4. OS MÉRITOS DA REFORMA: A BUSCA DA EFETIVAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO ACESSO À JUSTIÇA E DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DOS PROCESSOS JUDICIAIS.
A acepção moderna de acesso à Justiça abrange não apenas a eliminação de barreiras à propositura de ações por parte de qualquer cidadão, mas também abarca a efetiva entrega do bem da vida em litígio a quem possuir direito, no caso de procedência do pedido, ou, na hipótese de indeferimento do pleito, da resolução da crise por intermédio da prolação de sentença de improcedência do pedido formulado.
Em outras palavras, o conceito atual de acesso à Justiça engloba a prolação de sentença de mérito justa [16], seguida da realização prática dos meios necessários à sua efetivação no mundo dos fatos, tudo isso no menor espaço de tempo possível.
Neste sentido, ao erigir o acesso à Justiça à posição de princípio-síntese e objetivo final do processo, Dinamarco assevera que:
O processo justo, celebrado com meios adequados e produtor de resultados justos, é o portador de tutela jurisdicional a quem tenha razão, negando proteção a quem não a tenha. Nem haveria justificativa para tanta preocupação com o processo, não fora para configurá-lo, de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, como autêntico instrumento de condução à ordem jurídica justa. Tal é o que se propõe quando se fala em processo civil de resultados. [17]
Leonardo Greco define a real dimensão de importância do direito a uma tutela jurisdicional efetiva de forma lapidar:
No Estado Democrático Contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo.
A tutela jurisdicional efetiva é, portanto, não apenas uma garantia, mas, ela própria, também um direito fundamental, cuja eficácia irrestrita é preciso assegurar, em respeito à própria dignidade humana [18].
E prossegue com a proposição de um conceito para o princípio do acesso à Justiça:
O acesso à Justiça, como direito fundamental, corresponde ao direito que cada cidadão tem individualmente ao exercício da função jurisdicional sobre determinada pretensão de direito material, sobre o mérito do seu pedido [19].
Não se pode olvidar que hoje o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva encontra-se seriamente ameaçado no Brasil por inúmeras razões, dentre as quais pode-se apontar a flagrante incapacidade do Poder Judiciário de se desincumbir de sua função judicante na mesma velocidade alucinante em que hoje se observa o crescimento da litigiosidade no país.
No que concerne às modificações pontuais na Lei Adjetiva quanto às prerrogativas processuais da Fazenda Pública, pode-se dizer que apenas a limitação das hipóteses de reexame necessário converge, em última análise, para a busca da implementação das ideias centrais acima expostas, as quais norteiam a dinâmica do processo civil contemporâneo, chamado de processo de resultados, o qual preza, acima de tudo, pela efetividade dos direitos processuais e, por via de consequência, dos direitos materiais assegurados pela Constituição da República e pela legislação ordinária.
Em razão de tal limitação, que trará como consequência a subida aos tribunais de um número consideravelmente menor de ações nas quais a Fazenda Pública figure no pólo passivo, parece ser possível afirmar que haverá uma considerável economia de tempo, recursos e esforços por parte do Poder Judiciário, aliviando, deste modo, sua notória sobrecarga de serviço.
Logo, a inovação consistente na limitação das hipóteses de reexame necessário traz consigo o potencial de ampliação do acesso à Justiça, na medida em que desafoga o Poder Judiciário, liberando-o para concentrar maiores esforços na resolução de todas as lides entre particulares. Em outras palavras, a nova regra tem o potencial de garantir maior eficácia à garantia da tutela jurisdicional efetiva.
Como consequência lógica, a regra que limita o reexame necessário também presta contributo à persecução do princípio da duração razoável dos processos judiciais, acrescido à Constituição da República pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004 (inciso LXXVIII do artigo 5º).
Com efeito, o ganho de tempo gerado pela norma contida no artigo 478 do novo Código de Processo Civil não repercutirá apenas na agilização do deslinde das ações em que o Poder Público figure como réu. Ao contrário, contribuirá para a maior celeridade de todo o sistema judiciário.
O mesmo não se passa com as demais modificações relativas às prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública.
Como já afirmado, a substituição do prazo processual em quádruplo pelo prazo em dobro para a Fazenda Pública contestar não trará nenhuma contribuição significativa para a maior celeridade do Poder Judiciário. Não se verificará nenhum ganho sistêmico, pois nenhum processo deixará de ingressar nos tribunais.
A medida não promoverá nenhuma redução no número de processos, mas apenas um encurtamento daqueles feitos no prazo de quinze dias. Tal prazo revela-se ínfimo se considerado em termos de duração total de um processo, mas precioso para os advogados públicos reunirem informações, documentos e provas imprescindíveis à elaboração de uma defesa eficaz do ente político que representam.
Do mesmo modo, a extensão da intimação pessoal aos representantes judiciais dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a despeito de consistir em alteração legítima, que visa corrigir uma distorção injustificada do atual sistema, não possui o condão de promover a efetivação dos princípios constitucionais aqui ventilados.
5. CONCLUSÃO
Como se procurou demonstrar ao longo do artigo, o princípio da igualdade (em sua acepção material) oferece sustentação suficiente para justificar o tratamento processual diferenciado dispensado à Fazenda Pública.
Dentre as propostas previstas no Anteprojeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, que tem como principais objetivos a maior celeridade na entrega da prestação jurisdicional e a busca pela maior eficácia dos princípios constitucionais do acesso à Justiça e da duração razoável dos processos judiciais, foram inseridas alterações no regime de prerrogativas processuais atribuídas à Fazenda Pública.
Sustentou-se aqui que a limitação das hipóteses de reexame necessário consiste em modificação que, a princípio, não fere o princípio da igualdade material, considerado o atual estágio de desenvolvimento e de estruturação da advocacia pública, notadamente nos âmbitos federal e estadual.
Ademais, consignou-se que tal proposta tem o potencial de produzir significativo ganho para todo o sistema judiciário brasileiro, contribuindo para a concretização dos anseios da sociedade por uma Justiça mais célere e efetiva.
Todavia, o mesmo não se verifica com a proposta de extinção do prazo em quádruplo para o oferecimento de contestação pela Fazenda Pública.
Considera-se que, além de oferecer graves riscos de prejuízo ao erário, tal modificação não trará nenhuma contribuição significativa para o aperfeiçoamento e maior celeridade do Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto/Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010.
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
CAPPELLETTI, Mauro (org.). Accès a la justice et état-providence. Econômica, Paris, 1984,
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2003.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Vol. 1, São Paulo: Malheiros, 2001.
GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso em 03 de abril de 2010.
MACHADO, Agapito. O Princípio da isonomia e os privilégios processuais. Disponível em <http://www.jus.com.br> Acesso em 08 de agosto de 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed., 17ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Notas
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed., 17ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 35.
- PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. pp. 47-48
- BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 114.
- Cumpre ressalvar a existência de posicionamentos doutrinários em sentido diametralmente oposto ao aqui defendido. Veja-se, a título de exemplo, artigo de Agapito Machado: "Como parte, seja no pólo ativo ou passivo, no devido processo legal, não vemos como se possa, diante do caput do art. 5º da CF/88, continuar admitindo a desigualdade em benefício de uma pessoa jurídica de direito público, tais como: contra ela não ocorrerem os efeitos da revelia, ter direito ao prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, duplo grau, entre tantos outros privilégios." (...) "A interpretação da legislação ordinária há de ser feita, sempre, em face da Constituição e a Brasileira, promulgada em 1988, ao dispor no art. 5º, caput e inciso I que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, eliminou todos os privilégios processuais das pessoas jurídicas de direito público, sobejando apenas a posição de superioridade do Poder Público quando este agir no chamdo ius imperii." MACHADO, Agapito. O Princípio da isonomia e os privilégios processuais. Disponível em <http://www.jus.com.br> Acesso em 08 de agosto de 2010.
- No sentido do texto, Gustavo Binenbojm, louvado em voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence no julgamento da ADIN n.º 1.753-2/DF, destaca que: "(...) tais discriminações só são toleráveis na medida em que não forem arbitrárias e servirem, v.g., para compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais. Assim, por exemplo, considerações ligadas à morosidade inerente a um Estado agigantado para que os advogados públicos obtenham as informações e provas de que necessitam para a elaboração de sua defesa, ou mesmo a insuficiência crônica de procuradores nos quadros do Poder Público, podem ser levadas em conta na formulação do juízo de constitucionalidade das prerrogativas processuais." BINENBJOM, op. cit, p. 115.
- O dispositivo refere, ainda, ao local onde esteja situada a coisa litigiosa, hipótese que não se adequa ao exemplo citado.
- O artigo 1º do PLS n.º 166/10 denota esta nova mentalidade, típica da atual era pós-positivista, na qual o Direito Constitucional passa à condição de centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus princípios a todos os outros ramos do Direito: "Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código."
- Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto/Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010.
- CAPPELLETTI apud DALLA. CAPPELLETTI, Mauro (org.). Accès a la justice et état-providence. Econômica, Paris, 1984, p. 29.
- No sentido do texto, Leonardo José da Cunha assevera que "Não obstante o peso da doutrina que fundamenta esse segundo entendimento, parece mais correto mesmo encaixar o reexame necessário como condição de eficácia da sentença, eis que, não atendidos vários princípios e requisitos recursais, não há como enquadrá-lo como mais um tipo de recurso." CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2003. p. 119.
- Cite-se, a título de exemplo, o artigo 895 do Anteprojeto: "É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes."
- Referência ao período de vigência do atual Código de Processo Civil, que data de 1973.
- No sentido do texto, confira-se Moreira Neto: "Não só o cuidado devido na defesa do interesse público como as possíveis delongas burocráticas no levantamento e entrega das informações necessárias à sua defesa em juízo levaram o legislador a dilatar os prazos para contestação – contados em quádruplo – e para a interposição de recurso – contados em dobro (CPC, art. 188)". MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. pp. 574-575.
- NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 410.
- Lei n.º 9.028, de 12 de abril de 1995, cujo artigo 6º assim estabelece: "A intimação de membro da Advocacia-Geral da União, em qualquer caso, será feita pessoalmente."
- A busca da prolação de sentença de mérito como objetivo primacial do processo encontra-se encampada no artigo 470 do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, que assim dispõe: "O juiz proferirá sentença de mérito sempre que puder julgá-lo em favor da parte a quem aproveitaria o acolhimento da preliminar."
- DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Vol. 1, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 248.
- GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. p. 1. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso em 03 de abril de 2010.
- Ibid, p. 4.