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Os direitos dos consumidores na cessão de crédito

Agenda 04/09/2010 às 14:07

Em que medida uma cessão de crédito poderia ser incompatível com os direitos dos consumidores? Esta é a pergunta a qual tentaremos responder, confrontando as normas e princípios constantes do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor pertinentes ao tema.

A cessão de crédito é um negócio jurídico celebrado entre o titular de um crédito, denominado cedente, e um terceiro, o cessionário, para quem o crédito é transferido. Pode ser realizado a título gratuito ou oneroso, e por ele se transmite não só o crédito, mas também todos os seus acessórios, salvo se houver disposição em contrário das partes, nos termos do art. 287 do Código Civil.

De acordo com o art. 286 do mesmo Código, a cessão só não poderá ser realizada se a isso se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor, sendo que nesta última hipótese a cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se no instrumento representativo da convenção não constar cláusula vedando-a.

Para ser eficaz em relação a terceiros, a cessão deve ser celebrada mediante instrumento público ou particular que contenha a indicação do lugar em que foi celebrado, a qualificação das partes, a data e o objetivo da cessão, com a designação e a extensão do crédito conferido, conforme pode se extrair da combinação dos arts. 288 e 654, § 1°, ambos do Código Civil.

Já para ser eficaz em relação ao devedor, a cessão de crédito deve lhe ser notificada, "mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita." (art. 290 do Código Civil)

Diz ainda o art. 294 do Código que, uma vez notificado da cessão, o devedor pode opor as exceções que tenha contra o cedente:

"O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente." (grifos nossos)

Nas lições do consagrado doutrinador Silvio Venosa, recai sobre o devedor o ônus de manifestar-se, e logo, para ressalvar seus direitos:

"Assim, se o devedor podia alegar erro ou dolo, por exemplo, contra o cedente, poderá fazê-lo contra o cessionário. Isto porque o crédito se transfere com as mesmas características, caso contrário, estaria aberto um grande caminho para a fraude." (. . .) "O devedor deve, no entanto, tão logo notificado, alertar o cessionário que tem exceções a opor, sob pena de perder o direito. A lei não fixa prazo; o momento em que tem conhecimento da cessão deve ser examinado, com prudente arbítrio do juiz, em cada caso."

(Direito Civil, Ed. Atlas, São Paulo, v. 2, 6ª ed., 2006, p. 150)

Entretanto, em não havendo manifestação do devedor, isto não significa que o crédito transferido estará purgado dos vícios originais, pois ninguém pode transferir direitos além daqueles que detém. Ademais, decompondo-se o texto do referido artigo, tem-se:

(I) O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem.

(II) O devedor pode opor também as exceções que tinha contra o cedente, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão.

Ou seja, se cobrado pelo cessionário, o devedor poderá argüir as exceções que tenha contra este (I), bem como as exceções que tinha contra o cedente, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão (II), desde que tenha se manifestado quando notificado da cessão, conforme condição reconhecida pela doutrina.

No Recurso Especial n.° 780.774/SP, que teve como relatora a Eminente Ministra Nancy Andrighi, ressalta-se magistralmente que a preclusão decorrente da falta de manifestação do devedor, após a notificação da cessão, restringe-se às exceções pessoais contra o cedente, e não contra o próprio crédito, o qual mantém a mesma natureza com que foi transmitido. Transcrevemos o seguinte trecho do v. acórdão:

"Disso decorre que o alcance dos arts. 1.072 do CC/16 e 294 do CC/02 não pode ser estendido a ponto de obrigar o devedor a manifestar, no momento da cessão que lhe foi comunicada extrajudicialmente, todas as suas defesas quanto à existência da dívida, sob pena de perder o direito de fazê-lo posteriormente. Não se pode extrair implicitamente do texto da lei a imposição a uma das partes a renúncia tácita de um direito que lhe assista. O silêncio do devedor não convalida, para o credor cedente, a transferência de mais do que efetivamente tem." [1]

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Apesar disto, a inércia do devedor diante da notificação terá graves conseqüências, como a preclusão do direito de argüir o direito à compensação e a exceção de contrato não cumprido contra o cedente, como foi salientado na decisão acima referida.

Estas sanções, perfeitamente cabíveis nas relações jurídicas reguladas pelo Código Civil, são, em nosso entender, incompatíveis com os princípios decorrentes do Código de Defesa do Consumidor.

Primeiramente, porque fere o princípio da hipossuficiência do devedor-consumidor, que ao ser notificado da cessão, ficaria com o ônus de provar os vícios da relação jurídica, dificultando a defesa de seus direitos, o que é contrário ao que determina o art. 6°, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor.

Em segundo lugar, se o crédito cedido sem oposição se tornasse expurgado dos vícios originais e precluso em relação às exceções pessoais contra o cedente, ter-se-ia uma hipótese em que um negócio jurídico entabulado entre o fornecedor de produto ou serviço e um comprador de crédito seria idôneo para afastar o direito à reparação previsto no Código de Defesa do Consumidor, apesar deste determinar que ela deve ser efetiva, inafastável e solidária, (art. 6°, inc. VI, art. 25 e art. 7°, parágrafo único). Neste sentido:

"PROCESSUAL CIVIL - RESPONSABILIDADE CIVIL - DIREITO DO CONSUMIDOR - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA REJEITADA - FALHA NO REPASSE DO PAGAMENTO - INCLUSÃO INDEVIDA NOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO - DANO MORAL - PRESUNÇÃO - QUANTUM INDENIZATÓRIO - SENTENÇA MANTIDA.

1.É legitimada para figurar no pólo passivo da ação indenizatória, a empresa promovente direta do ato apontado como evento danoso.

2.Em contrato de cessão de créditos, no qual os créditos se originaram de relação consumerista, eventual desencontro no repasse pela empresa cedente à empresa cessionária dos valores pagos pelo consumidor, não tem o condão de elidir a responsabilidade da segunda pelos danos decorrentes de eventual negativação indevida do consumidor por ela própria promovida. Na espécie, incide, por força do art. 7º, parágrafo único, do CDC, a solidariedade entre as rés, cedente e cessionária, ambas ofensoras.

3.Comprovada nos autos, e não impugnada, a anterior quitação, indevida é a superveniente inscrição do nome do consumidor nos cadastros de restrição ao crédito.

(. . .)

6.Preliminar rejeitada. Recurso conhecido e não provido."

(TJ/DF 20080110814118APC, Relator HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, 3ª Turma Cível, julgado em 20/05/2010, DJ 31/05/2010 p. 124) (grifo nosso)

Basta imaginar como seria oneroso para um consumidor, em sua natural condição de hipossuficiente, se manifestar diante da notificação da cessão de sua dívida bancária para uma empresa especializada na compra de créditos. Não teria ele como argüir questões complexas como a aplicação de taxas abusivas de juros, a cobrança de encargos ilegais, ou qualquer outro vício do negócio jurídico inicial.

Seria claramente desproporcional se o direito à redução do valor da dívida ou até mesmo à restituição das quantias pagas a maior não pudessem ser levantados como defesa contra o cessionário, em razão do devedor-consumidor não as ter alegado assim que recebeu a notificação da cessão.

Ora, os referidos Códigos atraem-se e complementam-se, em uma simbiose protetiva dos direitos do consumidor. Esta é a única forma de interpretação que se coaduna com os modernos cânones da hermenêutica, pois interpretação diversa poderia levar à conclusão de que as normas do novo Código Civil a respeito da cessão de créditos poderiam ter revogado, tacitamente, algumas das normas de proteção conferida pelo Código de Defesa do Consumidor, o que seria absurdo.

O microssistema criado pelo Código de Defesa do Consumidor deve coexistir harmoniosamente com as demais normas do ordenamento jurídico; contudo, o Código consumerista prevalece no caso de conflito entre eles. Como exemplo, pode-se citar a Convenção de Varsóvia, cuja limitação da indenização por danos morais não prevalece diante das regras mais vantajosas do Código Consumerista, conforme é pacífico no Superior Tribunal de Justiça:

"GRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EXTRAVIO DE BAGAGEM. INDENIZAÇÃO AMPLA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

1. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que, após a edição do Código de Defesa do Consumidor, não mais prevalece a tarifação prevista na Convenção de Varsóvia. Incidência do princípio da ampla reparação. Precedentes.

2. Agravo regimental desprovido."

(AgRg no REsp 262687/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 22/02/2010)

Do supra transcrito acórdão extrai-se o seguinte trecho:

"Transcrevo, a propósito, lição de Cavalieri citada pelo saudoso Min. MENEZES DIREITO, quando do julgamento do Resp 209.527/RJ, verbis :

‘Em conclusão: é impertinente a regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali , porque, tratando-se de relações de consumo, o Código do Consumidor é a lei própria, específica e exclusiva: a lei que estabeleceu a Política Nacional de Relações de Consumo, consolidando em um só diploma legal todos os princípios pertinentes à matéria, em razão de competência que lhe foi atribuída pela própria Constituição Federal. E, na matéria de sua competência específica, nenhuma outra lei pode a ele (Código) se sobrepor ou subsistir. Pode apenas coexistir naquilo que com ele não for incompatível.’"

A notificação gera o efeito de informar a quem se deve pagar validamente, por força do art. 292, do Código Civil, por ser tal obrigação compatível com o Código de Defesa do Consumidor, porém é ineficaz quanto a gerar preclusão do direito do devedor-consumidor opor exceções pessoais que tinha contra o cedente no momento da cessão.

Outra situação relevante ocorre quando o devedor-consumidor não é notificado da cessão, pois para ele tal negócio jurídico é ineficaz, mantendo-se, sob o seu ângulo, inalterada a titularidade do crédito (art. 292, CC), de forma que é tranqüilo o entendimento segundo o qual o devedor-consumidor poderá argüir contra o cessionário todas as exceções pessoais que tenha contra o cedente, sem a existência de qualquer preclusão deste direito.

Desta forma, entendemos que para a harmonização do Código de Defesa do Consumidor com o Código Civil, no que tange à cessão de créditos, deve-se reconhecer a ineficácia da notificação da cessão para os fins de gerar preclusão do direito do devedor-consumidor opor exceções pessoais que tinha contra o cedente no momento da cessão, pois entendimento contrário violaria o princípio da hipossuficiência e do direito à efetiva, inafastável e solidária reparação dos danos sofridos.


Notas

[1] (REsp 780774/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/10/2008, DJe 23/10/2008)


Bibliografia

VENOSA, Silvio. Direito Civil, Ed. Atlas, São Paulo, v. 2, 6ª ed., 2006.

Sobre o autor
Eduardo Felix da Cruz

Advogado, especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Eduardo Felix. Os direitos dos consumidores na cessão de crédito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2621, 4 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17337. Acesso em: 19 dez. 2024.

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