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Hermenêutica jurídica – duas visões: método e não método

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26/10/2010 às 16:56
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INTRODUÇÃO

O sentido das presentes investigações é demonstrar que aquilo que se chama de Hermenêutica pode ser pensado em mais de uma acepção. Apesar de os juristas estarem habituados a empregar esta palavra querendo significar uma ciência da interpretação, que trabalha com métodos que lhe são peculiares, é necessário que venha à discussão no campo jurídico outras formas de analisar este fenômeno. Para desempenhar tal mister serão utilizadas duas obras julgadas paradigmáticas e, a princípio, antagônicas quanto à abordagem que fazem do tema que aqui será tratado.

A primeira das obras referidas é a consagrada "Hermenêutica e Aplicação do Direito" de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, escrita em 1924, e que exerceu e ainda tem exercido enorme influência na mente e no trabalho prático dos juristas brasileiros. Maximiliano, como tratar-se-á de demonstrar mais adiante, pode ser alinhado entre os juristas adeptos da chamada Hermenêutica objetiva ou normativa, de que foi baluarte o grande jusfilósofo italiano Emílio Betti. Esta Hermenêutica normativa, como indica o próprio nome, vem com o objetivo de fixar regras para o procedimento interpretativo do jurista. Dessa forma, o método eleva-se à condição de garantidor do acerto das conclusões que o interprete extrai do seu labor ao buscar o sentido da norma. Para ser mais explícito, confia-se no método como garantidor da verdade.

A outra obra qualificada como paradigmática para o presente estudo é "Verdade e Método", do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, aparecida em 1960, onde ele lança as bases de sua teoria hermenêutica, conhecida como Hermenêutica filosófica. Aqui a Hermenêutica deixa de ser vista como um método e passa a ser tratada como uma experiência do "Dasein", termo germânico que pode ser traduzido como ser-aí ou presença. A Hermenêutica é o modo de ser do "Dasein". Torna-se fundamental a idéia de compreensão porque interpretar para Gadamer, é sempre compreender. Mas para Gadamer, ao contrário do que ocorre com Maximiliano e a Hermenêutica normativa, a tarefa da Hermenêutica "não é desenvolver um procedimento da compreensão mas esclarecer as condições sob as quais surge a compreensão". [01]

É possível, analisando-se esta passagem de Gadamer em conjunto com o que foi dito sobre a Hermenêutica objetiva ou normativa, verificar que existe uma diferença de profundidade em que o fenômeno hermenêutico é tratado por Gadamer e Maximiliano. O propósito deste trabalho será o de mostrar que as obras destes dois autores não são necessariamente excludentes uma da outra. Será trilhada a senda que leva à conciliação destas duas visões sobre a interpretação, de modo a evitar a atração pelo canto de sereia que é a atitude apressada de, frente ao novo (Gadamer), rasgar o velho (Maximiliano).

Para desempenhar esta tarefa será tomada como suporte a diferenciação que Putnam faz entre racionalidade [02] I e II, encontrável em um dos escritos do filósofo gaúcho Ernildo Stein. Por sua clareza e precisão, veja-se o que diz Stein: [03]

A racionalidade II seria aquela própria dos discursos da ciência, na medida em que são sucessivos e complementares e podem se estender de maneira indefinida no universo de um conhecimento determinado. A racionalidade I se situaria na base da racionalidade II e representaria um a priori que a racionalidade discursiva sempre pressupõe, mas que não necessariamente explicita. A tarefa fundamental da filosofia passaria, então a consistir na contribuição para explicitar essa racionalidade I com que o conhecimento nas ciências sempre opera.

Esta diferenciação entre racionalidade I e II será preciosa porque é a partir dela que se pretende empreender uma possível conciliação entre as idéias hermenêuticas de Gadamer e Maximiliano. Tomando como base essa diferenciação feita por Putnam, será possível demonstrar que, apesar dos inegáveis pontos de choque, de contradição incontornável, as obras dos dois autores contêm, ambas, contribuições valiosas para a Hermenêutica jurídica. O que as difere fundamentalmente é o enfoque, é a profundidade de que se falou linhas atrás. Desta forma, pensa-se que "Hermenêutica e Aplicação de Direito", de Maximiliano, está situada no nível da racionalidade II. Já "Verdade e Método", de Gadamer, se preocupa e trabalha no âmbito da racionalidade I.

Pensa-se desta forma porque acredita-se que este a priori que a racionalidade II sempre pressupõe e que a racionalidade I deve explicitar, consubstancia-se no desvelamento da estrutura de pré-compreensão, de que fala Gadamer ao descrever o chamado círculo hermenêutico. [04] O próprio Gadamer diferencia a intenção da sua Hermenêutica da Hermenêutica objetiva, como no trecho que segue: [05]

O sentido de minhas investigações não é, em todo o caso, o de dar uma teoria geral da interpretação e uma doutrina diferencial dos seus métodos, como fez preferencialmente E. Betti, mas procurar o comum de todas as maneiras de compreender e mostrar que a compreensão jamais é um comportamento subjetivo frente a um "objeto" dado, mas frente à história efeitual, isto significa, pertence ao ser daquilo que é compreendido.

Pode-se dizer que o pensamento de Maximiliano é o típico discurso da ciência, uma forma do procedimento lógico-discursivo desse mesmo discurso. Porém, sua intenção para por aí. Apenas uma teoria como a Hermenêutica filosófica da Gadamer é que tem a pretensão e chega mesmo a analisar o subsolo desta consciência científica para explicitar como ela é gerada e revelar as suas aporias. A constatação dessas aporias do pensamento de Maximiliano, que será empreendido adiante, porém, não pode levar ao exagero de impor um total abandono das lições que nos legou a obra deste notável jurista gaúcho. "Hermenêutica e Aplicação do Direito" já faz parte da tradição jurídica nacional, já fala por si, interpela os juristas do presente, faz parte daquilo que Luiz Alberto Warat chama de "senso comum teórico dos juristas".

Uma Hermenêutica filosófica tal como Gadamer a concebeu pode prestar um grande serviço ao Direito ao por esta tradição de que se fala em evidência, mediando passado e presente e operando uma fusão de horizontes que amplie, que alargue o olhar dos juristas. Não se acredita que obras antigas sejam um entolho a criar uma crise no Direito. A crise do Direito, profundamente estudada por Lenio Streck, [06] vem de um discurso auto-suficiente, que apenas se repete, incapaz de se perguntar sobre os prejuízos que carrega consigo e de por o passado em constante diálogo com o presente.

Quando, num estudo jurídico, envereda-se por caminhos que levam ao encontro com a Filosofia, necessariamente há que se perguntar: O Direito realmente precisa de uma Filosofia? Por que? E no caso de a resposta ser afirmativa, novamente é preciso interrogar-se: Que espécie de Filosofia deve ser esta? Para responder a estas questões valer-se-á da autoridade de Ernildo Stein. Assim, buscando uma resposta para a primeira pergunta que foi colocada, Stein aduz que: [07]

Em geral, pedimos a filosofia que nos venha socorrer através de uma discussão epistemológica. Assim, escolhemos uma filosofia para nos orientar na discussão de método no direito. Esperamos, então, dessa filosofia, que ela nos oriente no que se refere aos limites e ao fundamento do jurídico.

Em seguida, Stein afirma que a Filosofia vem ao auxílio do Direito para lhe dar um padrão de racionalidade, para lhe garantir uma certa validade, onde são importantes os conceitos de verdade, demonstrabilidade e justificação. A Filosofia para o Direito significa um vetor de orientação na discussão dos seus limites e da sua fundamentação. [08]

Admitindo então que o Direito precisa mesmo de uma Filosofia, para descobrir seus limites e fundamentá-lo, passa-se à segunda pergunta, sobre o tipo de Filosofia que deve ser essa. Stein afirma que "a filosofia a que pretendemos recorrer deve ter uma atualidade que se impõe pela sua novidade ou então pelo fato de ter sobrevivido a muitos testes em debates históricos". [09] E continua, dizendo que: [10]

Quando se espera, no direito, que a filosofia lhe preste serviços no que se refere ao limite e à fundamentação, o que se quer é encontrar elementos de racionalidade que garantam orientação e espaços de validade intersubjetiva. O estado de coisas que designamos como uma espécie de encontro entre direito e filosofia pode ser descrito como um vetor ou um standart de racionalidade. Em todo o caso, o direito irá encontrar a partir desse standart uma teoria filosófica capaz de orientar o levantamento de problemas e o conjunto de problemas a serem resolvidos.

A idéia aqui defendida é a de que a Hermenêutica filosófica de matriz gadameriana pode ser o novo paradigma [11] do Direito, visto que contém a referida atualidade que exige de uma filosofia como orientação para o campo jurídico. Mais ainda, possui uma racionalidade que, segundo entende-se, se amolda muito bem ao Direito e pode cumprir com vantagem sobre o atual paradigma da filosofia da consciência [12] a missão de fundamentá-lo. Isso ficará mais claro ao analisar-se mais detidamente os traços fundamentais da Hermenêutica filosófica de Gadamer.

Por último é preciso esclarecer que o interesse pelo problema estudado nesta monografia despertou após a leitura da obra "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito", de autoria de Lenio Luiz Steck e que tem provocado um estremecimento nos alicerces da dogmática jurídica nacional. Nesta obra o autor se ocupa em debater a atual crise do Direito. Afirma que esta crise é uma "crise de paradigma de dupla face", ou seja, a crise de paradigma do modelo liberal-individualista-normativista de produzir, interpretar e aplicar o Direito, e também a crise do paradigma objetificante da filosofia da consciência, dado que as instâncias reprodutoras, aplicadoras e criadoras do Direito em nosso país "ainda estão presas à dictomia sujeito-objeto, carentes e/ou refratárias à viragem lingüística de cunho pragmatísta-ontológico ocorrida contemporaneamente". [13]

Ocupar-se-á aqui apenas desta segunda acepção da crise, tal como levantada por Streck, tangenciando-se, portanto, a crise do Estado. Nesta esteira, cumpre agora investigar a história e a evolução do conceito de Hermenêutica. Também será necessário demonstrar como o método típico das ciências da natureza foi sendo paulatinamente transplantado para as ciências do espírito, e, entre elas, para o Direito, analisando as conseqüências que daí advieram. Ter-se-á que passar, portanto, nesse caminhar, pelos conceitos de ciência e método.


ANTECEDENTES NECESSÁRIOS

1. Ciências do Espírito e Método

Para abrir-se uma senda que leve ao aclaramento em torno do termo Hermenêutica, acredita-se ser frutuoso e quiçá até necessário passar antes pelas idéias de ciência e de método. Assim, procurando extrair um primeiro significado destas expressões (ciência e método), ater-se-á à sua liberdade. Desta forma, ciência pode ser pensada como conhecimento, e ciente, conhecedor, é aquele que tem ciência, que sabe. O conhecimento, tomando de empréstimo uma definição da filosofia racionalista, [14] é crença verdadeira e justificada. Crença, porque é algo em que se acredita. Verdadeira, porque pode ser demonstrada logicamente. Justificada, porque fundamentada retoricamente. [15] Já método é um procedimento, um caminho que se segue para chegar ao conhecimento de algo sem cair em erro, como definiu Descartes. [16]

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Dando mais um passo adiante, será mister fazer uma escolha entre as tradicionais dictomias da ciência: exatas-inexatas, naturais-humanas, etc. Dado que precisa-se de uma dictomia deste jaez, para delimitar o objeto de pesquisa, opta-se aqui pela classificação utilizada por Gadamer, onde se vê a divisão das ciências em ciências do espírito e ciências da natureza. Quanto à sua definição o próprio Gadamer afirma que "as ciências do espírito se afirmam tão clarividentes graças à sua analogia com as ciências da natureza, tanto que o eco idealístico, que se situa no conceito de espírito e da ciência do espírito, retrocede". [17] No que toca à origem do termo "ciências do espírito" que o filósofo tedesco emprega, refere que advém da tradução (do inglês para o alemão) do termo "moral scienses" usado por John Stuart Mill. [18]

Quanto às ciências da natureza, pode-se afirmar que são o campo natural de aplicação do método. Desta forma, são ciências cujos resultados, o saber que produzem, carregam em si um forte traço de demonstrabilidade e certeza, já que suas teses podem ser verificadas através de experiências. Trabalham fortemente com o método indutivo, onde se parte da observação de fenômenos em particular, buscando reconhecer regularidades. Como resultado, podem ser formuladas leis, que tornam previsíveis os fenômenos e processos individuais. [19] Por muito tempo foram tidas como o modelo da ciência.

Já as chamadas ciências do espírito podem ser definidas como aquelas em que o homem é objeto de estudo, sendo que cada uma delas o observa sob certa prisma. Assim pode-se citar como ciências do espírito a Psicologia, a Sociologia, a História, o Direito, etc. Seu status de ciência já foi em muitas épocas contestado, dado que suas conclusões, suas "verdades" não têm o mesmo grau de verificabilidade e certeza que têm as das ciências da natureza. No Direito mesmo, não são poucos os autores que preferem conceitua-lo antes como uma arte do que como uma ciência. [20] Essa postura de negação da cientificidade das ciências do espírito surge, seguramente, da comparação das mesmas com as ciências da natureza e seus resultados seguros, produzidos metodicamente.

Nesta esteira é que Descartes, no século XVII, confessando sua perplexidade frente a constatação que havia feito, de que as bases das ciências do espírito estavam postas sobre a areia movediça, de que eram muito frágeis, procurou transplantar para estas mesmas ciências o método das matemáticas (ciências da natureza). [21] São as regras que estabeleceu no seu "Discurso do Método", valendo-se das quais, acreditava ele, poder-se-ia evitar o erro e chegar à evidência, à verdade, à certeza. Este modo de proceder, com o método copiado das ciências da natureza, é que poderia garantir às ciências do espírito a dignidade de verdadeiras ciências. O pensamento de Descartes, tal como esboçado aqui, foi a semente de uma grande corrente filosófica chamada racionalismo e lhe rendeu o título de "pai da ciência moderna". [22]

Dentro desta "ciência moderna", sustentada pelo paradigma racionalista ou da filosofia da consciência, como prefere Streck, ou mesmo do "Aufklärung", [23] como gosta de chamá-lo Gadamer, o conhecimento se dá na relação sujeito-objeto e a linguagem é uma terceira coisa interposta entre ambos. O sujeito cognoscente, frente à coisa, procura extrair a sua essência. Já a palavra é um mero instrumento de manifestação do pensamento, imperfeito, aliás. É preciso evitar a todo custo a precipitação e pré-juízo. Instaura-se, assim um preconceito contra o preconceito, muito bem traduzido no imperativo categórico de Kant: "Serve-te de seu próprio entendimento". [24]

Uma ciência que se guiasse pelos princípios acima seria capaz de, com seu método da lógica formal, típico das matemáticas, garantir a objetividade do conhecimento. O método científico vem, assim, para acabar com a época das "opiniões" que foi a escolástica, e restaurar o predomínio da razão frente ao predomínio da crença, que se verificou ao longo de toda a Idade Média. A idéia de verdade e conhecimento no período mais radical do racionalismo reivindica os atributos de infinitude e atemporalidade. A razão infinita do homem pode funcionar como uma mônada, fora do tempo e do espaço, capaz de um saber absoluto.

O poder de apreensão do mundo e domínio sobre a natureza, que o "Aufklärung" aspirava provocou o fascínio dos pensadores a partir do século XVII. A primeira oposição consistente contra esta filosofia só foi aparecer dois século depois, com a reação romântica. Assim a descreve Alexander: [25]

Os filósofos ao iluminismo tentaram criar uma nova sociedade baseada nos mesmos princípios racionais e mecanísticos que haviam ampliado com êxito o conhecimento do homem a respeito do universo físico. No início do século XIX, porém, o otimístico e vitorioso espírito do racionalismo entregou-se rapidamente à desilusão e a razão foi destronada pela redescoberta da profundeza irracional da psiquê humana. Instinto e paixão tornaram-se os pontos focais de interesse.

A idéia do século XVIII de que a razão poderia fazer do mundo um lugar melhor onde se viver passou a ser considerada ilusória e o desencanto com o valor racionalidade foi um "mal do século" que dominou a mentalidade européia e do qual Byron se tornou o maior intérprete. Nesse sentido, pede-se licença para fazer mais uma transcrição da obra de Alexander: [26]

Assim, nas cinco primeiras décadas entre 1790 e 1840 houve um movimento para longe da razão da direção da emoção e da fé. Essa oscilação para o misticismo é com freqüência considerada como regressiva, mas tal avaliação é uma opinião mito parcial sobre o progresso. Se o progresso consiste meramente no domínio intelectual do universo físico, então a era romântica interrompeu o inexorável avanço do credo científico. Mas se o conceito de progresso não se limitar exclusivamente ao crescente domínio do mundo físico, mas ampliar-se de modo a incluir o da personalidade do homem, então foram realmente grandes as contribuições da era romântica.

O romantismo foi uma pesada crítica sobre o "Aufklärung" porém não construiu nenhuma teoria que pudesse substituir o paradigma racionalista ou da filosofia da consciência. No entanto, abriu caminho para novos horizontes do filosofar, que culminaram com o pensamento de um Martin Heidegger. Este sim, com sua ontologia fundamental, voltada para a questão do ser, é que funda uma nova matiz epistemológica capaz de fazer frente ao racionalismo.

Modernamente, vê-se juristas de todas as partes do mundo investigando os fundamentos da ciência jurídica atual. Invariavelmente o que se tem constatado é que, também no campo jurídico, o ideal da ciência moderna, o paradigma da filosofia da consciência, instalou-se como vetor de racionalidade do Direito. [27] Contra esta invasão da lógica formal, do tipo matemática, na ciência jurídica, levantou-se Recasens Siches, ao propor a lógica do razoável, a lógica do humano, em substituição do método da lógica formal. Veja-se o que diz o jurista mexicano: [28]

La correcta inteligencia o compreensión de los productos humanos, de las objetivaciones de la vida humana – o de la cultura, si es que se prefiere usar ese viejo término, a pesar de su lastre de equívocos –, requiere que nos acerquemos a tales objectos con los métodos adequados a la especial manera de ser de éstos. No se puede conocer un producto humano desde el punto de vista de las categorías que manejamos para la comprensión de los fenómenos físicos o biológicos. És necesario que descubramos las notas esenciales de esos objetos humanos, para saber el método que debemos emplear para conocerlos. Seguramente cuando hayamos estabelecido las categorías en las que lo humano se da, nos hablaremos ya en el camino para explorar una nueve parte de la lógica, la lógica de lo humano que hasta hace poco tiempo habia sido solo presentida o barruntada de modo vago y en la que hoy se comienza ya a poner pie firme.

Ainda no século XVIII, Helmholtz, Dilthey e outros batalharam a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito. Buscaram identificar o método próprio desta ciências ao invés de usar como padrão universal o método das ciências da natureza. Porém, segundo Gadamer, fracassaram, dado que suas tentativas epistemológicas não conseguiram se desvincular do padrão do "Aufklärung". Assim, diz o filósofo alemão que "o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar. Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito". [29]

Tendo sido feitas estas breves considerações à respeito dos termos ciência e método e tendo-se procurado demonstrar como o método das ciências da natureza foi transplantado para as ciências do espírito, pode-se continuar. Vai-se agora no encalço da palavra Hermenêutica.

2. Considerações acerca do termo Hermenêutica

Segundo Ana Paula B. Zeifert "o vocábulo Hermenêutica originalmente designa expressão de pensamento, sugerindo um processo de "tornar compreensível", para interpretar o sentido das palavras, interpretar textos sagrados, interpretar as leis". [30] O verbo "hermeneuein" e o substantivo "hermeneia" estão ligados a Hermes, deus da mitologia grega a quem era atribuída a descoberta da linguagem e da escrita. Hermes era o deus mensageiro, anunciador. Sua principal tarefa, enquanto sacerdote do oráculo de Delfos, era transmitir e interpretar as mensagens enviadas pelos deuses aos homens, e vice-versa. [31]

Embora o ato de interpretar e descobrir o significado dos textos seja tão antigo quanto é a expressão escrita, o advento do termo Hermenêutica só se deu muito mais tarde. Veja-se o que diz Grondin: [32]

Por hermenêutica entende-se, desde o primeiro surgimento da palavra no século XVII, a ciência e, respectivamente, a arte da interpretação. Até o fim do século passado, ela assumia normalmente a forma de uma doutrina que prometia apresentar as regras de uma interpretação competente. Sua intenção era de natureza predominantemente normativa e mesmo técnica. Ela se restringia à tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algumas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da interpretação. Ela desfrutava de uma existência externamente em grande parte invisível, como "disciplina auxiliar" no âmbito daqueles ramos estabelecidos da ciência, os quais se ocupavam explicitamente com a interpretação de textos ou sinais. Por isso formou-se, desde a Renascença, uma hermenêutica teológica (sacra), uma hermenêutica filosófica (profana), como também uma hermenêutica jurídica.

Apesar dessa origem, que pode-se dizer recente, Grondin esclarece que "a idéia da arte da interpretação remonta a um passado bem mais longínquo, seguramente até a Patrística, quando não até a filosofia estóica... Em toda parte, onde, de certa forma, foram oferecidas indicações metodológicas de interpretação, pode-se falar de Hermenêutica no sentido ais amplo da palavra". [33]

Esta Hermenêutica, tal qual descrita tomando de empréstimo as palavra de Grondin, é filha do racionalismo, tanto que pretende ser uma ciência de interpretação, sistematizadora e aclaradora dos seus métodos, indispensável para garantir a objetividade da compreensão e evitar o arbítrio do subjetivismo. Por isto não se deve estranhar que tenha surgido apenas no século XVII, pois a este tempo o "Aufklärung" já havia despontado e o seu ideal metodológico-cientificista já avançava sobre as ciências do espírito.

Só modernamente, em pleno século XX, é que esta Hermenêutica, que pode-se chamar de tradicional, começa a perder a sua primazia. O modelo epistemológico da filosofia da consciência, que considera o conhecimento como fruto da relação sujeito-objeto, onde o ser cognoscente trata de extrair a essência da coisa, passa a ser questionado. Os estudos envolvendo a questão da linguagem evoluem no sentido de não mais considerá-la como mero instrumento de manifestação do pensamento, como uma terceira coisa interposta entre sujeito e objeto. A linguagem passa a ser reconhecida como a própria condição de possibilidade do conhecimento, que se dá agora numa relação sujeito-sujeito. Dentro deste novo contexto é que se pode situar a Hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, que será objeto de detida atenção no segundo capítulo desta monografia.

Após esta breve retrospectiva histórica, passa-se agora a analisar algumas definições acerca da palavra Hermenêutica. Ao lado do conceito dito tradicional, ou seja, de ciência da interpretação, é possível encontrar outros, antigos e modernos. Fica-se aqui apenas com a autoridade de Ernildo Stein, para quem: [34]

Esse conceito pode se apresentar com quatro sentidos. Primeiro, pode designar uma espécie de compreensão ingênua. Em segundo lugar, tem um sentido metodológico aplicado à interpretação nas ciências. Em terceiro lugar, a hermenêutica pode ser apresentada como hermenêutica filosófica, querendo isto dizer que aquelas realidades com que lida se situam para além da compreensão de certos campos, como, por exemplo, na arte, na história e na linguagem, indicando um conhecimento de verdade que esta além dos enunciados verdadeiros e falsos. E, em quarto lugar, a hermenêutica liga-se ao "como" hermenêutico que, no fundo, se refere sempre ao modo de ser do próprio ser humano enquanto ser no mundo, que já sempre se compreende e explicita em seu modo de ser.

No segundo sentido de que fala Stein, pode-se enquadrar perfeitamente a Hermenêutica tradicional, exposta linhas atrás e típica do discurso da ciência. Já no terceiro e quarto sentidos, acredita-se que Hermenêutica seja aquilo que Heidegger propôs em sua ontologia hermenêutica, e que Gadamer desenvolveu em sua Hermenêutica filosófica.

Neste ponto, quer-se trazer à baila o projeto hermenêutico de Emílio Betti, que embora não seja objeto direto desta pesquisa, acredita-se seja de grande valia para uma melhor compreensão do assunto aqui tratado. Desta forma, sobre Betti têm-se a dizer que foi o último grande teórico daquilo que se chama de Hermenêutica tradicional. Embora tendo formação jurídica, Betti ocupou-se de formular uma teoria geral da Hermenêutica, tendo como alguns de seus principais fundamentos as obras de Schleiermacher e Dilthey. Assim, sua teoria hermenêutica não pretende valer apenas no âmbito do jurídico, mas igualmente na Teologia, na Filologia e na História.

Betti admite que sua pretensão não é filosófica. Seu objetivo é construir uma teoria geral da interpretação baseada na objetividade e estruturada em cânones interpretativos que a garantam. [35] Estes cânones são quatro e expressam a constante tensão que existe entre a subjetividade do intérprete e a objetividade do sentido a ser descoberto. Dois destes cânones dizem respeito ao objeto e os outros dois ao sujeito congnoscente. Entre os primeiros está o cânone da autonomia hermenêutica, que pretende que o interprete se atenha ao sentido próprio e originário da forma representativa que se está o interpretar, furtando-se a lhe atribuir sentido. O outro cânone relativo ao objeto é o da totalidade e coerência da consideração hermenêutica, que diz que o intérprete deve dirigir seus esforços de forma a integrar o sentido de cada parte no todo do objeto a interpretar, de forma que o todo nos esclareça sobre as partes e as partes nos esclareçam sobre o todo. [36]

Quanto aos cânones relativos ao sujeito, e que visam justamente limitar a sua subjetividade na tarefa de interpretar, são eles o cânone da atualidade da compreensão e o cânone da cogenialidade hermenêutica. O primeiro refere-se à necessidade de o interprete reconstruir a partir de si próprio a obra a ser interpretada, atualizando-a. O segundo é o que exige do intérprete uma assimilação cogenial do objeto. Para isto é preciso haver uma abertura mental que lhe possibilite encontrar a melhor forma de se aproximar da obra, para interrogá-la e entendê-la. [37]

A tipologia da interpretação bettiana é elaborada levando-se em conta a função que cada espécie de interpretação pretende cumprir. Desta forma, Betti divide a interpretação em recongitiva, representativa e normativa. A interpretação recognitiva é aquela que se exaure em si mesma, não tendo outro objetivo que o de contemplar e compreender. São enquadráveis nesta espécie tanto a interpretação filológica como a interpretação histórica. A primeira toma os textos que estuda como objetos de fixação de um pensamento, cujo verdadeiro sentido procura encontrar refazendo mentalmente todas as etapas da criação, a partir do próprio texto. É a busca do sentido original. A segunda, da mesma forma, toma os acontecimentos históricos como objeto de estudo com o único fim de descobrir o seu sentido primeiro, tentando voltar à época em que se deram os fatos. Neste tipo de interpretação são largamente utilizados os elementos gramatical e psicológico.

A interpretação representativa, como também a normativa, já têm um momento de aplicação. Assim esta espécie de interpretação "tem como peculiaridade a transposição do sentido encontrado em uma forma representativa original para o destinatário da mensagem por meio de outra forma representativa idônea a tal tarefa". [38] Trata-se, pois, de uma operação em que há uma preocupação em transmitir uma mensagem de modo mais fidedigno possível, de maneira que a compreensão não seja um fim em si mesma, mas apenas etapa preliminar e necessária. Este tipo de interpretação é encontrável nas situações de tradução ou exposição oral de um texto em outra língua que não a original, na interpretação dramática e na musical. Nele, o intérprete, apesar de reconstruir o sentido da forma que está interpretando, para depois comunicá-lo, tem o dever de manter-se fiel à criação original, seguindo, desta forma, a cânone da autonomia hermenêutica.

Já a interpretação normativa, na qual é possível alinhar a interpretação jurídica e a teológica, tem sempre como finalidade disciplinar a conduta humana. Para dizer mais uma palavra sobre este tipo de interpretação, Roesler: [39]

A interpretação em função normativa caracteriza-se por buscar a compreensão com a finalidade de ordenar a ação, ou seja, de disciplinar a conduta humana à luz de regras, princípios ou máximas que constituem a sua peculiar forma representativa. Ela é "normativa" porque sua destinação é a interpretação de normas, não devendo ser confundida com o que, de um ponto de vista jurídico, poderia ser chamado de "vinculação" operada por normas.

Como peculiaridade desta espécie de interpretação tem-se que ela exige do intérprete uma espécie de adesão. Deve ele reconhecer a regra em si e para si, internalizá-la, reconhecer a sua autoridade.

Para não se fazer injustiça com a obra de Betti é preciso tecer algumas aclarações. Como mencionado, Betti é o último baluarte daquilo que se chama de Hermenêutica tradicional ou objetiva. Seus cânones hermenêuticos deveriam garantir a objetividade da interpretação. Mas o jusfilósofo italiano, tomando emprestada uma idéia de Hartmann, divide a objetividade em ideal e real. Uma objetividade ideal, reconhece Betti, seria algo impensável nas ciências do espírito, dado que nestas toda a interpretação traz consigo uma opção valorativa e uma influência inafastável da experiência de vida do intérprete. Os cânones hermenêuticos podem apenas garantir uma objetividade real, produto do intelecto humano com suas cargas axiológicas e de sua estrutura temporal e finita. Neste ponto Betti já se afasta bastante dos seus antecessores, que acreditavam na possibilidade de alcançar, através do método, aquela objetividade ideal. Também a relação sujeito-objeto desaparece, sendo substituída por uma relação espírito-espírito. Assim, o espírito do presente trata de compreender, de tentar colocar-se no lugar do espírito antecedente e reconstruir o caminho de criação da sua obra.

Entretanto, em dois pontos Betti continua fortemente vinculado aos seus antecessores da Hermenêutica tradicional. São eles a idéia peremptória de que o intérprete não cria ou não deve criar nada, o que fica claro no cânone da autonomia hermenêutica, e também a separação que Betti faz entre compreensão/interpretação e aplicação. Para ele a aplicação é sempre um momento posterior à compreensão. É precisamente sobre estes pontos que travou-se uma grande polêmica entre Betti e Gadamer nos anos 40-50. A diferença entre o modo de pensar gadameriano e bettiano quanto a estes aspectos da Hermenêutica ficará mais clara quando, no próximo capítulo, analisar-se mais detidamente a obra do autor alemão.

Feitas estas considerações, julgadas fundamentais, em torno das idéias de ciência, método e Hermenêutica, entende-se que é possível partir para a análise das obras dos dois autores que na introdução foram qualificados como paradigmáticos para a compreensão das duas formas de Hermenêutica que se pretende apresentar, quais sejam, método e não-método. É o ítem que segue.

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Sobre o autor
Fábio João Szinwelski

Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZINWELSKI, Fábio João. Hermenêutica jurídica – duas visões: método e não método. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2673, 26 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17707. Acesso em: 2 nov. 2024.

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