
O Estado, cumprindo a ordem constitucional, deverá oferecer proteção não só às manifestações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras, como também às de outros grupos que contribuem para o processo da nacionalidade. É tão significativo este fato que a lei deverá dispor sobre as datas de alta relevância dos diversos agrupamentos étnico - sociais (61).
A manifestação cultural faz-se presente, através da criação artística, distinguindo-se os concertos, as danças, a música, exposições, literatura etc.
Ao índio, destinou, ainda, o Constituinte um capítulo inteiro, reconhecendo-lhes sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Da Lei Afonso Arinos até a Lei 9459, passando pela legislação anti-escravagista, há um longo caminho percorrido e um intenso esforço produzido, no sentido de concretizar os postulados da igualdade e da preservação de uma vida livre de preconceitos e discriminação, nem sempre feliz, todavia pontilhado de relativo sucesso, no plano legal, visando a harmonização dos diversos grupos e segmentos da sociedade, para, de vez por todas, comungar-se com a voz dos Salmos, que não distingue entre seus filhos, que os considera todos iguais, todos irmãos, ao proclamar:
"Ele ama a retidão e a justiça; a Terra está cheia de benignidade do Eterno... O Eterno olha lá do céu, vê todos os filhos dos homens. Lá do lugar da Sua habitação, dirige Seu olhar para todos os habitantes da Terra. É Ele quem forma o coração de todos eles, quem considera todas as suas obras (62) ."
NOTAS
(1) Cf. História dos Judeus, de Paul Johnson, Imago Editora, Rio de Janeiro, 3ª edição,1989.
(2) Para um estudo mais acurado, consultem-se o magnífico trabalho de José Lázaro Alfredo Guimarães, Conflitos Raciais no Direito Brasileiro, apresentado em janeiro de 1994, no Afro - American Studies Program da Brown University, Providence, RI, in Ciência Jurídica ad litteris et verbis, ano IX, volume 66, novembro/dezembro de 1995, p. 274 a 28883; Comentários aos incisos XLII e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de Dagoberto Romani, Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, volume 20, números 1 e 2, dezembro de 1991, pp. 245/6; Democracia Racial e Luta Anti - racista e Racismo e Justiça no Brasil, de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, editados na TEIA JURÍDICA (INTERNET); e, de Jorge da Silva, Direitos Civis e Relações Raciais no Brasil, LUAN editora, Niterói, RJ, 1994, 1ª edição.; Em Costas Negras - Uma História de Tráfico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro, de Manolo Florentino, Companhia das Letras, São Paulo, 1997; História dos Judeus em Portugal, de Meyer Kayserling, Livraria Pioneira Editora, tradução de Gabriele B. Corrêa da Silva e Anita Novinsky, São Paulo, 1971; Os Judeus no Brasil Colonial, de Arnold Wiznitzer, tradução de Olivia Krahenbuhl, Livraria Pioneira Editora e Editora Universidade de São Paulo, São Paulo, 1960; de Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, Livraria Martins Fontes Editora, São Paulo, 2ª edição brasileira, abril de 1987; Maria Luíza Tucci Carneiro, Preconceito Racial no Brasil Colônia, São Paulo, 1993.
(3) Cf. Ordenações Afonsinas, Livro II, Título LXVII, in O tempo dos Judeus, de Elias Lipner, Livraria Nobel S/A Editora - Distribuidora, Secretaria de Estado da Cultura, São Paulo, 1982.
(4) Mouros livres, em oposição aos mouros escravos, prisioneiros de guerra (in op. cit., p. 243, remissão 1.
(5) Cf. Ordenações Manuelinas, Livro II, Título XLI, op. e aut. cits.
(6) Cf. de Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Especial, volume I, 9a edição, Forense, 1987, pp. 79 a 90.
(7) Cf. decreto publicado no DOU de 22 de maio de 1997, Seção 2.
(8) Cf. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, de Pimenta Bueno, Senado Federal, Brasília, 1978.
(9) Cf. Constituição Federal Brazileira - Comentários, Rio de Janeiro, Typographia da Companhia Litho - Typographia, em Sapopemba, 1902, pp. 297 a 308.
(10) Cf. artigo 5º, XLII.
(11) Cf. Comentários à Constituição, de Ylves José de Miranda Guimarães, Forense, Rio, 1989, p. 68; Comentários à Constituição Federal, 1º volume, Edições Trabalhistas, 1989, p. 83, de Eugênio R. H. Lobo e Júlio C. º Leite; Comentários à Constituição, 1O volume, Freitas Bastos, 1990, pp. 270 a 272, de Alcino Pinto Falcão; Comentários à Constituição Federal de 1988, 1O volume, p. 60, de Roberto B. de Magalhães.
(12) Cf. artigo , XLIII. Consultem-se, sobre crimes hediondos, de João José Leal, Crimes Hediondos, Atlas, 1996; Alberto Zacharias Toron, Crimes Hediondos, Revista dos Tribunais, 1996; Valdir S\nick, Edição Universitária de Direito, São Paulo, 1993, e Alberto da Silva Franco, Crimes Hediondos, Revista dos Tribunais, 3ª edição, 1994.,
(13) Cf. Conflitos raciais cit.
(14) Cf. . op. cit., p. 143.
(15) Cf. Comentários à Nova Constituição Brasileira, São Paulo, Atlas, 1989, p. 123.
(16) Cf. Revista dos Tribunais 362/264.
(17) Cf. de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 2O volume, 1989, p. 221.
(18) Cf. A Gentália do Império, in Correio Braziliense, de 8 de junho de 1997, p. 5, Parte DOIS do jornal.
(19) Cf, Projeto de Lei da CD 1240 - A, de 1995, de autoria do Deputado Pedro Paim, do PT - RS, transformado na Lei 9459. O Relator, Deputado Jarbas Lima, teve seu parecer aprovado, por unanimidade, quanto à constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e, no mérito, foi admitido, nos termos do substitutivo aprovado (DCD 4.9.96. p. 24632)., Vide a justificativa ao projeto original, uma verdadeira aula de humanismo, com o histórico dos que colaboraram para o êxito deste projeto (Advogados Bento Maia da Silva e Luiz Alberto da Silva), no Diário do Senado Federal de de 30 de novembro de 1996, p. 1360, e no Diário da Câmara dos Deputados de 4 de setembro de 1996, p. 24632.
(20) Cf. artigo 1º da Lei 7716, com a redação dada pela Lei 9459. Cf., de Cretella Jr., Comentários á Constituição de 1988, ,pp.483/4.
(21) Cf., de Basileu Garcia, Instituições de Direito Penal, Max Limonad, 1954, volumes I, Tomos I e II, e, de Paulo José da Costa Júnior, Comentários ao Código Penal, Saraiva, 1996.
(22) Cf. o Projeto de Lei da Câmara dos Deputadas 668/88, do Deputado Carlos Alberto CAO, do PDT do Rio de Janeiro (no Senado PLC 52/88), que deu origem à Lei 7716/89, sancionadas, pelo Presidente da República, com vetos (DCN de 5.4.89, p.904).
(23) Cf. Projeto de Lei, da Câmara dos Deputados, 5239/90, do Deputados Ibsen Pinheiro, tendo como relatro, o Deputado, Sigmaringa Seixas.(no Senado 66/90).Transformou na Lei 8081/90 (DCN de 30.10.90, p. 11367).
(24) Cf. PL da Câmara dos Deputados 3261//92, do Deputados Alberto Goldman (no Senado PLC 96/93), transformado na Lei 8882/94.
(25) Cf. artigo, Folha de São Paulo, transcrito na página jurídica da AMATRA X (INTERNET), em 31 de maio de 1997.
(26) Cf. Inciso XLII do artigo 5º.
(27) Cf. inciso XXXIX do artigo 5O.
(28) Cf., de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, Dos Delitos e das Penas, Biblioteca Clássica, Volume XXII, 6ª edição.
(29) Consultem-se, de Paulo José da Costa Júnior, Comentários ao Código Penal, Saraiva, 4ª edição, 1996; de Luiz Vivente Cernicchiaro e Paulo José da Costa Júnior, Direito Penal na Constituição, Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1991.
(30) Neste sentido, Francisco de Assis Toledo, in Direito e Justiça, Correio Brazileinse, de 26 de maio de 1977, p.3.
(31) Cf. op. cit., p. 41.
(32) Cf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2A edição, Editora Nova Fronteira, RJ, 1986.
(33) Neste sentido, Orlando Soares, in Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil, Forense, Rio de Janeiro, 1990, p. 125.
(34) Cf. Manual de Direito Internacional Público, Saraiva, 1980, pp. 70-71.
(35) Cf. op. cir., p. 81.
(36) Cf. artigos 1º e 40 da Lei 8987, de 13 de fevereiro de 1995 e a Lei 9074,de 7 de julho de 1995.
(37) Cf. Caio Tácito, Meirelles Teixeira, Carlos Pinto Coelho Motta, citados por Toshio Mukai, in Concessões, Permissões e Privatizações de Serviços Públicos, Saraiva, 2ª edição, 1997, pp. 17-18.
(38) Neste sentido, Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 17ª edição, 1992,p. 339.
(39) Cf. Crimes na Licitação, Editora NDJ, 1996, P. 112, e Dos Crimes da Lei de Licitações, Saraiva, 1994, p. 37, respectivamente.
(40) Cf. op. cit., p. 63.
(41) Cf. Direito e Justiça, do Correio Braziliense, de 114 de abril de 1997, p. 1.
(42) Cf. Dicionário Aurélio cit.
(43) Cf. Dicionário cir.
(44) Cf. Lições de Direito Penal, Forense, 9ª edição, 1987, Parte Especial, Volume I, p.191.
(45) Cf. Damásio de Jesus, in Código Penal Anotado, Saraiva, 2A edição, 1991, p. 384, e ac. inserto na Revista dos Tribunais 401/298.
(46) Cf. Julgados 91/402.
(47) Cf. Celso Delmanto, Código Penal Comentado, Renovar, 3A edição, 1991, p. 242.
(48) Cf. decisões insertas na Revista dos Tribunais 606/414 e 425/345, respectivamente.
(49) Redação dada pelo artigo 2º da Lei 9459, de 13 de maio de 1997.
(50) Neste processo, funcionaram, como assistentes da acusação, o Dr. Mauro Juarez Nadvorny e a Federação Israelita do Rio Grande de Sul.
(51) Leia-se, a propósito, o excelente trabalho de Gilmar Ferreira Mendes, Colisão de Direitos Fundamentais, na Revista de Informação Legislativa 121, pp. 297301.
(52) Cf. Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, Limitada, 2ª edição, p. 224.
(53) F. Novos crimes e novas penas no Direito Penal, 1992.
(54) Cf. Revista dos Tribunais, 714/329-38.
(55) Cf. AC 115463-3,5a Câmara, Rel. Des. Poças Leitão, em 4 de março de 1992, apud Ciência Jurídica cit., p. 279.
(56) Os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Su0perir do Trabalho acordaram, por maioria, negar provimento ao recurso, mantendo-se a reintegração deferida, vencido o Ministro Nelson Antônio Daiha, relator. Reformulou o voto o Ministro Valdir Righeto, que rdigiu o acórdão. Participou, também o Subprocurador - Geral do Trabalho, João Batista Brito Pereira. Decisão de 7 de outubro de 1996.
(57) Racismo, Gladston Mamede, Pandectas - Boletim Juridico, Numero 22, 11 a 20 de junho de 1997, Organizacao: Gladston Mamede, Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG
(58) Cf. o excelente artigo de Paulo Tonet Camargo, in Direito & Justiça cit., de 2 de junho de 1997, e o trabalho do pranteado jurista, Laércio Pellegrino, Abuso do Poder, exposto no e debatido, no 6º Simpósio Internacional de Vitimologia, realizado, em Jerusalém, de 28 de agosto a 1º de setembro de 1988, in Revista dos Tribunais, 637/369.
(59) Cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em Resolução da III Sessão Ordinária a Assembléia das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
(60) Cf. A Constituição na Visão dos Tribunais, pelo Tribunal Regional a 1ª Região, sob a direção do Juiz Tourinho Neto, 3/1348.
(61) Cf. artigos 210, 215, 216, ,§ 5º.
(62) Cf. Salmo 33.