Para nos aprofundarmos no tema, primeiro cabe-nos esclarecer o que vem a ser a chamada adesão vertical no sistema de registro de preços. Pois bem.
O Sistema de Registro de Preços não é uma modalidade licitatória, e sim um instrumento de "programação de compras ou serviços", por assim dizer, e é previsto pelo art. 15, II, §1º à 4º da Lei Federal nº 8.666/93, que, a seu turno, é regulamentado pelo Decreto Federal nº 3.931/2001.
Conceituando este importante instituto jurídico, destacamos duas excelentes definições, a seguir:
"O Registro de Preços constitui-se num meio operacional para a realização de compras de materiais, gêneros e equipamentos de uso comum, o qual se concretiza mediante prévio certame licitatório, visando obter os melhores preços e condições para a Administração." [01]
"Registro de preços é o sistema pelo qual, mediante licitação, seleciona-se proposta de preços unitários a serem utilizados pela Administração em contratos futuros destinados à aquisição de bens ou contratação de serviços, de consumo e uso freqüentes." [02]
É sabido, pois, que as atas de registros de preços são
oriundas de processos licitatórios regularmente instruídos, nas modalidades
concorrência ou pregão, conforme artigo 3º do Decreto
3.931/01, in verbis:
Art. 3
ºA licitação para registro de preços será realizada na modalidade de concorrência ou de pregão, do tipo menor preço, nos termos das Leis nºs 8.666, de 21 de julho de 1993, e 10.520, de 17 de julho de 2002, e será precedida de ampla pesquisa de mercado.
Também é de conhecimento de todos que atuam na área que estas atas possibilitam a adesão de outros órgãos participantes da licitação, ou daqueles que não participaram originariamente do certame que a ela deu origem, o que, neste caso, é popularmente chamado no meio jurídico de "carona".
Este instituto esta previsto no artigo 8º, também do Decreto 3.931/01, ipsis litteris:
Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.
Tais "caronas" podem ocorrer entre dois órgãos de mesma esfera de governo, o que a doutrina denomina de adesão horizontal; ou entre entes governamentais distintos, o que podemos chamar de adesão vertical.
E é exatamente neste ultimo que reside o cerne do presente debate, especialmente nas adesões de entes federais, visto que muitos têm sido os obstáculos causados pelas diversas interpretações dadas ao regulamento instituído pela Lei 3.931/01, e alguns deles de forma desfavorável à adesão de órgãos federais a atas estaduais ou municipais, a exemplo do Acórdão 6511/2009 – 1ª Câmara, e da Orientação Normativa numero 21 da AGU, entendimentos que serão brevemente rebatidos a seguir.
O Acórdão 6511/2009 do TCU – 1º Câmara:
O Acórdão 6511/2009 do Tribunal de Contas da União entendeu pela impossibilidade de um órgão federal aderir a uma ata de outra esfera de governo (adesão vertical).
Ao posicionar-se no processo de representação TC-027.147/2008-7, aquela Corte de Contas determinou à Embratur que:
1.6.2. abstenha de aderir ou participar de Sistema de Registro de Preços, se a gerência desse estiver a cargo de órgão ou entidade da Administração Pública Estadual, Municipal ou do Distrito Federal, em razão da devida publicidade que deve ser dada ao certame licitatório no âmbito da Administração Pública Federal, em obediência ao inciso I do art. 21 da Lei 8.666/93, bem como de conformidade aos princípios básicos da legalidade, da publicidade e da igualdade e à Orientação Normativa AGU 21/2209.
Data venia, discordamos do entendimento esposado pelos Ministros da 1ª Câmara do Tribunal de Contas da União, vez que a adesão vertical não foi em nenhum momento expressamente barrado pelo Decreto Federal, bem como não fere os princípios basilares da licitação.
Percebam que o Decreto 3.931/01 não foi claro no sentido de determinar que os órgãos "caroneiros" deveriam pertencer à mesma esfera de governo. Vejamos novamente o artigo 8º do Diploma:
Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem. (grifou-se)
Assim, podemos nos valer da inteligente interpretação dada pelo douto jurista Jorge Ulysses Jacoby Fernandes em seu artigo intitulado "Carona em sistema de registro de preços: uma opção inteligente para redução de custos e controle", conforme segue:
"... o Decreto nº 3.931/01 empregou o termo órgão ou entidade da Administração e esse último termo é conceituado restritivamente pela Lei nº 8.666/93, in verbis:
Art. 6º. Para os fins desta Lei, considera-se:
XI - Administração Pública - a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas;
XII - Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente.
Numa interpretação sistemática, contudo, como Administração é órgão da Administração Pública, parece possível a extensão além da esfera de governo. Assim, um órgão municipal poderá, atendidos os demais requisitos, servir-se de Ata de Registro de Preços federal ou vice-versa.
O autor arremata informando que "pode ser sustentada, sob o aspecto jurídico, a necessidade de norma autorizativa específica."
Concordamos que "pode", não "deve", haver norma específica, haja vista o entendimento de que a Lei de Licitações – Lei 8.666/93, bem como legislação correlata, deva ter alcance nacional para suprir eventuais vácuos legislativos que ocorrem nos Estados, Municípios ou no Distrito Federal.
Nesse sentido, transcrevemos os ensinamentos do Ministro Moreira Alves:
"Para se configurar o vazio que deve ser preenchido supletivamente pelas leis estaduais é preciso que não haja legislação federal, que abarca não somente as leis, mas também os diferentes atos normativos (decretos, regulamentos, circulares, portarias, etc.) que emanam da União Federal (RTJ, 115:1033)." [03] (grifo acrescido)
Na mesma linha de raciocínio é a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
"A Lei nº 8.666/93, apesar de todas as discussões sobre se suas normas são todas gerais ou não e, portanto, obrigatórias para Estados e Municípios, aplica-se à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme consta do seu art. 1º. E, ainda que houvesse alguma dúvida com relação a vários dispositivos da lei, dúvida não existe de que a matéria pertinente ao procedimento, em especial nos critérios de julgamento, é norma geral de observância obrigatória. Portanto, qualquer decreto regulamentador dessas normas tem que ter forçosamente o mesmo alcance. E como no preâmbulo já constava a referência a essa lei, parece indubitável que, regulamentando dispositivo da lei de licitações, o dispositivo teria alcance nacional." [04] (grifamos)
Destarte, em que pesem as opiniões doutrinárias acerca do assunto, entendemos que merece destaque aquela que é favorável a adesão vertical nos dois sentidos, considerando que o sistema de registro de preços surgiu como forma de proporcionar uma disputa de preços maior, tendo em vista a economia de escala conseguida para formalização dos preços que irão durar até 12 meses.
Com efeito, na prática, angariados os melhores preços de mercado em determinada licitação – normalmente na modalidade pregão, onde é possível a redução substancial dos preços – é conveniente que a ata decorrente seja compartilhada com outros órgãos da Administração Pública, inclusive da esfera federal, mesmo que tal registro tenha sido formalizada em um Estado, Município ou no Distrito Federal.
Por este motivo, e de acordo com a doutrina alhures destacada, resta evidente que o Decreto Federal nº 3.931/2001, que regulamenta o Sistema de Registro de Preços, é aplicável não só à União e aos órgãos que integram a Administração Indireta Federal, como também à Administração Pública Direta e Indireta de Estados, Municípios e do Distrito Federal.
Forçoso concluir, pela interpretação acima, que essas "caronas" podem ocorrer horizontal ou verticalmente, e que estão em total harmonia com o princípio da legalidade, utilizado como justificativa no Acórdão do TCU.
Invocando ainda este princípio para justificar que deve ser observada a Lei de Licitações, especialmente o artigo 21, inciso I (princípio da publicidade), entendemos que também não existirá ilegalidade, caso um órgão estadual ou municipal resolva, por exemplo, publicar o aviso de licitação em jornal de circulação nacional, ou mesmo no DOU.
É de se ressaltar que, em algumas situações, a publicação a nível nacional é inclusive obrigatória, como nos casos em que há recursos federais envolvidos. É o que dispõe o artigo 21, inciso I:
Art. 21. Os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências, das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões, embora realizados no local da repartição interessada, deverão ser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez:
I - no Diário Oficial da União, quando se tratar de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Federal e, ainda, quando se tratar de obras financiadas parcial ou totalmente com recursos federais ou garantidas por instituições federais; (grifamos)
Ou, ainda, nos casos em que a licitação é de tamanha complexidade e envergadura, que seja necessário trazer ao certame o maior número de propostas válidas possível.
Não entendemos que caiba, como justificativa, o principio da igualdade. Primeiro porque, se assim o fosse, não haveria em se falar sequer em participação ou carona – de qualquer esfera, no Sistema de Registro de Preços, senão o beneficio para o próprio gerenciador da ata;
Segundo, porque uma licitação anterior foi, em tese, regularmente instruída, com a devida publicidade e com ampla participação dos fornecedores em potencial.
Ao definir o Sistema de Registro de Preços, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes cita o princípio da isonomia, conforme segue:
"Sistema de Registro de Preços é um procedimento especial de licitação que se efetiva por meio de uma concorrência ou pregão sui generis, selecionando a proposta mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, para eventual e futura contratação pela Administração." [05]
A Orientação Normativa nº 21 da AGU:
O julgado do TCU cita ainda, como argumento para a barreira criada aos órgãos da esfera Federal, a Orientação Normativa nº 21 da AGU, que em suma, assim determina:
"É vedada aos órgãos públicos federais a adesão à ata de registro de preços, quando a licitação tiver sido realizada pela administração pública estadual, municipal ou do Distrito Federal."
Num primeiro momento, a literalidade do texto conduz à interpretação de que todos os entes públicos federais se submetem à presente Orientação Normativa.
Entretanto, cabe-nos transcrever a íntegra da normativa, para melhor elucidação do alcance da restrição imposta. Senão vejamos:
"O ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I, X, XI e XIII, do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, considerando o que consta do Processo nº 00400.015975/2008-95, resolve expedir a presente orientação normativa, de caráter obrigatório a todos os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 da Lei Complementar nº 73, de 1993: (grifamos)
É VEDADA AOS ÓRGÃOS PÚBLICOS FEDERAIS A ADESÃO À ATA DE REGISTRO DE PREÇOS, QUANDO A LICITAÇÃO TIVER SIDO REALIZADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL, MUNICIPAL OU DO DISTRITO FEDERAL."
Parece-nos, pois, que a citada orientação afeta somente as adesões feitas dentro dos órgãos jurídicos definidos nos artigos 2º e 17 da Lei Complementar nº 73/1993. São eles:
Art. 2º - A Advocacia-Geral da União compreende:
I - órgãos de direção superior:
a) o Advogado-Geral da União;
b) a Procuradoria-Geral da União e a da Fazenda Nacional;
c) Consultoria-Geral da União;
d) o Conselho Superior da Advocacia-Geral da União; e
e) a Corregedoria-Geral da Advocacia da União;
II - órgãos de execução:
a) as Procuradorias Regionais da União e as da Fazenda Nacional e as Procuradorias da União e as da Fazenda Nacional nos Estados e no Distrito Federal e as Procuradorias Seccionais destas;
b) a Consultoria da União, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, da Secretaria-Geral e das demais Secretarias da Presidência da República e do Estado-Maior das Forças Armadas;
III - órgão de assistência direta e imediata ao Advogado-Geral da União: o Gabinete do Advogado-Geral da União;
IV - (VETADO)
§ 1º - Subordinam-se diretamente ao Advogado-Geral da União, além do seu gabinete, a Procuradoria-Geral da União, a Consultoria-Geral da União, a Corregedoria-Geral da Advocacia-Geral da União, a Secretaria de Controle Interno e, técnica e juridicamente, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
§ 2º - As Procuradorias Seccionais, subordinadas às Procuradorias da União e da Fazenda Nacional nos Estados e no Distrito Federal, serão criadas, no interesse do serviço, por proposta do Advogado-Geral da União.
§ 3º - As Procuradorias e Departamentos Jurídicos das autarquias e fundações públicas são órgãos vinculados à Advocacia-Geral da União.
§ 4º - O Advogado-Geral da União é auxiliado por dois Secretários-Gerais: o de Contencioso e o de Consultoria.
§ 5º - São membros da Advocacia-Geral da União: o Advogado-Geral da União, o Procurador-Geral da União, o Procurador-Geral da Fazenda Nacional, o Consultor-Geral da União, o Corregedor-Geral da Advocacia da União, os Secretários-Gerais de Contencioso e de Consultoria, os Procuradores Regionais, os Consultores da União, os Corregedores-Auxiliares, os Procuradores-Chefes, os Consultores Jurídicos, os Procuradores Seccionais, os Advogados da União, os Procuradores da Fazenda Nacional e os Assistentes Jurídicos.
[...]
Art. 17 - Aos órgãos jurídicos das autarquias e das fundações públicas compete:
I - a sua representação judicial e extrajudicial;
II - as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos;
III - a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial.
De se destacar que, a priori, são estes os impedidos de proceder à adesão a atas gerenciadas por entes governamentais de Estado, Município ou do Distrito Federal.
Vale dizer que a ON 21/2009 da AGU não abrange todo e qualquer órgão da Administração Pública Federal, mas tão somente aqueles elencados nos dispositivos acima transcritos, eis porque não há que se falar na total restrição às adesões verticais de órgão federal à ata gerida por ente da Administração Pública Estadual, Municipal ou Distrital.
Vamos além. Da leitura do inteiro teor da fundamentação que deu origem à Orientação Normativa sob debate, transcrevemos a seguir dois pontos de entendimentos:
a) as contratações de serviços e a aquisição de bens, quando efetuadas pela Administração Pública Federal pelo sistema de registro de preços, devem obedecer o disposto no Decreto nº 3.931, de 2001; e
b) o Decreto nº 3.931, de 2001, aplica-se somente à Administração Pública Federal.
Com efeito, concordamos que as contratações de serviços e a aquisição de bens devem obedecer ao Decreto 3.931/01, que institui o Sistema de Registro de Preços.
Entretanto, não entendemos com o segundo ponto, pelo qual o diploma federal somente seria aplicável à Administração Pública Federal, pelos argumentos já trazidos ao presente debate, principalmente no que tange ao vácuo legislativo existente nos demais entes governamentais, cuja legislação federal tem, por que não, o condão de suprir.
Ora, todos sabem que muitos Estados e Municípios, ao resolver "adaptar" seu Sistema de Registro de Preços, ou outras normas sobre licitações – simplesmente "transcrevem" os textos federais, restando evidente que o Decreto 3.931/01, por exemplo, é suficiente para atender todas as esferas de governo, assim como as normas gerais constantes da Lei 8.666/93.
Tanto é que poucos entes governamentais não federais sequer tiveram o trabalho de redigir seus diplomas exclusivos e/ou adaptados, submetendo-se integralmente aos dispositivos das leis federais, sem nenhuma restrição imposta pelos respectivos órgãos de controle.
Ademais, como bem afirmado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, se, apesar de todos os desencontros doutrinários, a Lei 8.666/93 estabelece em seu artigo 1º normas gerais sobre licitações e contratos administrativos no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, parece-nos razoável que os estatutos Federais regulamentadores decorrentes devam ter a mesma força e alcance das "normas gerais".
Considerações Finais:
Ante o exposto, forçoso concluir que tanto o acórdão 6511/2009 do TCU quanto a Orientação Normativa nº 21 da AGU merecem serem apreciados com cautela, a fim de que os diversos órgãos da Administração Pública Federal em todo o Brasil não sejam prejudicados ao serem tolhidos de efetuar suas compras pelo Sistema de Registro de Preços, através de adesões verticais, desde que constatada a devida vantagem nas aquisições.
Notas
- CITADINI, Antônio Roque, Comentários e jurisprudência sobre a lei de licitações públicas, pág. 89.
- ESCOBAR, João Carlos Mariense, O sistema de registro de preços nas compras públicas: teoria e prática, pág. 21.
- Citado por: Sidney Bittencourt, Licitação de registro de preços: comentários ao decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, 2ª edição, rev. e ampl., Belo Horizonte: Fórum, 2008, págs. 31/32.
- Citada por: Sidney Bittencourt, Licitação de registro de preços: comentários ao decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, 2ª edição, rev. e ampl., Belo Horizonte: Fórum, 2008, págs. 33/34.
- FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby, Sistema de registro de preços e pregão presencial e eletrônico, 3ª edição, rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pág. 30.