CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente estudo foi o de apresentar duas formas, dois sentidos possíveis daquilo que se chama de Hermenêutica. Assim, de um lado foi analisada a obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito", de Carlos Maximiliano e de outro "Verdade e Método", de Hans-Georg Gadamer. Acredita-se que as duas são paradigmáticas: a primeira para a Hermenêutica objetiva ou normativa e a segunda para o Hermenêutica filosófica, que desponta como novidade para os juristas brasileiros contemporâneos.
Tratou-se de demonstrar os pontos de atrito entre estas duas idéias de Hermenêutica (método e não-método), como na questão da aplicação, da criação e no tratamento que dão ao fenômeno da linguagem. Uma, vendo nela apenas uma forma de expressão do pensamento, como terceira coisa que se interpõem entre sujeito e objeto, e a outra reconhecendo que a linguagem é muito mais do que isto, vendo na linguagem a própria condição de possibilidade do conhecimento.
A Hermenêutica jurídica de Maximiliano ocupa-se de ser a ciência dos métodos de interpretação aplicáveis ao Direito. Assim, foram expostos e analisados os processos interpretativos encontráveis na obra do jurista gaúcho. Sua obra foi reconhecida como imersa no paradigma racionalista, ou da filosofia da consciência. Destarte, para Maximiliano, interpretar é descobrir o verdadeiro sentido da coisa, chegar à sua essência. Seu pensamento, portanto, é do tipo metafísico-essencialista.
Hans-Georg Gadamer não pretende criar uma teoria geral da interpretação. Sua intenção é, antes disso, analisar as condições sob as quais se dá qualquer espécie de compreensão. Sua teoria ganhou o nome de Hermenêutica filosófica e está postada sob um solo fenomenológico. Nela a linguagem passa a ser a condição de possibilidade de qualquer conhecimento. A linguagem é que proporciona o ser à coisa. Gadamer desvela a estrutura da pré-compreensão, o que compromete o ideal de conhecimento objetivo do "Aufkläung". A historicidade, a temporalidade e a finitude passam à condições de princípios hermenêuticos.
A tese levantada na introdução deste trabalho se confirma: "Hermenêutica e Aplicação do Direito" encontra-se no âmbito do que Putnam chamou de racionalidade II. Já "Verdade e Método" trabalha na seara da racionalidade I.
Quanto à conciliação que se pretendeu alcançar entre as duas obras, pensa-se que ela de fato seja possível. Gadamer em momento algum de "Verdade e Método" afirma a inutilidade dos métodos interpretativos tal como foram descritos por Maximiliano. O que afirma o autor alemão é que estes mesmos métodos não são suficientes para garantir a verdade (para nós, a interpretação correta, o sentido verdadeiro). Absolutizá-los, como tem acontecido no Direito, é exigir deles muito mais do que podem dar.
Também Maximiliano não absolutiza o método, e diz que todos os processos interpretativos colaboram para uma correta e completa compreensão. Portanto, guardados os pontos de atrito inafastável que se pretendeu evidenciar ao longo deste estudo, as obras de Maximiliano e Gadamer não são antagônicas. Há entre elas uma diferença de profundidade em que abordam o tema Hermenêutica, uma como método e outra como modo de ser, o modo de ser da pré-sença. Combinando ambas, cada uma em seu terreno próprio de atuação, podem e devem prestar grande serviço à ciência jurídica atual.
A Hermenêutica filosófica, como espécie de racionalidade I, pode ser o novo vetor de racionalidade do Direito, garantindo a validade das conclusões/interpretações no âmbito da racionalidade II (Hermenêutica normativa de Maximiliano). Rompendo com a absolutização do método, típico da Hermenêutica tradicional, a Hermenêutica filosófica ocupa-se do que está à base dos discursos da ciência (do Direito, em nosso caso). Serve para descobrir os limites do próprio Direito e fundamentá-lo, já não mais aos moldes de uma ciência da natureza, como no racionalismo, mas como experiência que se ocupa do comportamento humano e cuja idéia de "verdade" deve sempre carregar também os traços que já sempre marcam o próprio homem: temporalidade, finitude e historicidade.
Esta é a diferença de profundidade que se afirmou existir entre as idéias hermenêuticas de Gadamer e Maximiliano. Esta, apresenta-se como típico discurso da ciência. Aquela, como instância de crítica, crítica que descobre os próprios limites do discurso jurídico e pode servir de vetor de racionalidade para (re)fundamentá-lo. A Hermenêutica filosófica é o crivo porque devem passar as conclusões alcançados ao nível da Hermenêutica tradicional para garantir a sua verdade, no sentido humano em que esta é possível.
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Notas
- GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 442.
- O conceito de racionalidade não deve ser confundido com o racionalismo, corrente filosófica que surgiu principalmente a partir de Descartes. Voltar-se-á ao assunto mais adiante.
- STEIN, Ernildo. Filosofia como um vetor ou Standart de racionalidade do Direito: Fundamentar, um modo de ser ou um procedimento? Trabalho apresentado aos alunos do Curso de Mestrado em Filosofia da PUC/RS, 2003.
- Gadamer, op. cit, págs. 400-436.
- Ibid., p. 18.
- STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
- Stein, op. cit., p. 2.
- Ibidem, p. 2-4.
- Ibidem, p. 3.
- Ibidem, p. 4.
- Paradigma pode ser conceituado como um fundo comum a partir do qual uma filosofia se apresenta com pretensões de fundar estilos de verdade, argumentação e justificação.
- Lénio Streck, em seus estudos, identificou a filosofia da consciência como sendo o atual paradigma epistemológico da ciência jurídica. Op. cit., p. 18.
- Ibidem, págs.. 17-18.
- Ensinamento transmitido na cadeira de filosofia geral do Curso de Direito da UFSM, em 1998.
- Este é um conceito de conhecimento próprio do ideal científico da modernidade, mas que não esgota todas as possibilidades do que seja conhecimento e verdade, como ver-se-á em Gadamer.
- DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002.
- GADAMER. Op. cit, pág. 39.
- Ibidem, p. 39.
- Ibidem, p. 40.
- CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um Processo. Campinas (SP): Ed. Minelli, 2002.
- Seu fascínio pelas matemáticas pode ser visto neste trecho: "Comprazia-me especialmente com as matemáticas, a exatidão e a evidência dos seus raciocínios..." Op. cit., p. 24.
- Descartes, op. cit., p. 13.
- Termo alemão que pode ser traduzido por esclarecimento ou iluminismo.
- CUSTÓDIO ALMEIDA, Luis S. de. Hermenêutica e Dialética: Dos Estudos Platônicos ao Encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 263.
- ALEXANDER, Franz G. & SELESNICK, Sheldon T. História da Psiquiatria. São Paulo: IBRASA, 1968. p. 185.
- Ibidem, p. 186.
- STRECK, op. cit., p. 65.
- SICHES, Luis Recasins. Nueva Filosofia de La Interpretación del Derecho. México: Editorial Porúa, 1998, p. 137.
- Gadamer, op. cit., p. 45.
- ZEIFERT, Ana Paula Bagetti. Da Hermenêutica à nova Hermenêutica o papel do operador jurídico. In: Hermenêutica e Argumentação: em busca da efetividade do Direito. Raquel Fabiana L. Spanemberger (org.). Ijuí, Caxias do Sul: Ed. Unijuí e Ed. UCS, 2003. p. 159.
- Ibidem, p. 159.
- GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. E apres. de Breno Diachinger. São Leopoldo: UNISINOS, 1996. p. 9.
- Ibid, p. 9-10.
- Stein, op. cit., p. 1.
- ROESLER, Cláudia Rosane. A Impossibilidade de Saltar Sobre a Sombra. In: Hermenêutica e Argumentação: em busca da efetividade do Direito. Raquel Fabiana L. Spanemberger (org.). Ijuí, Caxias do Sul: Ed. Unijuí e Ed. UCS, 2003. p. 39.
- Ibidem, p. 53-54.
- Ibidem. P. 55-56.
- Ibidem, p. 64.
- Roesler, op. cit., p. 68.
- Carlos Maximiliano Pereira dos Santos era gaúcho nascido em Santa Maria; publicou, além da clássica "Hermenêutica e Aplicação do Direito", a obra "Direito das Sucessões" e outros de grande prestígio. Foi advogado, Deputado Federal, Ministro da Justiça e membro do S.T.F.
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p. 8.
- Ibidem, p. 10.
- Ibidem, p. 13.
- Ibidem, p. 13.
- Ibidem, p. 23.
- Ibidem, p. 157.
- Ibidem, p. 140.
- Ibidem, p. 146.
- Ibidem, p. 161.
- Ziefert, op. cit., p. 183.
- Ibidem, p. 183-184.
- Maximiliano, op. cit., p. 179.
- Ibidem, p. 193.
- Veja-se o § 170 de "Hermenêutica e Aplicação do Direito".
- Ibidem, p. 103.
- Ibidem, p. 164.
- Ibidem, p. 55.
- Ibidem, p. 108.
- Gadamer, op. cit, p. 25.
- Ibidem, p. 25.
- Ibidem, p. 31.
- Ibidem, p. 31.
- Ibidem, p. 32.
- Ibidem, p. 59.
- Ibidem, p. 147-157.
- Ibidem, p. 408-415.
- Scheck, op. cit, p. 191.
- Gadamer, op. cit., p. 416.
- Ibidem, op. 400.
- Custódio Almeida, op. cit., p. 240-251.
- Gadamer, op. cit., 415.
- O que se observa na prática judicial é uma aplicação automática e quase impensada do senso comum teórico dos juristas.
- Gadamer, op. cit., p. 457.
- Ibidem, p. 461.
- Ibidem, p. 459.
- Ibidem, p. 461.
- Ibidem, p. 602.
- Ibidem, p. 602.
- Ibidem, p. 647.
- Ibidem, p. 687.
- Streck, op. cit., p. 194.
- Gadamer, op. cit., p. 568.
- Ibidem, p. 709.