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Estudo sobre os aspectos formais/substanciais da denúncia e temas correlatos

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04/08/2010 às 18:35
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Na prática diária, denúncias ineptas, mal elaboradas e prejudiciais à ampla defesa, ao contraditório e à própria dignidade humana, ao fim acabam se voltando contra a própria acusação oficial.

Resumo: O estudo tem como objetivo enfrentar a problemática teórica sobre a imputação e temas correlatos. Desenvolve-se a partir da constatação, na prática diária, de denúncias ineptas, mal elaboradas e prejudiciais à ampla defesa, ao contraditório e à própria dignidade humana, que ao fim acabam se voltando contra a própria acusação oficial. A denúncia, sob pena de inépcia, deve necessariamente atender certos requisitos formais e substanciais, consistentes na objetividade, concisão e precisão narrativa, pois dela saem os contornos que darão vida ao debate contraditório, à ampla defesa e ao julgamento. Imputações indeterminadas, vagas, omissas ou ambíguas, violam a garantia constitucional da plena defesa e são absolutamente nulas. Temas relacionados com a matéria também são abordados como a teoria da dupla imputação, a imputação alternativa, a emendatio libelli e a mutatio libelli.

Palavras-chave: Denúncia. Modalidades. Conceito. Princípios. Requisitos formais e substanciais. Dupla imputação. Imputação alternativa. Inépcia.

Sumário: 1- Introdução. 2- Conceito e requisitos formais da denúncia. 2.1-Exposição (descrição) do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias: imputação. 2.2- Qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. 2.3- Classificação do crime. 2.4- Rol de testemunhas. 3- Requisitos substanciais ou materiais da denúncia: suporte probatório mínimo. 4- Princípios informativos da denúncia. 4.1- Princípio da objetividade. 4.2- Princípio da concisão. 4.3- Princípio da precisão. 5- Denúncia ou imputação alternativa. 6- Teoria da dupla imputação. 7- Elaboração técnica da denúncia nas diversas modalidades criminais. 7.1- Concurso de agentes. 7.2-Crime societário. 7.3- Crime multitudinário ou coletivo. 7.4- Crime tentado. 7.5- Crime culposo. 7.6- Outros exemplos. 8- Inépcia. 8.1- Denúncia genérica.8.2- Falta de assinatura da peça acusatória. 8.3- Descrição sucinta do fato criminoso. 8.4- Erro no endereçamento. 8.5- Pedido de condenação e citação. 8.6- Não indicação da data do fato delituoso. 8.7- Momento processual para alegação de inépcia da denúncia. 9- "Emendatio libelli" e "mutatio libelli". 10- Considerações finais. Referências bibliográficas.


1- Introdução

O Promotor de Justiça, ao receber os autos do inquérito policial ou peças de informação, deve tomar uma das seguintes providências: requerer o arquivamento em casos de autoria desconhecida, atipicidade, falta absoluta de provas etc. (Marques, 1965, p. 171); requerer a devolução dos autos à polícia para novas diligências imprescindíveis à formação da opinio delicti (art. 16, CPP); requerer a extinção da punibilidade (prescrição, decadência etc.); em caso de crime de ação penal privada, manifestar-se no sentido de que os autos permaneçam em cartório aguardando a iniciativa da vítima; se entender que o juízo é incompetente, requerer a remessa dos autos ao juízo que o for; e oferecer a denúncia.

O oferecimento da denúncia pressupõe o atendimento de requisitos substanciais (prova da materialidade e indícios de autoria) e formais (art. 41, CPP). A elaboração da peça acusatória em si prende-se a certos requisitos legais que inobservados podem levar à inépcia e nulidade do ato. Mas a importância de uma denúncia bem elaborada supera, em muito, o aspecto meramente formal. Ao traçar os lindes da ação penal, a acusação se apresenta ao mundo jurídico como uma proposta ou projeto de sentença, e embora possua, em relação a esta, natureza jurídica diversa, deve conter semelhante estrutura lógica (Prates, 2000, p. 03), numa espécie de juízo preliminar tendente a determinar um futuro juízo definitivo.

Como ato jurídico processual emitido por um órgão público, a denúncia assim como a sentença, deve ser precisa, certa e completa, pois justamente dela saem os contornos que darão vida ao debate contraditório, à ampla defesa, ao julgamento e até à própria coisa julgada. Dado isso, a denúncia tem inegável preponderância sobre o acusado, podendo restringir-lhe alguns direitos [01] como afiançabilidade, liberdade provisória, suspensão condicional do processo, reconhecimento da prescrição etc.

A denúncia, de certa forma, é uma sentença antecipada, menos densa e menos fundamentada, embora a afirmativa do Ministério Público na denúncia difira da afirmação do juiz na sentença, não só pelo aspecto jurídico, mas também pelo prisma lógico: o juiz afirma a responsabilidade do réu de maneira apodítica, o Ministério Público o faz de maneira assertória ou mesmo problemática. A conclusão do juiz é categórica, a do MP é hipotética (Tornaghi, 1981, p. 46). Além disso, cabe ao juiz por ocasião do julgamento fixar o quantum debeatur da pena e dar a classificação legal definitiva ao crime, embora esteja atrelado aos fatos descritos (imputação), sendo-lhe vedado proferir sentença extra ou ultra petita.

Do mesmo modo que sucede no processo civil, ocorre no processo penal. A peça inicial acusatória, seja denúncia, seja queixa-crime, deve descrever perfeitamente bem a espécie delituosa que constitui a causa petendi, a razão do pedido. No que se refere à qualidade e à quantidade da pena, o pedido é sempre genérico, pois conforme os critérios adotados pelo Código Penal, compete exclusivamente ao juiz, dosá-la (Shimura, 1991, p. 34; Marques, 1961, p. 152).

Vista por qualquer ângulo, a denúncia assume um papel fundamental na deflagração e desenvolvimento do processo penal, razão pela qual seus requisitos formais/substanciais e suas variáveis exigem um estudo constante e atualizado [02]. Estudo tanto mais necessário na medida em que nos deparamos constantemente com denúncias ineptas, mal elaboradas e definitivamente prejudiciais à ampla defesa, ao contraditório, à lealdade processual e à própria dignidade humana [03], que ao fim acabam também se voltando contra a própria acusação oficial, pelo viés pragmático, pois em grau de recurso muitos processos criminais são anulados, desde o início,por conta de inépcia acusatória.


2- Conceito e requisitos formais da denúncia

A denúncia é um ato processual, escrito ou oral, privativo do Ministério Público (dominis litis), que a maneja nos crimes de ação penal pública, condicionada ou incondicionada, através da qual a pretensão punitiva do Estado é deduzida perante o Estado-juiz. Segundo classificação de Paulo Lúcio Nogueira (1991, p. 55), pode ser própria ou genuína quando o promotor pede aplicação da pena ao acusado penalmente imputável; imprópria, em que o promotor oferece denúncia contra o louco já declarado desde a fase policial, quando ele está isento de pena (CP, art. 26), e deveria ter pedido apenas a aplicação de medida de segurança; cumulativa, quando a denúncia engloba vários crimes praticados pelo denunciado; alternativa, aquela que imputa fatos certos e determinados, mas onde a classificação é alternativa, já que cabe ao julgador capitular devidamente o fato descrito [04]. Há também a chamada denúncia vazia, quando a peça inicial, embora narrando fato delituoso, apresenta-se em descompasso com os elementos probatórios constantes do inquérito policial ou resulta de pura criação mental da acusação (Hamilton, 1998, p. 12).

O art. 41 do Código de Processo Penal traz as diretrizes básicas para a confecção de uma peça acusatória formal: "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

O Código de Processo Penal Militar é mais minudente quanto às exigências dos requisitos formais da denúncia. Dispõe o art. 77 do referido estatuto: "A denúncia conterá: a) a designação do juiz a que se dirigir; b) o nome, idade, profissão e residência do acusado, ou esclarecimentos pelos quais possa ser qualificado; c) o tempo e o lugar do crime; d) a qualificação do ofendido e a designação da pessoa jurídica ou instituição prejudicada ou atingida, sempre que possível; e) a exposição do fato criminoso, com tôdas as suas circunstâncias; f) as razões de convicção ou presunção da delinqüência; g) a classificação do crime; h) o rol das testemunhas, em número não superior a seis, com a indicação da sua profissão e residência; e o das informantes com a mesma indicação".

A denúncia, no dizer de João Mendes de Almeida Júnior (1959, p. 183), é uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando)... Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear, as testemunhas e informantes.

A peça acusatória deve ser elaborada de tal forma que responda às seguintes perguntas: Como? Quando? Quem é o culpado? Qual o crime? Onde foi cometido? Com que cúmplices? Por que motivo?

Abaixo analisamos, um a um, os requisitos formais previstos em lei para que a peça acusatória seja apta e válida.

2.1-Exposição (descrição) do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias: imputação

O acusador descreve acontecimentos naturais que servem de base empírica à pretensão punitiva, e, nos quais, o elemento fundamental está na conduta comissiva ou omissiva do indiciado e não de terceiro (Shimura, 1991, p. 36; Tavares, 2002, p. 252). O réu não se defende deste ou daquele crime definido ou tipificado no Código Penal ou em qualquer outra lei penal, mas do fato criminoso imputado na denúncia ou queixa. Não basta que o denunciante repita as palavras da lei ou apresente uma descrição nebulosa, vaga e imprecisa.

A descrição do fato criminoso é uma espécie de núcleo intangível da peça acusatória, pois sequer o juiz pode modificá-lo, como ressaltado no art. 383, caput, com a nova redação conferida pela Lei n. 11.719, de 20.06.2008, ao tratar da emendatio libelli: "O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa…".

A acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação jurisdicional, motivo pelo qual o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido em que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva (quod non est in libello, non est in mundo). Os fatos descritos na denúncia ou queixa delimitam o campo de atuação do poder jurisdicional (Mirabete, 2000, p. 164; Fragoso, 1982, p. 426). Mas por outro lado também, o teor da acusação com a descrição precisa e determinada dos fatos criminosos fornece ao acusado a possibilidade de manejar uma ampla defesa, pois proporciona ao defensor a oportunidade de orientar o denunciado para o interrogatório, na produção de provas e na condução estratégica de seu aparato defensivo. A imputação regular garante, em suma, a paridade de armas no evoluir do processo e evita que o acusado faça prova negativa sobre a prática do crime (inversão inconstitucional do ônus da prova).

A acusação deve se apresentar de forma clara e completa, formulada de maneira que o réu possa contrapor-se a seus termos. É essencial, portanto, a descrição do fato delituoso em todas as suas circunstâncias. A imputação, vale repetir, centra-se no fato histórico que deve ser, necessariamente, localizado no tempo e no espaço, sendo descrito, com pormenores, em relação às circunstâncias que cercaram sua concreta realização [05]. Uma descrição incompleta, dúbia ou de um fato atípico gera a inépcia da denúncia e nulidade do processo, com a possibilidade de trancamento através de habeas corpus, se o juiz não rejeitar desde logo a inicial. Para alguém preparar e realizar sua defesa com plenitude é preciso que esteja claramente descrito o fato do qual irá defender-se (Filho, 1991, p. 64). A defesa não pode ser prejudicada pelos defeitos da acusação.

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2.2- Qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo

É necessário vir exposta na denúncia a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. Qualificar é apontar o conjunto de qualidades que individuam a pessoa, nele incluindo-se o nome, o cognome, nome de família ou apelido, pseudônimo, estado civil, filiação, cidadania, idade, sexo e estado físico. Não impede o oferecimento da denúncia a ignorância a respeito de algumas dessas qualidades e mesmo do nome do imputado se é possível reproduzir na peça vestibular elementos que possam individuar a pessoa do imputado (idade, sexo, características físicas, dados particulares, sinais de nascença, alcunha etc) (Mirabete, 2000, p. 124).

A lei exige que sejam fornecidos dados capazes de identificar e individualizar o acusado. Assim, além da qualificação comum (nome completo, nacionalidade, estado civil, profissão, nº. do RG e do CPF e endereço completo), é necessário indicar a filiação, naturalidade, características físicas como deformidades, apelidos etc.

Não dispondo de meios para qualificar ou não tendo informações suficientes para individualizar o acusado, o MP deve ou pedir o arquivamento ou requisitar diligências diretamente da polícia (art. 47, CPP), objetivando arrecadar mais dados para lograr individualizar o eventual acusado.

Denúncia oferecida sem a qualificação do acusado ou com dados insuficientes para o identificar é inepta, podendo ser rejeitada pelo juiz ou ensejar o trancamento da ação proposta, desde que seja impossível obter os dados necessários à identificação. Todavia, a impossibilidade de identificação do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos não obstará o recebimento da denúncia e prosseguimento da ação penal, desde que certa a sua identidade física. A qualquer tempo, no curso do processo, do julgamento ou da execução da sentença, se for descoberta a sua qualificação, far-se-á a retificação, por termo, nos autos, sem prejuízo da validade dos atos precedentes (art. 259, do CPP) [06].

A identidade física não pode se restringir a meros dados genéricos como ser moreno claro, forte ou contar aproximadamente com certa idade. Exige-se para que se tenha uma perfeita identidade fisica dados como idade, sexo, características físicas, dados particulares, sinais de nascença, alcunha etc.

O erro na identificação do acusado não gera inépcia da denúncia se, do defeito, não advém prejuízo à sua defesa ou à sua identificação [07].

2.3- Classificação do crime

A classificação ou definição jurídica do crime não é elemento fundamental da peça acusatória, chega a ser irrelevante para a sua higidez jurídica. O perfeito enquadramento do fato criminoso descrito às normas legais é tarefa do juiz (iura novit curia ou narra mihi factum dabo tibi jus). Esse dogma insere-se na teoria geral do processo, aplicando-se tanto ao processo civil quanto ao processo penal. O nomen iuris que se dê a uma categoria jurídica ou o dispositivo de lei que se invoque para caracterizá-la são irrelevantes, se acaso equivocadamente indicados. O que o juiz necessita são os fatos, pois o direito ele conhece. A subsunção do fato à norma é dever do juiz; a categorização jurídica do fato é tarefa do julgador (Passos, 1975, p. 219).

A correlação ou congruência se verifica entre a sentença e o fato criminoso descrito (causa petendi), e não entre a sentença e a classificação jurídica dada (Oliveira, 2008, p. 507). E a defesa deve concentrar suas energias nos fatos narrados e não na capitulação legal contida na peça inicial. A jurisprudência é pacífica neste sentido:

"Eventual erro na capitulação legal pode ser corrigido no momento da sentença, ex vi do art. 383 do CPP, sem causar prejuízo à ampla defesa e ao contraditório, porquanto o réu se defende dos fatos a ele imputados, e não da classificação do crime feita na denúncia" [08].

A classificação oferecida pela denúncia não passa de um esboço, de uma proposta, até porque o Ministério Público ainda não possui todas as informações sobre o fato, mas apenas o suficiente para propor a ação penal, podendo definir conduta que ao longo da instrução penal, com os dados complementares trazidos aos autos, possa se descaracterizar. A classificação provisória não vincula o juiz, que pode alterá-la (emendatio libelli). O limite do julgamento que decide sobre a acusação está no fato descrito atribuído ao acusado.

Portanto, sendo provisória a classificação da denúncia, o erro ou omissão na capitulação do delito não a contamina, não ocorrendo inépcia. O essencial é que o fato atribuído ao acusado esteja descrito corretamente na inicial, pois ele se defende desse fato e não da capitulação provisória constante da inicial (Franco/Stoco, 2004, p. 339)

Embora irrelevante para a admissibilidade da denúncia, a errônea classificação legal do crime pode gerar sérios prejuízos para a defesa como não ter direito ab initio à fiança, à liberdade provisória, à suspensão condicional do processo etc.

2.4- Rol de testemunhas

O rol de testemunhas é facultativo. A obrigatoriedade, que vincula o órgão acusatório, é o oferecimento do rol na denúncia, razão pela qual, não o fazendo, preclui a oportunidade de requerer a produção de prova testemunhal (Nucci, 2007, pp. 145-146). Portanto, denúncia sem rol de testemunhas não é inepta nem nula, pois não há qualquer prejuízo ao exercício da ampla defesa. Não existindo prejuízo para o réu, não se pode falar em nulidade, em face do princípio do pas de nullité sans grief [09], acolhido no art. 563 do Código de Processo Penal ("Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa").

A própria redação da norma legal ("A denúncia ou queixa conterá... quando necessário, o rol das testemunhas") confirma o caráter facultativo do rol de testemunhas. E isso se dá porque em muitas ocasiões, inexistem testemunhas sobre o fato ou, no caso concreto, o fato não exige prova testemunhal para a sua comprovação.

2.5- Endereçamento

Embora a lei não contenha expressamente a exigência, a peça acusatória deve indicar o órgão jurisdicional ao qual é dirigida, obedecendo às regras processuais que fixam a competência (art. 69 e ss., CPP). O erro do endereçamento não gera nulidade, nem inépcia da denúncia (cf. tópico 8.4).


3- Requisitos substanciais ou materiais da denúncia: suporte probatório mínimo

Além dos requisitos formais previstos no art. 41 do CPP, a denúncia deve obedecer a requisitos substanciais indicativos da autoria e materialidade [10]. O Estado, através do Ministério Público, não pode destravar a persecução penal sem ter um suporte mínimo indiciário apto para definir a autoria e precisar a materialidade. A peça acusatória, portanto, não pode ser elaborada sobre suspeitas e suposições. Diante da ausência de suporte probatório mínimo (quando é possível divisar, à primeira vista, sem a necessidade de exame aprofundado, a inexistência de prova da materialidade e de indícios de autoria), temos o que a doutrina chama de ausência de justa causa, podendo a inicial acusatória ser rejeitada ou trancada a ação proposta.

Entende-se por justa causa a presença de um substrato probatório mínimo capaz de justificar o desencadeamento do exercício da pretensão acusatória, ou seja: indícios razoáveis de autoria e prova da materialidade de um fato típico e ilícito, que legitimem a possibilidade de incidência do direito de punir do Estado.

"Denúncia amparada em mera suposição da vítima, que, no entanto, não restou corroborada pelo restante da prova carreada aos autos. A simples constatação de que o acusado é propenso à prática de delitos não tem o condão de, isoladamente, pressupor sua autoria em um delito sobre o qual não lhe recaiam quaisquer outros indícios de participação. E sem tais elementos não há justa causa para instauração da ação penal, pois do contrário estaríamos a admitir a propositura de processos criminais contra qualquer pessoa, com base apenas em suspeitas e suposições. Mesmo que se possa dizer que a alegação da denúncia poderia eventualmente ser comprovada em juízo, deve haver um rastro inicial mínimo, que faça com que nisso possamos acreditar. Caso contrário, bastaria que se denunciasse para que depois se buscassem aqueles elementos que minimamente já deviam estar presentes como condição de procedibilidade. Ausência de fumus boni iuris para que a ação penal tenha condições de viabilidade" [11].

O Ministério Público, para acusar formalmente alguém, deve estar respaldado por um suporte probatório idôneo, a fim de evitar constranger alguém sem justa causa. A mera descrição, na denúncia, da figura típica imputada ao acusado mostra-se insuficiente, leviana e caracteriza constrangimento ilegal a seu status libertatis. Para evitar que o acusado sofra o tormento de enfrentar uma ação penal, necessário se faz que ela venha embasada num mínimo de provas a determinar a idoneidade ictu oculi da acusação (Franco/Stoco, 2004, pp. 339-340).

A denúncia não pode ser uma mera criação mental do Ministério Público e não pode decorrer de simples suposição ou conjectura. O homem responde penalmente pelo que faz ou deixa de fazer. Repele-se, nesse âmbito, a simples suposição.

"Meras conjecturas sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação estatal. É que, sem base probatória consistente, dados conjecturais não se revestem, em sede penal, de idoneidade jurídica, quer para efeito de formulação de imputação penal, quer para fins de prolação de juízo condenatório" [12].

Para se chegar à imputação, é forçoso obedecer a uma ordem natural e legal do procedimento acusatório: primeiro a obtenção de indícios idôneos sobre o fato e a autoria, depois a formulação da acusação. O que não se pode é inverter o princípio e a regra, construídos com tanto sacrifício na longa história da civilização, qual seja, o de que o Estado só pode ter autoridade para impor constrangimento a seus súditos se esse constrangimento for efetivamente legal, com observância das regras jurídicas, principalmente as de índole constitucional [13].

O que acontece se a denúncia não atender os requisitos formais previstos no art. 41, do CPP, embora presentes os requisitos materiais (indícios de autoria e prova da materialidade)? Neste caso, deve a denúncia ser julgada apenas inepta, de forma a permitir o oferecimento de outra inicial acusatória, não se justificando o trancamento da ação penal por falta de justa causa.

Abaixo apresentamos, passo a passo, o modelo padrão de uma denúncia (atendendo às sete circunstâncias: quem?, quando?, onde?, por quê meios?, que?, por quê?, de que modo?):

  • Endereçamento (indicação do órgão judicial – competência, art. 69 e ss, CPP)

  • Legitimado ativo (Ministério Público – art. 129, I, CF)

  • Qualificação (art. 41, CPP)

  • "Quis" (quem? = denunciado + ação transitiva)

  • "Quando" (Quando? = caracterização da ação no tempo)

  • "Ubi" (Onde? = lugar onde praticou; caracterização da ação no espaço)

  • "Quibus auxiliis" (Por que meios? = meios empregados)

  • "Quid" (O que? = malefício que produziu)

  • "Cur" (Por quê? = motivo do crime, intenção)

  • "Quomodo" (De que modo? = maneira como praticou o crime)

  • A Classificação legal do crime (art. 41, CPP)

  • Pedido de recebimento da denúncia, citação e condenação

  • Proposta de suspensão condicional do processo (quando cabível)

  • Rol de testemunhas (art. 41, CPP)

  • Assinatura do promotor

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Estudo sobre os aspectos formais/substanciais da denúncia e temas correlatos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2590, 4 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17086. Acesso em: 22 nov. 2024.

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