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Responsabilidade civil do Estado em relação às vítimas de balas perdidas

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Agenda 30/07/2010 às 13:35

7. FOCO DA ANÁLISE

Dentro do sobredito panorama, o foco da análise no presente estudo será baseado em situações hipotéticas que representam a realidade dos casos de balas perdidas. Assim, para fins didáticos, serão tomados por base as seguintes situações: a) bala perdida oriunda da arma de um policial em confronto com criminosos; b) bala perdida oriunda da arma de um criminoso em confronto com policiais; c) bala perdida oriunda de confronto entre facções criminosas rivais, sem a presença da polícia; d) bala perdida advinda de arma e local incertos.

Referidas situações serão discutidas com base nos pressupostos da responsabilidade civil apresentados, bem como nos ditames constitucionais, a fim de que se conclua pela solução mais justa em cada caso.

Além disso, considerando-se que a maior quantidade de casos envolvendo balas perdidas ocorre no Estado do Rio de Janeiro, conseqüentemente, é no Tribunal de Justiça do referido Estado que está o maior número de julgados a respeito do tema. Em razão disso, analisar-se-á a posição do aludido tribunal no concernente aos casos propostos [17].

Por fim, analisar-se-á a posição do Supremo Tribunal Federal, que, como Corte Maior do país, tem grande influência sobre o entendimento do tema nos tribunais dos Estados.


8. SOLUÇÃO DOS CASOS APRESENTADOS

8.1. Bala perdida oriunda da arma de um policial em confronto com criminosos

Imagine-se que policiais, em perseguição à bandidos que se evadiram após um assalto a banco em uma movimentada avenida do Rio de Janeiro, efetuam disparos de arma de fogo em direção aos fugitivos, a fim de detê-los, mas acabam por atingir uma criança que passava pelo local com a mãe.

Diante da adoção da teoria do risco administrativo, responde o Estado, neste caso, pelo dano que seu agente causou a terceiro inocente, com base no artigo 37, § 6° da Constituição Federal, cabendo ao Estado direito de regresso contra o policial que efetuou o disparo, se este agiu com dolo ou culpa.

No caso em tela, não há que se falar em irresponsabilidade do Estado em razão de este estar prestando, licitamente, seu dever de combate ao crime, pois a atividade do Estado, ainda que lícita, gera risco à sociedade e, portanto, ocorrendo um dano, deve a Administração Pública repará-lo.

Acrescente-se que o dever do Estado de combater a criminalidade não pode se sobrepor ao direito à vida das pessoas. Atirar na direção de bandidos em uma avenida movimentada é uma atitude descuidada, que demonstra o despreparo dos policiais e, consequentemente, a ineficiência da Administração Pública. Os fins não podem justificar os meios, nem tampouco as falhas na execução do serviço de segurança pública podem ser legitimadas sob a alegação de que, em determinada situação, era "necessário" atirar para "pegar" os bandidos.

No Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro parece não haver dúvida quanto ao dever do Estado de reparar o dano quando a bala, comprovadamente, proveio de arma disparada por agente público (conduta comissiva do agente público), consoante se infere do seguinte acórdão:

Ação indenizatória. Morte de menor que se encontrava em um bar comprando doces, vitimado por disparos de arma de fogo de agentes públicos, durante uma operação policial (blitz), próxima a favela do Jacarezinho, nesta cidade. [...] Estado-réu que invoca a licitude da conduta de seus agentes, baseando-se, principalmente, no dever de combate à criminalidade, o que o desobriga a qualquer indenização. Se a conduta comissiva do agente do Estado engendrou de forma direta ou concorrente o resultado danoso injusto a terceiro inocente, como no fato - espécie de bala perdida, a conduta ativa de agente policial na troca de tiros com bandidos evidencia no próprio fato o nexo de causalidade necessário à imposição da responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37,§ 6º da CR/88). Ora, o que o Estado pretende é que a força se sobreponha ao direito, que os fins justifiquem os meios e que as falhas nas tarefas que lhe são próprias sejam legitimadas, sob alegações de combate à criminalidade e estado de necessidade. [...]. [18] (grifo nosso).

Dessa forma, quando o agente público age em conduta comissiva, mesmo que o ato seja lícito, praticado em exercício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal, se causou de forma direta ou concorrente o resultado danoso injusto a um inocente, está configurado o nexo de causalidade, impondo-se, portanto, a responsabilidade objetiva do Estado para indenizar os danos (materiais e morais) sofridos pela vítima que não deu causa ao fato.

8.2. Bala perdida oriunda da arma de um criminoso em confronto com policiais

Infelizmente, tem se tornado lugar comum nas favelas do Rio de Janeiro as operações armadas da polícia, a fim de combater, principalmente, o tráfico de drogas. Nessas operações, ocorrem confrontos armados entre policiais e traficantes que mais parecem guerras, tamanho o arsenal de armas e munições a que tem acesso os bandidos. Nesses confrontos, muito moradores das favelas, que não têm qualquer envolvimento com o crime, inclusive crianças, são atingidas por balas perdidas.

Se, neste contexto, a bala que atingiu a vítima tiver advindo da arma de um dos policiais envolvidos no conflito, não resta dúvida acerca da responsabilidade civil da Administração Pública, conforme já explanado no item anterior. Contudo, dificuldades surgem quando a bala proveio da arma de um dos bandidos ou quando a vítima não consegue provar de qual arma partiu a bala que a atingiu.

Considerando-se que a bala seja oriunda de um disparo efetuado por um dos delinquentes, não há que se alegar fato de terceiro. Isso porque só seria possível ao Estado alegar em sua defesa o fato de terceiro, quando este tenha sido imprevisível e inevitável, o que não ocorre no caso proposto, tendo em vista que é previsível aos policiais que de um confronto armado com bandidos resulte vítimas inocentes. Neste caso, portanto, os policiais têm o dever de evitar danos a terceiros estranhos ao conflito. E, se mesmo com todos os cuidados dispensados o dano ocorrer, será a Administração Pública responsabilizada, já que o art. 37, § 6° da Constituição Federal não exige a demonstração de dolo ou culpa do agente estatal.

Não há que se cogitar, aqui, que o fato de um terceiro (bandido), durante confronto armado com policiais, ter atingido vítima inocente, rompe o nexo causal entre a conduta do agente estatal e o dano. Deve-se entender, ao contrário, que o nexo causal corresponde ao confronto em si, o qual conta com a participação de agentes do Estado, os quais não agiram com o devido cuidado, controlando a ação dos delinqüentes de forma a não atingir vítimas inocentes.

Esse entendimento, em nenhum momento confronta com a teoria do dano direito e imediato. Basta que se interprete a teoria de forma a valorizar a vítima e não o Estado. Assim, provado que o dano decorreu de um confronto entre policiais e bandidos, aí estaria o nexo causal e não, necessariamente, na prova de que a bala adveio da arma de um dos policiais.

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Ressalte-se que não se está, aqui, defendendo a tese de responsabilidade sem nexo causal. Pelo contrário. O nexo estaria, sim, presente, representado pelo confronto, no qual o Estado não atuou com a eficiência necessária para impedir danos a terceiros inocentes.

O mesmo raciocínio pode ser utilizado no caso de não se provar de qual arma adveio a bala perdida, se da arma do policial ou da arma do criminoso. Estando a polícia a realizar uma operação armada, se esta não é bem sucedida e causa danos, deve a Administração Pública indenizar terceiros inocentes que tenham sofrido dano. Para tanto, cabe às vítimas, apenas, o ônus de provar a ocorrência do confronto, que corresponde ao nexo causal entre a conduta e o dano.

Exigir da vítima, para que ela tenha direito à reparação do dano, que prove que a bala partiu da arma de um dos policiais, inviabilizaria o exercício do direito constitucional à reparação do dano.

No que diz respeito à responsabilidade civil do Estado quando a bala proveio da arma de um dos bandidos envolvidos no confronto ou quando a vítima não logrou êxito em provar que a bala disparada originou-se da arma de um dos policiais, há grandes divergências no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Para a nona câmara cível, constando dos autos prova de que o disparo tenha sido efetuado em confronto entre policiais e bandidos, tem o Estado dever de indenizar, independente da prova de que a bala seja proveniente da arma de um dos policiais, bastando a demonstração do confronto. Outras câmaras cíveis compartilham desse entendimento, a exemplo da décima sexta e da décima oitava, conforme se infere dos seguintes acórdãos:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 37, §6º DA CRFB/88. ATO LÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO. TROCA DE DISPAROS DE ARMA DE FOGO EM VIA PÚBLICA - BALA PERDIDA. DEVER DE INDENIZAR. […] A troca de disparos de arma de fogo efetuada entre policiais e bandidos conforme prova dos autos impõe à Administração Pública o dever de indenizar, sendo irrelevante a proveniência da bala. A conduta comissiva perpetrada, qual seja, a participação no evento danoso causando dano injusto à vítima inocente conduz à sua responsabilização, mesmo com um atuar lícito, estabelecendo-se, assim, o nexo causal necessário. [19] DESPROVIMENTO DO RECURSO. (grifo nosso)

EMBARGOS INFRINGENTES EM APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL O ESTADO ARTIGO 37, § 6º DA CF. TIROTEIO. VÍTIMA ATINGIDA POR BALA PERDIDA. CONFRONTO ENTRE POLICIAIS MILITARES E TRAFICANTES, RESULTANDO NA AMPUTAÇÃO DA PERNA DIREITA DA AUTORA. AO CONTRÁRIO DO SUSTENTADO PELO EMBARGANTE REVELA-SE DEMASIADO EXIGIR DA PARTE AUTORA A PROVA MATERIAL INDICATIVA DA ARMA DE FOGO DE ONDE TERIA PARTIDO O PROJÉTIL, SENDO SUFICIENTE A DEMONSTRAÇÃO DO CONFRONTO. […]. [20](grifo nosso)

Direito Administrativo. Responsabilidade civil objetiva do estado. Teoria do risco administrativo. Troca de tiros entre policiais militares e traficantes. Bala perdida. Autora atingida por projétil de arma de fogo, vindo a sofrer a amputação da mão direita. Dinâmica dos fatos reveladora da inexistência de plano de segurança para a atuação dos agentes públicos. Ineficiência da conduta perpetrada pelos policiais. Patente omissão do Poder Público. Dever genérico de segurança que na hipótese mostrou-se específico. Responsabilidade objetiva do Estado. Danos materiais, morais e estéticos configurados. A taxa de juros moratórios é de 12% ao ano a partir do Novo Código Civil. Interpretação construtiva da Constituição Federal, que prima pelo indivíduo frente ao Estado. Manutenção da sentença. Desprovimento do recurso. [21] (grifo nosso)

O contrário entendem a primeira, a sexta, a sétima e a décima quarta câmaras cíveis. Defendem estas câmaras que, para responsabilizar o Estado por um dano decorrente de bala perdida originada de um confronto entre policiais e bandidos, é necessário que o autor da ação prove nos autos que a bala proveio da arma de um policial, entendimento este evidenciado nos acórdão supracitados.

EMBARGOS INFRINGENTES. RESPONABILIDADE CIVIL. AÇÃO POLICIAL. BALA PERDIDA. NEXO CAUSAL INCOMPROVADO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PROVIMENTO DO RECURSO. A responsabilidade do Estado, ainda que objetiva em razão do disposto no art. 37, § 6º da Constituição Federal, exige a comprovação do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano. Não havendo nos autos prova de que o ferimento causado a vítima tenha sido provocado por disparo de uma das armas utilizada pelos Policiais Militares envolvidos no tiroteio, por improcedente se mostra o pedido indenizatório […]. [22](grifo nosso).

APELAÇÃO CÍVEL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FERIMENTOS PROVOCADOS POR BALA PERDIDA DURANTE CONFRONTO ENTRE POLICIAIS E TRAFICANTES. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL. RECURSO IMPROVIDO.[...] 2.Na hipótese vertente, durante toda a fase probatória, não ficou esclarecida a procedência do projétil que acabou por ferir os autores no interior de sua residência. 3.Assim, por mais dramática que seja a situação vivida pelos autores, como não é possível afirmar que o tiro partiu da arma de um agente público, não tem o Estado que indenizar os danos por estes sofridos.[...]. [23] (grifo nosso).

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. BALA PERDIDA. OMISSÃO ESPECÍFICA DO ESTADO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. [...] inexistindo nos autos comprovação de que o projétil de arma de fogo causador do ferimento sofrido pela Apelante tenha partido de uma das armas utilizadas pelos Policiais Militares que participaram do confronto narrado na exordial, não há como se imputar ao Estado a responsabilidade pelo dano a ela causado. [...]. [24] (grifo nosso).

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZAÇÃO. BALA PERDIDA. TIROTEIO ENTRE POLICIAIS E BANDIDOS. [...] INEXISTINDO NOS AUTOS A COMPROVAÇÃO DE QUE O PROJÉTIL DE ARMA DE FOGO QUE CAUSOU O FALECIMENTO DO PAI E COMPANHEIRO DOS AUTORES TENHA PARTIDO DE ARMAS UTILIZADAS PELOS POLICIAIS MILITARES, NÃO HÁ COMO SE IMPUTAR AO APELANTE A RESPONSABILIDADE PELO DANO CAUSADO. [...]. [25] (grifo nosso).

Ao contrário do que se observa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, não parece haver dúvidas no Supremo Tribunal Federal quanto à desnecessidade de que a vítima ou seus descendentes demonstrem que a bala partiu da arma de um policial, bastando provar a existência do confronto, o que está em consonância com os ditames constitucionais, e em especial, com a idéia de justiça, conforme se infere das seguintes decisões:

DECISÃO: RE, a, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado - f. 215: "RESPONSABILIDADE CIVIL. ESTADO. TIROTEIO. CONFRONTO ENTRE POLICIAIS E MELIANTES. NEXO CAUSAL. INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. Inteligência dos artigos 5º e 37, § 6º, da CRFB/88. A configuração do nexo de causalidade em caso de tiroteio entre policiais e meliantes atingindo vítima inocente, não se exige prova direta de projétil de arma do agente público, sendo suficiente a demonstração do embate entre eles, causa necessária dos danos injustos perpetrados a terceiro, sem o qual o fato não teria ocorrido. PROVIMENTO DO RECURSO. [...] Na linha dos precedentes, nego seguimento ao recurso extraordinário (art. 557, caput, do C.Pr.Civil). Brasília, 17 de março de 2006. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – Relator. [26] (grifo nosso)

DECISÃO BALA PERDIDA - TIROTEIO ENTRE POLICIAIS E MARGINAIS - RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. [...] Ação ordinária. Danos materiais e morais. Responsabilidade civil do Estado. Responde o Estado, por culpa aquiliana, se o cidadão é atingindo no interior de seu lar, por bala perdida, em confronto entre policiais e criminosos, travado em via pública. Desnecessário o registro da ocorrência, noticiada por inúmeros órgãos da imprensa. Provimento parcial do recurso, por maioria (folha 277). A segurança pública é dever do Estado, que responde pelos danos causados aos cidadãos. A população do Estado do Rio de Janeiro, ante a deficiência da estrutura em tal campo, vive em sobressalto. A decisão impugnada se afina com a própria razão de ser do Estado, no que deve colar à vida gregária o indispensável conforto. Na espécie, por maior que possa ser a interpretação restritiva, impertinente na espécie, não há como concluir pela violação do § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, no que proclama e assegura o direito do prejudicado, por ato de serviço do Estado, à devida indenização. O nexo de causalidade salta aos olhos, não cabendo, a esta altura, perquirir-se sobre a origem do disparo, se decorrente de arma de policial ou da bandidagem. O que surge com eficácia maior é a deficiência na prestação de um serviço essencialmente público como é o ligado à segurança. 3. Nego seguimento a este extraordinário. 4. Publique-se. Brasília, 20 de abril de 2004. Ministro MARCO AURÉLIO Relator. [27] (grifo nosso).

Da análise das citadas decisões do Supremo Tribunal Federal, portanto, infere-se que, conforme o defendido neste estudo, o nexo de causalidade estará caracterizado com a prova do confronto entre policiais e bandidos, não sendo necessário que a vítima demonstre que a munição tenha partido da arma de um dos policiais.

8.3. Bala perdida oriunda de confronto entre facções criminosas rivais, sem a presença da polícia

Visualize-se a ocorrência de tiroteio entre facções criminosas rivais, que disputam o controle do tráfico de drogas e de armas em determinada favela, sendo um trabalhador, que retornava à sua residência, atingido por uma bala perdida oriunda do fogo cruzado. Neste caso, será possível responsabilizar o Estado?

O Estado, no caso acima narrado, não poderá ser responsabilizado, porque o dano sofrido pelo trabalhador adveio de fato de terceiro, sem que tenha havido qualquer participação estatal. No entanto, tal raciocínio só será coerente com o que foi anteriormente explanado se o Estado não tenha sequer tomado conhecimento do evento ou da probabilidade de sua ocorrência (omissão genérica).

Diferentemente, se o Estado, chamado a intervir no confronto, simplesmente se omitiu, deverá ser, sim, responsabilizado, pois, aqui, se trata de omissão específica.

Ampliando a hipótese, imagine-se que a ocorrência do aludido confronto era rotineiro e, portanto, era de conhecimento dos policiais o risco que a população local corria. Neste caso, a Administração Pública tem o dever de promover operações para conter os confrontos, garantindo a segurança da população. Se não o faz com eficiência, e os confrontos continuam, deve o Estado ser responsabilizado, já que a omissão que antes se apresentava genericamente, transformou-se em omissão específica.

Outra questão de grande relevo no Rio de Janeiro são os famigerados bailes "funk". Consoante nos relata Arthur Correa Cabral, delegado de polícia do Estado do Rio de Janeiro,

Os bailes funk já funcionavam há alguns anos, mas foi em 1999 que chegaram ao auge. Não só porque começaram a aparecer muitas denúncias sobre este verdadeiro Mortal Kombat, com parentes das vítimas da violência desses bailes procurando os jornais, mas também porque a mídia, principalmente a televisão, passou a mostrá-los.

Esses bailes eram então uma novidade que começava a conquistar os jovens. Estes, cheios de energia, gostaram quando os DJs e MCs começaram a introduzir o grito de guerra nos interior dos clubes.

Surgiram daí os corredores da morte. De um lado, uma galera, do outro, a galera rival, como animais lutando por território e, no meio, uma faixa livre, terra de ninguém.

Seguranças com cassetetes se postavam, batendo nos jovens que entravam no corredor. Vez por outra, um jovem era arrebatado por uma corrente, uma onda da galera rival, e era moído de pancadas. As moças, arrastadas à força até os banheiros controlados pela galera, eram ali estupradas. [28] (grifo do autor).

Outra características dos tais bailes "funk" é o livre trânsito de traficantes, que se utilizam dos bailes para vender drogas aos jovens. Além disso, também é comum que os freqüentadores andem armados, todos prontos para atirar a qualquer sinal de "necessidade" de se defender.

E é dessa mistura de músicas que fazem apologia ao crime, drogas e armas que acabam ocorrendo diversas confusões, as quais, por vezes, atingem pessoas inocentes, que sequer participavam das festas. Moradores das redondezas dos bailes vivem assustados, com medo das balas perdidas oriundas dos confrontos entre as "galeras rivais".

E será que se pode considerar como caso fortuito o fato de uma bala perdida atingir um morador, que sequer havia saído de sua casa, mas que acabou sofrendo as conseqüências de morar próximo a um dos tantos locais onde os "funkeiros" se reúnem? É claro que não.

Para a polícia, é perfeitamente possível prever e evitar os constantes tiroteios que ocorrem nos bailes "funk", pois não foge do conhecimento geral de que os locais são palcos de vários conflitos armados entre grupos rivais, configurando-se, portanto, a omissão estatal, o que gera para a Administração Pública a responsabilidade civil.

Mais uma vez aqui, não se pode cogitar de ocorrência de omissão genérica, pois esta se refere ao dever de segurança dos cidadãos em geral. O fato de os bailes "funk" serem publicamente conhecidos como locais de reunião de todo tipo de gangue, gera para o cidadão o direito de exigir a proteção do Estado, a fim de garantir o direito à vida e à segurança pública.

Se o Estado já perdeu o controle da preservação da ordem pública, deixa clara a sua omissão (específica).

Acrescente-se, inclusive, que muitos policiais ficam até receosos de atuar no combate às gangues que freqüentam os bailes, tamanho o arsenal bélico possuído pelos marginais.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao decidir caso de bala perdida decorrente de brigas em bailes "funk", que acabou por atingir pessoa inocente, que estava dentro de casa, assim decidiu:

Responsabilidade Civil. Dever do Estado de dar segurança aos cidadãos ordeiros e que pagam impostos, cujos recursos são utilizados para outros fins. Bala perdida decorrente de briga em bailes FUNK, cujas gangues, que, neles, se reúnem, após a sua realização, passam a agredir-se, mutuamente, visando a obtenção da liderança. Resultados, altamente, danosos para a sociedade ante a omissão da autoridade competente. Vítima que ficou paraplégica. Pretensão de receber do Estado o ressarcimento de danos materiais e moral. Improcedência do pedido. Inconformismo da autora. Provimento do recurso. Não obstante tratar-se de responsabilidade objetiva do Estado, na forma do § 6º, do artigo 37, da Constituição Federal, tem-se que, na espécie, restou, amplamente, comprovada a sua OMISSÃO, no que tange à segurança pública dos cidadãos, que constitui seu primordial dever preservar, considerando que, como é público e notório, nos bailes FUNK, há, via de regra, brigas violentas de gangues, cujos integrantes andam sempre armados, sem que a autoridade policial se faça presente para coibir o respectivo porte e o conseqüente uso ilegal, quase sempre trágico às pessoas, que nada têm a ver com essas badernas e sobre as quais recaem os atos de vandalismo incontido. Não constitui, como é de obviedade gritante, caso fortuito aquele que é previsível e pode ser evitado, desde que o ESTADO não se omita e exerça, nos locais, sabidamente, perigosos, a sua autoridade, como agente responsável e garantidor da segurança pública. Se já perdeu tal autoridade, deve responder por todos os danos causados aos cidadãos, que forem vítimas de sua inércia. [29] (grifo nosso).

Diante disso, chama a atenção a necessidade de se reverter a discussão no que concerne à violência urbana, tirando o foco dos bandidos, tão protegidos pelos famigerados direitos humanos, e passando a se preocupar com as vítimas e suas famílias, que sofrem com a ineficiência do Estado, não importando, portanto, quem acionou o gatilho, mas quem sofreu as conseqüências do disparo.

8.4.Bala perdida advinda de arma e local desconhecidos

Para a compreensão do caso proposto, imagine-se uma pessoa que assiste tranquilamente a seu programa favorito na televisão, sentada no sofá de sua casa, quando, inesperadamente, é atingida por uma bala perdida, sem que tenha sido possível identificar a procedência do disparo.

Na aludida situação, com base na teoria do risco administrativo, não seria possível responsabilizar objetivamente o Estado, pois o fato poderia ser enquadrado como caso fortuito, o que funcionaria como uma excludente de responsabilidade, já que não há como provar o nexo causal entre a atuação ou a omissão estatal e o dano.

Responsabilizar o Estado neste caso seria alegar que este cometeu uma omissão genérica, não promovendo adequadamente a segurança pública dos cidadãos, o que não é aceito pela doutrina e pela jurisprudência pátrias.

Já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro que, tratando-se de responsabilidade por danos decorrentes de balas perdidas de origem totalmente ignorada, falta nexo de causalidade entre a ação ou omissão estatal e o evento danoso. E, sob pena de tornar o Estado segurador universal, não cabe a ele a responsabilidade civil pela reparação do dano. É o que se infere do seguinte acórdão:

Apelação Cível. Responsabilidade civil do Estado. Bala perdida. Apelante que foi atingido na porta de seu bar, sem saber de onde veio o tiro. Sentença que julgou o pedido improcedente, adotando entendimento de ser a responsabilidade subjetiva, no caso de omissão do Estado. O par. 6. do art. 37 da CF/88 estabelece a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público, sem distinção entre a conduta comissiva ou omissiva de seus agentes, mas não adota a teoria do risco integral, não sendo o Estado garantidor universal. No caso, não há provas de que houvesse troca de tiros entre policiais e marginais, ou de onde teria sido efetuado o disparo, afastando a conduta de algum agente estatal. Analisada a omissão quanto à segurança pública, não pode o Estado estar onipresente, pelo que não havendo prova de que foi chamado a agir e se omitiu, não é de se reconhecer a responsabilidade pela omissão genérica, por ausência de culpa e de nexo causal. [...] Recurso não provido. [30] (grifo nosso).

Entretanto, se, no futuro, o ordenamento jurídico adotar a teoria do risco social, melhor explanada no item 9 do presente estudo, será possível à vítima receber uma indenização em tais casos, pois a não atuação do Estado, mesmo que genericamente considerada, foi a responsável pela quebra da harmonia social, devendo-se, por conseguinte, dividir o ônus entre toda a coletividade, não sendo justo que a vítima arque sozinha com os custos da violência.

É possível que se sustente, também, a responsabilização civil do Estado pelos danos causados por balas perdidas de origem desconhecida, quando, pelas circunstâncias de tempo, lugar e forma de execução sempre repetidas, elas se tornem previsíveis e evitáveis, não se inserindo no conceito de caso fortuito ou força maior. [31] Neste caso, a omissão estatal passará a ser específica, pois o Estado deveria ter agido para evitar o resultado desastroso, mas se omitiu, motivo pelo qual deverá ser responsabilizado.

Sobre a autora
Joana Wirti

Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe - Especialidade Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WIRTI, Joana. Responsabilidade civil do Estado em relação às vítimas de balas perdidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2585, 30 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17074. Acesso em: 16 nov. 2024.

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