8- Inépcia
A inépcia da denúncia tanto pode ser formal quanto material, ou ainda cumulativamente formal e material. Ou seja, pode ser verificada na insuficiente narração e demonstração dos fatos ou pode decorrer da ausêcia de suporte mínimo indiciário apto para definir a autoria e precisar a materialidade.
De acordo com o art. 569 do Código de Processo Penal, as omissões da denúncia poderão ser supridas a qualquer momento, antes da sentença final. O STF, em interpretação ao referido artigo legal, tem o entendimento sólido de que a denúncia, ainda com falhas ou vícios, se não forem substanciais, chegar até à sentença, não mais pode ser acoimada de inepta [29].
Os vícios da denúncia dividem-se em dois tipos: os supríveis e os insupríveis. A regra de ouro para distinguir um vício do outro é simples: se acarretar prejuízo ao direito de defesa, temos vício substancial ou insuprível; se não ocasionar dito prejuízo, o vício é sanável até antes da sentença, conforme exposto no art. 569, do CPP, não podendo mais ser arguído em eventual recurso [30]. São exemplos de vícios substanciais: a insuficiente descrição do fato criminoso, a falta de individualização do acusado etc.
Eventual inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da imputação, em flagrante prejuízo à defesa do réu.
8.1- Denúncia genérica
Tem-se denúncia genérica quando a acusação não promove a descrição da conduta ou comportamento do agente e não estabelece uma relação entre os comportamentos atribuídos ao acusado e os atos ilícitos supostamente praticados. Esse tipo de imputação é inepta e fere o art. 41 do Código de Processo Penal, além dos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
A imputação genérica fere ainda a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), de 22.01.1969, ratificado pelo Brasil em 25.09.1992, onde no art. 8º., item 2, letra "b", prescreve que o acusado tem direito à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada (Grinover et alii, 1995, p. 69). Bem como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, onde no art. 14, item 3, letra "a", consagra como garantia da pessoa acusada de "ser informada, sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada".
O STF, em algumas espécies de crime (societários e coletivos), admite a denúncia genérica em que a exigência da descrição individualizada da conduta dos denunciados é atenuada e diferida para a instrução. Esse entendimento jurisprudencial, ainda dominante, funda-se no art. 569, do CPP, que autoriza que as omissões da denúncia ou da queixa sejam supridas a todo tempo, antes da sentença final. Assim, seria possível postergar-se para a fase instrutória a delimitação da responsabilidade individual dos partícipes (Prates, 2000, p. 07). Nem sempre, entretanto, esse entendimento foi pacífico (e, na verdade, vem paulatinamente cedendo às exigências constitucionais da ampla defesa e do contraditório). Em 1965, no HC 42.303-PR, o Min. Pedro Chaves expressava descontentamento:
"Não posso admitir que prevaleça a tese sustentada no acórdão recorrido, no sentido de que a validade da denúncia pode ficar na dependência da prova a ser produzida. Não. A acusação da denúncia-libelo deve ser clara e precisa. O que dependerá de exame das provas é a procedência ou improcedência da ação penal, porque a denúncia não pode ser equiparada a uma promessa de acusação a ser concretizada inopportuna tempore".
E mais recentemente, através do Min. Celso de Mello:
"O sistema jurídico vigente no Brasil – tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático – impõe ao Ministério Público a obrigação de expor, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação das pessoas acusadas da suposta prática da infração penal, a fim de que o Poder Judiciário, ao resolver a controvérsia penal possa, em obséquio aos postulados essenciais do direito penal da culpa e do princípio constitucional do due process of law, ter em consideração, sem transgredir esses vetores condicionantes da atividade da persecução estatal, a conduta individual do réu, a ser analisada, em sua expressão concreta, em face dos elementos abstratos contidos no preceito primário de incriminação. O ordenamento positivo brasileiro repudia as acusações genéricas e repele as sentenças indeterminadas" [31].
A jurisprudência do STJ, por outro lado, é sólida em não admitir a denúncia genérica:
"A denúncia, articulada em termos extremamente genéricos e vagos, não descrevendo um mínimo necessário a indicar qualquer tipo de conduta, em tese, criminosa, ou mesmo a participação do agente em qualquer fato, salvo sua condição de empregado da empresa vítima de eventual ação delituosa, apresenta-se como insuficiente, não apenas para o exercício do direito de defesa, mas, também, para justificar o andamento da máquina punitiva estatal" [32].
"De nada adiantam os princípios constitucionais e processuais do contraditório, da ampla defesa, em suma, do devido processo legal na face substantiva e processual, das próprias regras do estado democrático de direito, se permitido for à acusação oferecer denúncia genérica, vaga, se não se permitir a individualização da conduta de cada réu, em crimes plurissubjetivos.
A denúncia formalmente correta e capaz de ensejar o efetivo exercício da ampla defesa deve individualizar os atos praticados pelo denunciado e que contribuíram para o resultado criminoso.
O simples fato de uma pessoa ser proprietária de uma área rural, por si só, não significa que ela deva ser responsabilizada por qualquer crime indistintamente ali praticado, sob pena de consagração da responsabilidade penal objetiva, repudiada pelo nosso Direito Penal" [33].
8.2- Falta de assinatura da peça acusatória
A falta de assinatura do promotor na denúncia é, em princípio, vício insuprível. Denúncia sem assinatura é tida como inexistente. Todavia, se fica evidenciado por elementos constantes dos autos (cota manuscrita e assinada de devolução do inquérito com denúncia em tantas laudas, por exemplo) que a assinatura deixou de ser lançada por esquecimento do Promotor, sanável é o ato. E isso é defensável principalmente se nenhum prejuízo é ocasionado ao exercício pleno da defesa [34].
"HC - PROCESSUAL PENAL - DENUNCIA - FALTA DE ASSINATURA - A assinatura integra os elementos essenciais da denuncia. A falta implica inexistência do ato. a interpretação jurídica não pode, porem restringir-se ao aspecto formal. O vício só se proclama em sendo impossível manter-se o ato jurídico. Ausência de elemento essencial não se confunde com irregularidade, omissão formal. Em sendo assim, evidenciado que a denúncia foi apresentada pelo promotor que deixou de lançar sua assinatura, por esquecimento, evidenciado por elementos constantes dos autos, válida é a imputação. A interpretação teleológica supera falhas literais, notadamente quando se lembra que o processo é instrumento. A exposição de motivos do Código de Processo Penal chama a atenção para o trabalho do juiz não ser voltado para espiolhar nulidades" [35].
Também se não restar dúvida sobre a autenticidade da peça acusatória por circunstâncias presentes aos autos, não há que se falar em nulidade:
"A falta de assinatura do Promotor de Justiça na denúncia, não havendo dúvida quanto a autenticidade da peça acusatória, constitui mera irregularidade, não acarretando, portanto, a sua nulidade (Precedentes do STF e do STJ). Recurso provido" [36].
"A falta de assinatura na denúncia constitui mera irregularidade, sanável com o retorno dos autos ao órgão do Ministério Público. No caso dos autos, o procurador da república assinou cota comunicando que oferecia a denúncia em separado, fato que confere autenticidade à peça acusatória" [37].
8.3- Descrição sucinta do fato criminoso
O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas à garantia da plenitude de defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas. Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual de que dispõe o acusado à ampla defesa. A imputação penal omissa ou deficiente, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-se como causa de nulidade processual absoluta. A denúncia – enquanto instrumento formalmente consubstanciador da acusação penal – constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria res in judicio deducta. A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que possa ser sucinta e breve, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta (Franco/Stoco, 2004, p. 339) [38].
A imputação, ainda que sucinta e breve, se permite ao acusado o conhecimento preciso do que lhe está sendo imputado, assegurando-lhe a ampla defesa e o contraditório, não é considerada inepta [39]. Na verdade, a objetividade e a concisão são, por muitos, alçados como princípios que devem informar a denúncia. Fatos irrelevantes ou meramente ilustrativos nada acrescentam ao conteúdo da imputação e, portanto, é recomendável que sejam evitados. A denúncia não se presta a contar estórias prolixas sobre o crime, mas para expor, direta e objetivamente, a conduta típica do denunciado e, eventualmente, o comportamento da vítima ou de terceiros, se considerado relevante. O núcleo vital da denúncia é o comportamento do acusado e seus desdobramentos típicos.
Embora regida pelo princípio da objetividade e concisão, a denúncia não pode ser excessivamente lacônica na descrição dos fatos, sob pena de inépcia. A concisão não deve exceder aos limites de razoabilidade, impedindo o exercício da ampla defesa [40].
8.4- Erro no endereçamento
Embora a lei não contenha expressamente a exigência, a peça acusatória deve indicar o órgão jurisdicional ao qual é dirigida, mas o erro do endereçamento não gera nulidade, nem inépcia da denúncia [41].
8.5- Pedido de condenação e citação
Não é indispensável o pedido de condenação, implícito em toda denúncia quando mencionados os dispositivos penais em que está incurso o denunciado, nem se exige, como no processo civil, o pedido de citação do réu (Mirabete, 1995, p. 92).
8.6- Não indicação da data do fato delituoso
A data do fato delituoso não é elemento essencial da denúncia. Logo, a ausência daquele dado na peça acusatória configura nulidade relativa, sanável se não argüida no momento oportuno [42].
8.7- Momento processual para alegação de inépcia da denúncia
A alegação de inépcia da denúncia deve ser feita até a prolação da sentença. Prolatada a sentença fica superado eventual vício, conforme amplo entendimento jurisprudencial.
STF: "É assente o entendimento pretoriano superior, segundo o qual, com o advento da sentença, não mais se pode argüir inépcia da denúncia, cujo defeito, se existente, teria se transferido para o ato do julgamento" [43].
"(...) A inépcia da denúncia deve ser argüida até as alegações finais, dado que, após esta fase, a impugnação deve ser dirigida contra a sentença ou acórdão, os quais absorvem eventuais vícios nela contidos (...)" [44].
TRF da 1ª Região: "A alegação de inépcia da denúncia fica superada com o advento da sentença condenatória" [45].
9- "Emendatio libelli" e "mutatio libelli"
Como sucede na esfera cível, no campo penal não se admite julgamento ultra, extra ou citra petitum. Se o promotor denuncia por lesão corporal, o juiz não pode condenar o réu por furto, sob pena de estar decidindo extra petitum. Denunciado por dois crimes, a sentença não pode analisar somente um deles; seria julgamento citra petitum. Acusado de lesão corporal leve, o juiz não pode condená-lo por lesões graves, caso em que a sentença seria ultra petitum (Shimura, 1991, p. 35). É fundamental a existência de correlação entre a acusação e sentença, princípio que representa uma das garantias constitucionais do direito de defesa.
Mesmo existindo uma congruência entre a imputação e a sentença, o sistema prevê mecanismos em que a acusação pode ser alterada no curso do processo. Esses mecanismos são a emendatio libelli e a mutatio libelli.
A emendatio libelli consiste na possibilidade do juiz, por ocasião da sentença, conferir nova definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória ainda que resulte na aplicação de pena mais grave. Essa nova definição jurídica se dá em abstrato e não sobre qualquer elemento probatório constante nos autos. Essa análise em abstrato preserva o núcleo intangível dos fatos narrados, não podendo o juiz, como diz a lei, "modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa" (art. 383, caput, CPP).
Acompanhando sólido entendimento jurisprudencial, a lei autoriza que, se em decorrência de emendati libelli houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, os autos serão encaminhados ao Ministério Público para proceder de acordo com a lei [46]. Caso o Promotor de Justiça não ofereça a proposta, deve o Juiz remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça para ele próprio fazê-lo ou designar outro membro da Instituição para tanto. O que não é possível, tal como já decidiu o STF [47], é a concessão ex officioda suspensão pelo Juiz. E se com a nova definição jurídica modificar-se a competência, os autos serão encaminhados ao juízo competente (§§1º. e 2º. do art. 383, CPP).
Então a emendatio libelli só pode se dar na sentença? Na verdade, não há norma legal indicando ou impondo ser na sentença o único momento para uma redefinição jurídica dos fatos. O único motivo da emendatio libelli ser realizada por ocasião da sentença deve-se ao fato do art. 383 do Código de Processo Penal está inserido no Título XII – Da Sentença. Assim, é possível a redefinição judicial da classificação dos fatos por ocasião do recebimento da denúncia ou queixa, com vantagens estimáveis para o processo como a adoção do rito adequado e consolidação do juízo competente.
Mas a jurisprudência e a doutrina [48], majoritariamente, têm entendimento diverso, ou seja, de que não cabe ao juiz redefinir a classificação legal em outra ocasião diversa da sentença, sob pena de prejulgamento e de usurpar atribuição exclusiva do dominus litis (seja o Ministério Público ou o querelante).
"Não é lícito ao juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar" [49].
"Não tem poderes o juiz para, no despacho de recebimento da denúncia, considerar inconstitucional o decreto-lei em que se fundou, e dar nova definição jurídica do fato. Só o dominus litis tem poderes para alterar a classificação do delito, ao oferecer a denúncia. Habeas corpus denegado" [50].
"Não cabe ao juiz, ao receber a denúncia, classificar o crime nela transcrito. A definição jurídica do fato supostamente delituoso, constante na denúncia, cabe ao Ministério Público como titular que é da ação penal. A análise quanto à correta capitulação somente deve ser feita por ocasião da prolação da sentença, de acordo com o disposto no art. 383 do CPP" [51].
Se ao cabo da instrução surgir elemento ou circunstância da infração penal não contida, nem explícita, nem implicitamente, na denúncia, é aberto o prazo de cinco (05) dias ao Ministério Público ou querelante para aditar a denúncia ou queixa. O princípio da correlação determina que o Juiz não pode condenar o acusado por fato não descrito na denúncia ou queixa sem as providências do art. 384 do Código Processo Penal, ou seja, sem proceder à mutatio libelli.
É possível haver mutatio libelli em grau recursal? Não é permitido ao tribunal, em grau de recurso, fazer nova instrução do fato, para classificação de outro crime. Tal providência só se admite ao juiz. Em segunda instância, onde já há sentença, não se pode renovar a instrução do feito. Por essa razão, o art. 617 menciona apenas o art. 383 (emendatio libelli), omitindo o art. 384 (mutatio libelli). A matéria já é pacífica e está incluída na Súmula 453, do STF (Fragoso, 1982, p. 427).
Assim, por exemplo, se nas alegações finais, o promotor adita e o juiz rejeita e profere decisão absolutória, em sendo acolhido o recurso da acusação, a solução juridicamente correta é anular a sentença monocrática, para que, em recebendo o aditamento, proceda-se nos termos do §2º, do art. 384, do CPP, até para não ser suprimido um grau de jurisdição (Shimura, 1991, p. 40).
À mutatio libelli aplicam-se as disposições dos §§1º. e 2º. do art. 383, CPP, ou seja, quando aplicada pode provocar a suspensão condicional do processo e o deslocamento da competência.
O aditamento da denúncia, por conta da mutatio, sujeita-se às mesmas regras que presidem o oferecimento da denúncia ou a sua rejeição (cf. §2º, do art. 384, CPP). Não aceito o aditamento, cabível é o recurso em sentido estrito, conforme disposição do art. 581, I, CPP.
Diferenças entre a emendatio libelli e a mutatio libelli:
Emendatio libelli |
Mutatio libelli |
Ocorre por ocasião da sentença. |
Ocorre ao fim da instrução criminal. |
Apreciação abstrata dos fatos narrados na denúncia, sem adentrar no exame probatório. |
Requer análise de prova. |
O fato provado é o mesmo que foi narrado na peça acusatória. |
O fato provado é distinto do fato narrado. |
Emenda da classificação legal. |
Alteração da descrição fática |
O juiz não precisa ouvir as partes. |
As partes são ouvidas. |
Pode ser aplicada em instância recursal. |
Não é possível em instância recursal, salvo quando se tratar de processo de competência originária de tribunal (súmula 453, do STF [52]). |
Nada é acrescido, apenas há uma emenda legal. |
Exige aditamento da peça acusatória. |