I – Notas Introdutórias
Nos últimos anos verificou-se a manifestação da ânsia arrecadatória do governo federal a partir do manejo das Contribuições Sociais, que ganharam maior relevância em função de não se vincularem à regra da repartição das receitas tributárias. Assim é que o aumento da arrecadação devido à incidência dessa espécie tributária não atraiu a necessidade de divisão com os demais entes da federação brasileira. A onerosa contrapartida não se fez presente ao erário federal, ainda que em detrimento dos Estados e dos Municípios.
Nesse cenário é que adveio a majoração de alíquotas da Contribuição ao PIS e da COFINS, perpetrado por medidas provisórias posteriormente convertidas nas Leis n.º 10.637/02 e 10.833/03, cujo intuito consistiu – como não poderia deixar de ser em terras tupiniquins – no aumento da carga tributária e consequente elevação da arrecadação federal. Ao argumento de que se tratava, na verdade, de uma adequação do arquétipo normativo das exações em comento às necessidades do setor empresarial, foi vinculado ao aumento de alíquotas a sistemática da não-cumulatividade, fazendo crer ao mais ingênuo contribuinte que a carga tributária manter-se-ia estável.
A modificação no arquétipo normativo da Contribuição ao PIS e da COFINS, no entanto, gerou divergências em relação à sua aplicação na prática, motivando a edição de inúmeras normas infralegais pela Receita Federal do Brasil com o objetivo de dirimi-las, invariavelmente restringindo a eficácia da sistemática da não-cumulatividade aplicada ao recolhimento das aludidas exações. Assim é que se consignou posicionamento no sentido de que consistiria em mera técnica de abatimento modulável a critério do legislador ordinário e de que o conceito de insumos passíveis de gerar créditos dentro dessa nova sistemática de recolhimento da Contribuição ao PIS e da COFINS seria similar ao do Imposto sobre Produtos Industrializados.
O posicionamento fazendário já era até esperado, na medida em que se trata do maior interessado no aumento da arrecadação promovido pela majoração de alíquotas da Contribuição ao PIS e da COFINS, que certamente torna-se mais significante caso seja limitado o amplo direito creditório dos contribuintes. O intrigante é que se verifica a validação, especialmente pelos Tribunais Regionais Federais, dado que a questão ainda não foi apreciada pelas Cortes Superiores, da interpretação dada pela Receita Federal do Brasil.
O presente trabalho objetiva, portanto, contrapor os argumentos adotados pela segunda instância de julgamento para validar as restrições impostas a não-cumulativa da Contribuição ao PIS e da COFINS ao consistente entendimento doutrinário formado em torno do tema, de forma a revelar as inconsistências presentes no posicionamento jurisprudencial até o momento dominante e auxiliar a condução da problemática perante as Cortes Superiores.
II – Regime Jurídico da Contribuição ao PIS e da COFINS
Em apertada síntese, destaca-se que o regime jurídico da Contribuição ao PIS e da COFINS sofreu sensível modificação com o advento das Leis n.º 10.637/02 e 10.833/03, as quais instituíram sistemática de incidência diferente daquela até então regulada desde a concepção dessas exações, veiculada pelas Leis Complementares n.ºs 07/70 e 70/91 e pelas Leis n.ºs 9.715/98 e 9.718/98.
A incidência cumulativa deu lugar à incidência não-cumulativa para determinados contribuintes, em regra aqueles sujeitos à apuração do Imposto sobre a Renda com base no lucro real, com a fixação, pelos novos Diplomas Normativos, da possibilidade de desconto de créditos acumulados nas hipóteses legalmente previstas, destacando-se os bens e serviços utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda.
A despeito de inicialmente a não-cumulatividade ter sido atrelada ao arquétipo normativo da Contribuição ao PIS e da COFINS no âmbito legal, a modificação do regime jurídico respectivo ganhou concretude apenas posteriormente, com a edição da Emenda Constitucional 42/2003, a qual inseriu ao artigo 195 da Constituição Federal o parágrafo 12º, prevendo que "a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuintes incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas".
Ao regulamentar em especial o que poderia se entender como insumo para o exercício do direito de crédito da Contribuição ao PIS e da COFINS, foram editadas pela Secretaria da Receita Federal, atual Receita Federal do Brasil, as Instruções Normativas 247/2002 e 404/2004, as quais estipularam que o seu conceito deveria contemplar, na fabricação ou produção de bens destinados à venda, apenas "as matérias primas, os produtos intermediários, o material de embalagem e quaisquer outros bens que sofram alterações, tais como o desgaste, o dano ou a perda de propriedades físicas ou químicas, em função da ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação", e na prestação de serviços, "os bens aplicados ou consumidos na prestação de serviços".
Assim é que, da análise da legislação de regência do tema, à luz das regras infralegais, a apuração de créditos da Contribuição ao PIS e da COFINS apenas dar-se-ia de forma válida quando da efetiva incorporação do insumo ao processo produtivo de fabricação e comercialização de bens ou prestação de serviços, no que se torna semelhante às diretrizes estipuladas a esse respeito pelo artigo 164 do Decreto n.º 4.544/02, aplicáveis ao Imposto sobre Produtos Industrializados. Restou limitado, portanto, o pleno direito ao creditamento dos contribuintes.
III – Cenário Jurisprudencial
A restrição ao direito de créditos da Contribuição ao PIS e da COFINS foi levada à apreciação do Poder Judiciário, com enfrentamento direto das Instruções Normativas SRF n.ºs 247/2002 e 404/2004. As causas foram submetidas, em grau recursal, ao crivo dos Tribunais Regionais Federais, aonde as regras infralegais encontraram guarida pois estariam em consonância com as Leis n.ºs 10.637/02 e 10.833/03. Dado o fator tempo, que se sabe ser longo quando aplicado ao trâmite processual, as Cortes Superiores ainda não se manifestaram a respeito da validade desse posicionamento jurisprudencial.
Colhe-se dos julgados firmados no âmbito da segunda instância a adoção de entendimento segundo o qual a não-cumulatividade atrelada ao regime jurídico da Contribuição ao PIS e da COFINS consiste em mera técnica de abatimento, diferente daquela sistemática vinculada à apuração do ICMS e do IPI, na medida em que inexiste para aquelas a dicção constitucional que prescreve a necessidade de compensação do "que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores".
Seguindo a trilha desse raciocínio, convencionou-se considerar o conceito de insumo como sendo aquele descrito pela legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados, assim considerado como todo bem que se aglutina ao processo de transformação da qual resultará a mercadoria industrializada, tais como o desgaste, o dano ou a perda de propriedades químicas ou físicas, em função da ação diretamente aplicada ao produto em fabricação.
De forma mais específica à Contribuição ao PIS e à COFINS, o conceito de insumo deveria ser entendido, nesse contexto, como sendo representado apenas pelos elementos efetivamente inseridos/aplicados na produção de mercadorias, na comercialização de produtos ou na prestação de serviços. Assim, não haveria direito ao creditamento apurado, por exemplo, sobre despesas com o transporte de mercadorias (frete) ou com o convênio médico pago em favor dos funcionários, haja vista tratar-se de custo administrativo, e não operacional.
De forma concreta, o Tribunal Regional Federal da 1a. Região, ao apreciar essa questão, asseverou que "os produtos de limpeza, desinfecção e detetização têm finalidades outras que não a integração do processo de produção e do produto final, mas de utilização por qualquer tipo de atividade que reclama higienização, não compreendendo conceito de insumo, que é tudo aquilo utilizado no processo de produção e/ou prestação de serviço, em sentido estrito, e integra o produto final". [02]
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por sua vez, explicitou entendimento no sentido de que "a adoção do princípio da não-cumulatividade para o PIS e a COFINS não significa dizer que todas as despesas da empresa, estejam ou não relacionadas às suas atividades, podem gerar créditos, sem nenhuma limitação. Nessa medida, podem ser abatidos na etapa seguinte apenas os créditos previstos na legislação de regência do PIS e COFINS não-cumulativos", sendo que, nesse contexto, "insumo é tudo aquilo que é utilizado no processo de produção e, ao final, integra-se ao produto, seja bem ou serviço. Desse modo, a vigilância e a limpeza, a publicidade, o aluguel e a energia elétrica não são insumos dos prestadores de serviços". [03]
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por fim, consignou acerca do tema que
"as leis que instituíram o PIS e a COFINS não cumulativos apenas autorizam a apropriação de créditos calculados em relação a bens e serviços utilizados como ‘insumos’ na fabricação de produtos destinados à venda, sem explicitar qual o alcance desse termo. Isso não significa, porém, que se possa caracterizar como insumo todos os elementos, inclusive os indiretos, necessários à produção de produtos e serviços, como mão de obra a energia elétrica. Embora o sistema de não-cumulatividade das contribuições seja distinto do aplicado aos tributos indiretos, como o IPI (...), entendo que em relação aos insumos há semelhança de tratamento, na medida em que somente pode ser assim considerado o que se relaciona diretamente à atividade da empresa, com restrições, portanto". [04]
Em oportunidade diversa, asseverou que "há de se reconhecer que as embalagens de acondicionamento utilizadas especificamente para transporte das mercadorias industrializadas não se enquadram na definição de insumos (...) porquanto tais embalagens não foram utilizadas no processo de industrialização e transformação do produto final". [05]
Não obstante o exposto, cabe transcrever o seguinte trecho decisório que sintetiza as premissas ora abordadas:
[06]"Quanto à controvérsia especificamente estabelecida nesta ação, temos que fazer as seguintes considerações:
a) a regra da não-cumulatividade estabelecida para as contribuições sociais pela Emenda Constitucional n.º 42, de 19.12.2003, diverge daquela previsão constitucional originária (IPI e ICMS), depende de definição de seu conteúdo pela lei infraconstitucional, não se extraindo do texto constitucional a pretendida regra de obrigatoriedade de dedução de créditos relativos a todo e qualquer bem ou serviço adquirido e utilizado nas atividades da empresa (...);
b) estando as regras da não-cumulatividade das contribuições sociais afetas à definição infraconstitucional, o conceito de ‘insumo’ para definição dos bens e serviços que dão direito a creditamento na apuração do PIS e COFINS deve ser extraído no inciso II do artigo 3º das Leis n.º 10.637/02 e 10.833/03, (...) não havendo direito de creditamento sem qualquer limitação para abranger qualquer outro bem ou serviço que não seja diretamente utilizado na fabricação dos produtos destinados à venda ou na prestação dos serviços."Em resumo, observa-se que o posicionamento jurisprudencial ora examinado pressupõe como válida a possibilidade de regulamentação da sistemática da não-cumulatividade pelo legislador ordinário quando aplicável à Contribuição ao PIS e à COFINS, inclusive de forma a restringi-lo, sendo pertinente concluir, com base na adoção dessa premissa, que os insumos passíveis de creditamento, a teor das Leis n.ºs 10.637/02 e 10.833/03, seriam apenas aqueles consumidos no processo operacional dos contribuintes. Por consequência, as regras descritas nas Instruções Normativas SRF n.ºs 247/2002 e 404/2004 foram consideradas adequadas ao regime jurídico aplicável à nova sistemática de recolhimento da Contribuição ao PIS e da COFINS.
IV – Análise da Possibilidade de Disciplina Legal da Não-Cumulatividade
Inicialmente, anota-se que a sistemática da não-cumulatividade aplicada às Contribuições Sociais foi alçada ao altiplano constitucional por meio da Emenda n.º 42/2003, a qual inseriu o parágrafo 9º ao artigo 195 da Carta Política. Por coerência hermenêutica, a consequência que decorre consiste na adoção de entendimento no sentido de que se trata daquela mesma regra da não-cumulatividade disposta no texto constitucional com especial ênfase ao IPI e ICMS, devendo ser, assim, interpretada.
Waldir Luiz Braga e Valdirene Lopes Franhani asseveram a esse respeito que "a partir da EC n.º 42/03, o texto constitucional incorpora a não-cumulatividade do PIS e da COFINS, a qual não pode mais ser analisada fora do seu contexto. Vale dizer, a simples menção do temo ‘não cumulativas’ pelo texto constitucional delimita o campo de atuação da lei". [07]
Com essa premissa devidamente definida deve-se recordar que a regra da não-cumulativade encontra raízes no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), peculiar ao sistema tributário europeu e de alguns países da América Latina. Seu desenvolvimento, fomentado principalmente na Europa, passou por três diferentes fases. A primeira, com a reunião de todos os tributos sobre o consumo em um único imposto, incidente sobre o valor agregado. A segunda, com a percepção dos entes estatais de que ao invés de várias incidências fiscais, o IVA passou a proporcionar apenas uma incidência, ao final do ciclo produtivo, o que se revelou prejudicial aos interesses fazendários, na medida em que apenas o último contribuinte da cadeia acabava recolhendo o tributo, postergando a arrecadação e favorecendo a sonegação. Por essa razão, passou-se a terceira fase, com a instituição de uma sistemática de pagamento onde todos os contribuintes inseridos nas operações passíveis de tributação pelo IVA eram obrigados a se sujeitar à incidência fiscal, porém, com a aplicação da regra da não-cumulatividade, de forma a não desvirtuar a essência não cumulativa do imposto.
A partir dessa concepção foi inserida no cenário jurídico brasileiro a regra da não-cumulatividade de forma a evitar a incidência em cascata dos tributos incidentes sobre a produção e o consumo. Ao longo dos anos, e contam-se vários, a doutrina lapidou o conceito da não-cumulatividade de forma a consolidar o entendimento de que se trata de técnica responsável a promover, a cada etapa subsequente do processo produtivo, a respectiva dedução do valor do tributo que incidiu nas etapas anteriores, qualificando-a como verdadeiro princípio.
Conforme explica Sacha Calmon Navarro Coelho "é justamente pela sua observância que cada agente somente recolhe ou deveria recolher o imposto sobre o valor que adicionou ao produto, pois o valor que foi pago na operação anterior lhe dá um ‘crédito’ a ser abatido do ‘débito’ do imposto."
[08]Nesse mesmo sentido anota Fabiana Del Padre Tomé que "somente se poderá falar em não-cumulatividade se ausentes limitações ou restrições ao aproveitamento do tributo relativo aos negócios jurídicos anteriores. Apenas se amplo e irrestrito o direito ao crédito, o tributo não se acumulará. Caso algum tributo devido em uma das etapas do ciclo não seja levado em conta nas subsequentes, haverá sobreposição do ônus tributário, sendo inadmissível falar-se em não-cumulatividade".
As conclusões expostas decorrem da própria essência do princípio da não-cumulatividade, sendo desnecessário falar que não partem unicamente da prescrição contida no texto constitucional, descrita apenas em relação ao IPI e ao ICMS, no sentido de que o imposto "será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores". O termo tem significado autônomo, o qual, apesar de correlacionar-se com a mencionada expressão, independe dela para ser definida.
Afinal, de acordo com Aires Barreto, "só há tributo não cumulativo se for possível compensar, abater, todos os gatos necessários à prestação do serviço, ainda que esses gastos não se consumem (com ele) ou não lhe tenham sido diretamente aplicados", [10] o que se estende, obviamente, à industrialização e à comercialização de bens.
Assim é que a integral possibilidade de dedução do imposto recolhido em operações anteriores aplica-se inclusive às Contribuições Sociais, ainda que o texto constitucional não as vincule ao princípio da não-cumulatividade de forma tão minuciosa quanto faz em relação ao IPI e ao ICMS. A rigor, não há como se conceber a existência de tributo não-cumulativo – sejam os próprios IPI ou o ICMS, sejam os impostos de competência residual da União ou as Contribuições Sociais –, que permita a incidência em cascata do ônus fiscal, ainda que parcial.
Por essas razões é que a não-cumulatividade não pode ser afetada por legislação infraconstitucional que pretenda restringir a sua eficácia normativa plena. Conforme ratifica Roque Antonio Carrazza, "operando sobre uma base constitucional, o legislador não pode manipular livremente o princípio da não-cumulatividade."
[11] Geraldo Ataliba e Cléber Giardino também auxiliam a compreensão do exposto ao afirmarem acerca do amplo e irrestrito direito ao creditamento que se trata do "critério constitucional pelo qual, juridicamente, se constrói a não-cumulatividade desses tributos. Em cada operação é facultada e garantida uma dedução, um abatimento." [12]Com base nessas considerações decorre, com hialina clareza, a conclusão de que o princípio da não-cumulatividade apresenta interpretação única, impossível de ser modulada pelo legislador ordinário sem ofensa ao texto constitucional, assertiva essa que deve nortear, a partir do advento da Emenda Constitucional n.º 42/2003, o arquétipo normativo da Contribuição ao PIS e da COFINS.