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Extrafiscalidade: crise econômica mundial e o Estado Democrático de Direito

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Agenda 24/08/2010 às 14:03

4.A extrafiscalidade na legislação infraconstitucional

Ao legislador infraconstitucional cabe disciplinar algumas das previsões de extrafiscalidade que se encontram no texto Constitucional.

É o que ocorre, por exemplo, em relação à previsão de tratamento diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte, que se encontra manifestado no art. 146, III, "d" do texto constitucional. Durante algum tempo a Lei Federal nº. 9.317, de 05 de dezembro de 1996, e suas alterações posteriores, regulou a adoção de um tratamento diferenciado, simplificado e favorecido aplicável às microempresas e às empresas de pequeno porte, relativo aos impostos e às contribuições mencionadas na lei.

Tal lei foi revogada pela Lei Complementar nº. 123, de 14 de dezembro de 2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dando nova regulamentação ao tratamento tributário mais benéfico para tais empresas.

A função extrafiscal dos tributos, apesar de estar prevista em muitos momentos na Constituição, não fica limitada às hipóteses ali expressamente apresentadas. O legislador infraconstitucional, dentro de sua competência e tendo como base os valores tutelados constitucionalmente, pode criar outras normas inspiradas nesta função.

A lei estadual nº. 14.937, de 23 de dezembro de 2003, por exemplo, dispõe sobre o IPVA no Estado de Minas Gerais e disciplina no art. 7º, § 6º, que os veículos movidos exclusivamente a álcool terão uma redução de 30% na base de cálculo do imposto. Nesse caso, observa-se a atuação estatal utilizando a função extrafiscal dos tributos com o objetivo de estimular a utilização de carros que são movidos por um combustível menos poluente. O Estado está então cumprindo uma de suas missões que é a tutela do meio o ambiente.

A Lei Federal nº. 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC, também conhecida como lei Rouanet, por sua vez, faculta às pessoas físicas e jurídicas a opção de deduzir do imposto de renda devido à União, as doações ou patrocínios promovidos a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura.

Já a Lei Federal nº. 11.438, de 29 de dezembro de 2006, dispõe sobre incentivos e benefícios para fomentar as atividades de caráter desportivo. Determina que no período entre o ano-calendário de 2007 e o ano-calendário de 2015, poderão ser deduzidos do imposto de renda devido os valores despendidos em patrocínios ou doação no apoio a projetos desportivos e paradesportivos aprovados pelo Ministério do Esporte.

A Lei Federal nº. 11.196, de 21 de novembro de 2005, chamada de "Lei do Bem", dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação tecnológica, ficando reduzida a zero as alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Confins sobre a receita bruta de venda a varejo de determinados produtos, conforme prevê o art. 28 dessa lei.

Neste sentido existem ainda diversas outras normas concebidas pelo legislador infraconstitucional que estabelecem cobranças tributárias diferenciadas com função extrafiscal, estando facultado aos legisladores o estabelecimento de novos regimes jurídicos desde que respeitados os limites constitucionais.


5.Os objetivos do Estado previstos na Constituição da República

O Estado não pode ser instrumento de um governo na defesa de seus próprios interesses, há um fim maior que deve permear a sua existência.

O fim (finalidade) do Estado Brasileiro está determinado pelo mesmo documento que o institui. Na Constituição encontram-se os fins (objetivos) do Estado que devem ser respeitados pelos três poderes que o constituem, Executivo, Legislativo e Judiciário.

São esses fins que legitimam a existência estatal e que também legitimam a utilização do tributo, seja com função fiscal ou extrafiscal.

Inicialmente, cabe destacar que o Estado tem como dever o respeito e a realização de todas as normas presentes no ordenamento jurídico, procurando garantir a efetividade dos direitos, especialmente aqueles assegurados na Constituição. Nesse sentido, as normas constitucionais tratam diretamente de aspectos que estão vinculados a competências e responsabilidades próprias do Estado em suas três esferas: União, Estados e Municípios.

No próprio preâmbulo do texto constitucional já é destacada a instituição de um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

Se o Estado tem o papel de assegurar tantos direitos, vê-se que deve assumir uma postura ativa, uma vez que, conforme demonstra a história, o Estado Liberal ou Estado Mínimo se mostrou incapaz de proporcionar esses direitos.

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Dentre outros, as normas constitucionais consignam como fundamentos da República Federativa, organizada político-administrativamente pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios: a cidadania, art. 1º, II, a dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, art. 1º, IV.

A Constituição Federal apresenta ainda como objetivos da República a garantia do desenvolvimento nacional, art. 3º, II, a construção de uma sociedade livre, justa e solitária, art. 3º, I, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, art. 3º, III.

A Constituição, no Capítulo II, apresenta uma série de Direitos Sociais que precisam ser assegurados pelo Estado, dentre eles estão os direitos trabalhistas, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Em todos estes fins se destaca uma questão que é fundamental, o interesse público, entendido não apenas como o interesse da coletividade, mas também o interesse formado pelo conjunto de interesses dos particulares. O Estado deve atender aos anseios, necessidades da coletividade de seus cidadãos do presente e do futuro. Não há dúvida que a identificação desse interesse pode ser tarefa muito árdua exigindo inclusive uma complexa interpretação de valores, princípios e regras, entretanto o Estado tem o dever de não se afastar da mesma.

Na construção de um pólo industrial, por exemplo, pode ocorrer a promoção de alguns desses fins estatais como o desenvolvimento econômico, a geração de empregos, estímulo à produção de riquezas, mas ao mesmo tempo é possível que tal implantação provoque também graves repercussões ambientais que comprometem o destino de gerações.

As normas constitucionais, principalmente os princípios, exigem então uma detida e apurada interpretação em consonância com a realidade social, para que se possa identificar o verdadeiro interesse público que deverá nortear a ação Estatal.

De que meios o Estado se vale para concretizar seus objetivos? O Estado Moderno é constituído, ao menos idealmente, por poderes independentes e harmônicos entre si, que atuam em conjunto, mas com funções distintas. Ao poder Legislativo recai a função preponderante de legislar, criando os dispositivos legais que vão regular a atuação Estatal e dos particulares, bem como a função de fiscalizar a atuação do Poder Executivo. Ao Poder Executivo incumbe a função primordial da prática dos atos de chefia de estado, de governo e de administração pública. Já o Poder Judiciário tem a função de administrar a Justiça, garantindo a aplicação do ordenamento jurídico, em especial resguardando o respeito às determinações constitucionais.

De todas essas formas o Estado tem o dever de atuar na defesa do interesse público que aparece na Constituição das mais diversas maneiras, não comprometendo, entretanto, a atuação ou os direitos do particular.


6.Conclusão

O Estado Democrático de Direito é uma obra em construção, sustenta-se, em detrimento do poder, da força, do temor, da crença na divindade, na primazia do direito como elemento instrumental e organizador da sociedade e legitima-se pela participação democrática na formação, interpretação e aplicação de tais direitos.

A esse Estado incumbe a responsabilidade não apenas de respeitar tais direitos, mas também de promover uma verdadeira realização dos mesmos, assegurando que o ordenamento jurídico não seja constituído de normas vazias, destituídas de efetividade.

A legislação tributária contemporânea deve estar então adequada a esse novo contexto, cumprindo sua missão no sustento financeiro do Estado com a arrecadação, por meio de sua função fiscal, e também, oportunamente, sendo utilizada como mecanismo de implementação dos valores abarcados pelo texto constitucional por meio da indução de condutas provocada por sua função extrafiscal.

Naturalmente, a implementação do Estado Democrático de Direito, está muito além da mera adoção de normas tributárias com viés extrafiscal. A extrafiscalidade não é o único, nem mesmo pode ser considerada como o principal recurso para a implementação desse Estado que, para sua construção, requer diversas outras medidas seja no âmbito jurídico, político, social ou até mesmo individual.

Conforme demonstrado, cabe entretanto reconhecer a extrafiscalidade como um importante instrumento para que os tributos possam colaborar na implementação desse Estado Democrático de Direito ao estimular a satisfação de importantes valores eleitos pela sociedade como dignos de proteção e sedimentados como direitos na Constituição da República.


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Sobre o autor
Flávio Lúcio Chaves de Resende

Procurador da Fazenda Nacional desde 2008. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Pós-Graduando Lato Sensu em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Rede LFG e em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Rede LFGexperiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, Constitucional, Administrativo e Processo Civil. Ex-Gestor Fazendário da Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESENDE, Flávio Lúcio Chaves. Extrafiscalidade: crise econômica mundial e o Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2610, 24 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17255. Acesso em: 22 nov. 2024.

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