Resumo: O presente trabalho resume-se num estudo crítico e analítico sobre o aparato jurídico para a aplicação das medidas de segurança.
Palavras-chave: Medidas de segurança; Constituição; Jurisprudência.
Sumário: 1. Considerações históricas sobre a relação entre Direito Penal e Psiquiatria 2. As medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro 3. O STF e as medidas de segurança 4. Quais os fundamentos para a aplicação das medidas de segurança? 5. As teorias da pena são capazes de justificar a aplicação das medidas de segurança? 6. Referências Bibliográficas
1. Considerações históricas sobre a relação entre Direito Penal e Psiquiatria
Thomas S.Szasz, professor de psiquiatria nos EUA, em sua obra "A fabricação da loucura" (1976), demonstra um ponto de vista interessante sobre a relação entre Direito e Psiquiatria. Fazendo uma comparação entre a situação das "bruxas" na época da Inquisição, e dos "loucos" na época da psiquiatria institucionalizada, o autor nos diz que as sociedades possuem problemas complexos, e para que todos os membros de tais sociedades tenham a sensação de que as soluções estão sendo encontradas, são "criados" bodes expiatórios, verdadeiros problemas com soluções prontas. Assim, as bruxas e os loucos seriam os problemas, e a fogueira da Inquisição, bem como os hospícios seriam as respectivas soluções. Na época da Inquisição os médicos eram chamados para analisar sinais corporais e diagnosticar se se tratava de doença ou bruxaria, mas com a institucionalização da psiquiatria, os médicos passam a ser chamados para atestar sobre a periculosidade de doentes mentais.
Com o advento da Revolução Francesa, a Igreja Católica perde o poder político que adquiriu durante a Idade Média e, dentro do processo de retorno do homem ao centro do universo intelectual, o discurso científico ganha maior racionalidade. Dentro deste contexto, a loucura deixa de ser vista como uma manifestação da posse pelo demônio, e passa a ser vista como uma doença. Em 1876, sob influência da frenologia, Lombroso publica "L'uomo Delinquente", obra que estreita as relações entre Direito Penal e Psiquiatria com o advento dos "criminosos natos", indivíduos que ocupam o limite tênue entre crime e loucura.
2. As medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro
O instituto por ora estudado, bem como sua respectiva instituição, surgem, no Brasil, para resolver um problema prático gerado pelos criminosos natos lombrosianos. Tal problema resume-se na seguinte proposição: os degenerados (criminosos natos lombrosianos) são demasiadamente racionais para serem internados em hospícios, pois a capacidade de raciocínio de tais indivíduos pode atrapalhar as atividades da instituição; e ao mesmo tempo seria uma punição indevida levá-los à prisão e submetê-los ao convívio de criminosos que agiram com consentimento. Assim surge a necessidade de uma instituição capaz de acolher tais indivíduos, sem que existam quaisquer problemas. Para satisfazer tal necessidade, e, obviamente, com fundamento em discussões jurídicas, psiquiátricas, entre outras, surgem, no Brasil, os manicômios judiciários, instituições hibridas, sobre as quais Sérgio Carrara relatou-nos que "de certo modo, denunciava-se a prisão que existiria atrás de cada hospital."1.
Esta aproximação entre crime e loucura não gera apenas o problema sobre qual o destino a ser dado aos criminosos natos, mas faz também com que Direito Penal e Psiquiatria se relacionem intrinsecamente. Tal relação é problemática, pois os juízes não estão submetidos aos laudos periciais, mas para que seja aplicada a medida de segurança estes são necessários. Assim, os peritos são chamados para vislumbrar se o examinado é doente mental, e se tal doença torna-o perigoso. No entanto, inexiste, no nosso ordenamento jurídico, um conceito legal de periculosidade, o que gera estranheza no contexto constitucional em que estamos, por atribuir aos magistrados e peritos uma arbitrariedade típica de ditaduras.
Para tentar reduzir a referida arbitrariedade, há um conceito de periculosidade que parece ser unívoco entre juristas e peritos, segundo o qual a periculosidade é a probabilidade de uma pessoa causar dano à sociedade. A tentativa é frustrada, pois o conceito é amplo, havendo várias personalidades, não doentes em sua maioria, que se encaixam no mesmo. Logo, o filtro necessário para que as medidas de segurança sejam aplicadas, e para que o Estado não corra o risco de tornar-se o alienista machadiano, é a doença mental. Assim, os peritos, tais como os médicos na época da Inquisição, são chamados para fazer a "mágica" da exclusão, consistente em atestar que uma personalidade simplesmente fora do "normal", ou do esperado, é fruto de doença da mente, o que faz do indivíduo possuidor de tais características um imenso perigo em potencial para a sociedade, razão pela qual deve ser recolhido para que seja tratado e não cause nenhum dano à sociedade, nem a si mesmo.
O instituto das medidas de segurança é sui generis, não havendo consenso de conceituação e classificação entre os autores mais respeitados de Direito Penal do Brasil. Isso se deve a dupla natureza do instituto, ou seja, este se mostra ao mesmo tempo como uma medida administrativa-assistencial e como uma forma de punição. Se considerarmos apenas o aspecto assistencial, temos afronta ao texto constitucional, principalmente ao art. 5º, inciso II da CRFB "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", pois não há diploma legal dispondo que qualquer cidadão brasileiro deva se submeter a qualquer forma de tratamento sem consentir com o mesmo. Se abrirmos a exceção para submeter os portadores de distúrbios mentais ao tratamento indicado pelos peritos como ideal, estamos, conseqüentemente, abrindo precedente para que sejam negados aos doentes mentais outros direitos fundamentais. As conseqüências (in)constitucionais geradas pela consideração do aspecto penal das medidas de segurança serão analisadas a seguir.
3. O STF e as medidas de segurança
No HC 84.219, a Excelsa Corte brasileira teve a oportunidade de enfrentar aquela que é apontada por muitos como a principal inconstitucionalidade se considerarmos o aspecto punitivo das medidas de segurança, que é o limite temporal para a aplicação das medidas de segurança. De acordo com o § 1º do artigo 97 do CP, a aplicação das medidas de segurança será por tempo indeterminado, ferindo assim o texto constitucional que veda a pena de caráter perpétuo. A decisão da primeira turma, em clara tentativa de adequar o instituto à CRFB, foi no sentido de estabelecer, no caso concreto, o limite de 30 anos, esculpido no art. 75 do CP, sob a justificativa de que os indivíduos submetidos às medidas de segurança encontram-se custodiados pelo Estado, o que permite a comparação analógica entre pena e medidas de segurança.
Apesar da falta de limite temporal ser a afronta mais lembrada à norma normarum quando o assunto é as medidas de segurança, existem outras. Dentre estas, chama a atenção a afronta ao princípio do devido processo legal esculpido no art. 5º, inciso LIV da CRFB, dentre outras decorrentes. Percebe-se, que o ordenamento jurídico constitucional brasileiro atual prega a liberdade como regra e a prisão como exceção. No entanto, o art. 378 do CPP dita que o juiz pode, de ofício ou mediante requerimento de representante do Ministério Público, aplicar provisoriamente as medidas de segurança. Sob qual justificativa poderiam ser aplicadas, provisoriamente, medidas de segurança? O argumento de que há uma forte suspeita a respeito da insanidade mental do acusado não é suficiente, pois a CRFB garante a presunção de inocência como direito fundamental. A justificativa de que o acusado poderia prejudicar o curso normal do processo, também resta inconsistente, pois considerar que, um indivíduo sob o qual paira uma forte suspeita de não gozar das faculdades mentais plenas, possa manipular as provas do processo a seu favor, é algo difícil de se imaginar. E usar os mesmos fundamentos das medidas de segurança definitivas para justificar as provisórias, é uma afronta direta ao devido processo legal.
Há, ainda, como conseqüência do entendimento apresentado pela primeira turma do STF, uma contradição legal intransponível. O art. 26, caput, do CP, dispõe que "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.". No entanto, os arts. 96 e 97 do mesmo diploma dispõem que no caso do art. 26, será aplicada medida de segurança. Pelo entendimento supracitado do STF, que atribuiu caracteres penais às medidas de segurança, podemos concluir que, ao aplicarmos as medidas de segurança, estamos punindo indivíduos isentos de pena. Segundo Hegel "quanto mais incoerência e contradições houver no conteúdo das regras de um direito, menos possíveis serão as definições que devem conter as regras gerais, e estas tornam imediatamente visível, em toda a sua crueza, a contradição que é, aqui, a injustiça."2. Na lógica clássica, quando chegamos a uma contradição (punir e não punir os mesmos indivíduos), podemos concluir qualquer coisa, e a isso chama-se redução ao absurdo. Então, temos a constatação lógica de que a primeira turma do STF reduziu a aplicação das medidas de segurança ao absurdo, o que nos permite concluir que não existem mais razões para que as medidas de segurança continuem a ser aplicadas.
Corroborando com a conclusão pela falta de fundamento para a aplicação das medidas de segurança temos o advento, em 6 de abril de 2001, da lei nº 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, e, que em seu artigo 4º reza o seguinte: "A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.". Resta-nos então, tentar encontrar resposta para a pergunta que não quer calar:
4. Quais os fundamentos para a aplicação das medidas de segurança?
Foi demonstrado anteriormente que as medidas de segurança padecem da falta de fundamentos jurídicos. O jusfilósofo italiano Norberto Bobbio expôs bem o problema com o qual estamos lidando, da seguinte maneira: "O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político."3. Complementando a posição de Norberto Bobbio, e nos ajudando na busca pelos fundamentos da aplicação das medidas de segurança, Cesare Beccaria nos diz o seguinte: "A moral política não pode oferecer à sociedade qualquer vantagem perdurável, se não estiver baseada em sentimentos indeléveis do coração do homem."4.
Assim, o fundamento para que as medidas de segurança continuem a ser aplicadas, ainda que sem fundamentos jurídicos sustentáveis, é o sentimento intersubjetivamente compartilhado de medo que os indivíduos portadores de distúrbios mentais provocam nos indivíduos ditos normais. É o medo do desconhecido, do diferente que preferimos excluir de nossas vistas a trazer ao nosso convívio.
5. As teorias da pena são capazes de justificar a aplicação das medidas de segurança?
O trabalho agora desenvolvido procurará, dentre as principais teorias da pena, uma que seja capaz de justificar a aplicação das medidas de segurança. A teoria da prevenção geral é incapaz de justificar a aplicação das medidas de segurança, seja em seu aspecto positivo, seja em seu aspecto negativo. Em seu aspecto positivo, a prevenção geral ocorreria por gerar entre os cidadãos o sentimento de que está sendo construída uma sociedade sólida, com fulcro em leis que são devidamente respeitadas. A meu modesto juízo, sob este aspecto não justifica a aplicação das medidas de segurança, pois não sou capaz de vislumbrar a solidez de uma sociedade que exclui indivíduos que, reconhecidamente, são dignos de cuidados especiais, dentre eles, o convívio. A prevenção geral em seu aspecto negativo é também insuficiente para o nosso intento, por trazer em seu bojo a idéia de intimidação, que impediria o cometimento de novos crimes, pois os indivíduos aos quais se destinariam são incapazes de imaginar o suplício intimidador.
A teoria da prevenção especial tem como objeto o indivíduo submetido à pena, e visa evitar a reincidência, através da reinserção social (aspecto positivo), ou da neutralização pela prisão (aspecto negativo). Com a aplicação de internação como medida de segurança é impossível a reinserção social. Por todo o discutido até agora, a neutralização pela prisão parece ser a única justificativa para a aplicação das medidas de segurança. No entanto, tal neutralização é alvo das críticas já apresentadas, dentre várias outras. A teoria denominada absoluta, ou retributiva, retoma as leis de Talião, incompatíveis com Estado Democrático de Direito, razão pela qual não será considerada.
Chego à conclusão deste artigo com a impressão de que somente pré-conceitos justificam a aplicação das medidas de segurança. O crime que os portadores de distúrbios mentais cometem não respeitam o princípio da anterioridade, sua previsão está implícita nos corações dos cidadãos que se auto-intitulam normais. Qual o fato típico? Existir. Estes indivíduos ousaram nascer portando deficiências mentais. Repetimos as práticas espartanas em relação aos bebês "deformados", a única diferença é que esperamos eles crescerem um pouco e os enviamos aos manicômios judiciários, onde a chance de só saírem mortos é grande. Aos olhos da sociedade nunca terão vida.
6. Referências Bibliográficas
- CARRARA, Sérgio. Crime e Loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUERJ; São Paulo: EdUSP, 1998. p. 27.
- HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2.
- BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier 2004, p. 43.
- BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 1ª ed. São Paulo: Rideel 2003, p. 17.