11.1 tutela do direito a segurança pública
Conforme o disposto no art. 144 da Constituição Federal, a segurança pública é um dever do Estado cuja observância visa à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para cumprir este dever, o Estado utiliza vários órgãos especializados, dentre os quais se destacam as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares estaduais.
José Afonso da Silva (1994, p. 658) ensina que a segurança pública deve ser entendida como a situação de preservação ou restabelecimento da pacífica convivência social, que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites do gozo e reivindicação de seus próprios di rei tos e defesa de seus legítimos interesses.
A segurança é um direito fundamental de segunda geração que encontra previsão expressa no caput dos arts. 5º e 6º da Constituição Federal, que garantem a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil a sua inviolabilidade. O inciso I do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor permite concluir que a segurança pública é um direito difuso que é deferido a todos os residentes no território nacional. Do mesmo modo, deve-se notar que é dever do Poder Público garantir a efetividade de tal direito.
Isso significa que a ação civil pública pode ser manejada por qualquer dos legitimados para a tutela do referido direito fundamental, visando corrigir eventuais falhas constatadas nos serviços de segurança pública prestados por instituição militar. Tal possibilidade de correção, na Justiça Militar estadual, no entanto, está vinculada aos atos que digam respeito à disciplina militar. Na alusão que o parágrafo 4º do art. 125 da Constituição da República faz à competência civil da Justiça Militar estadual, está expressa a sua vinculação às ações judiciais propostas contra atos disciplinares.
Por isso, se o Ministério Público propuser uma ação civil pública contra o Estado, pedindo a condenação na obrigação de realizar concurso público para aumentar o efetivo policial, considerado insuficiente para atender às necessidades de com bate à criminalidade, será competente a Justiça Comum. Mas, se o órgão de execução ministerial propuser a ação pleiteando modificação nas regras disciplinares implementadas por autoridade administrativa militar, ao fundamento de que tais regras prejudicam a eficiência dos serviços de proteção ao direito fundamental de segurança, a competência será da Justiça Militar. Vejam-se os exemplos em que o comandante de unidade permita que seus subordinados exerçam atividades laborativas paralelas ao desempenho das funções militares ou estabeleça jornada de trabalho reduzida para militares. Nestes casos, a ação civil pública visa preservar a disciplina adequada ao bom desempenho das funções protetivas da segurança pública e deve ser pro posta na Justiça Militar.
11.2 tutela dos direitos relativos à categoria especial dos militares
O disposto no inciso II do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, leva-nos a concluir que todos os direitos que toquem especificamente à categoria especial dos militares estaduais são considerados coletivos e também podem ser tutelados por ação civil pública.
Na tutela dos interesses coletivos dos militares estaduais, importa notar que a Lei n° 7.347/1985 não confere legitimidade às associações de classe para a defesa dos interesses coletivos de seus associados. O art. 5° da referida lei deixa claro que apenas as associações que incluam entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico podem utilizar do instrumental fornecido pela ação civil pública. Para as associações a lei previu uma legitimidade ativa limitada.
A competência da Justiça Militar estadual para conhecer e julgar ações civis públicas em defesa dos direitos coletivos dos militares estaduais, da mesma forma como acontece nas hipóteses de defesa dos direitos difusos, vincula-se às questões relativas ao exercício do poder disciplinar. Mesmo considerando de maneira ampla a noção de ato disciplinar, resta claro que estão excluídas do âmbito de competência da Justiça Militar estadual as ações relativas aos direitos previdenciários, aos valores de vencimentos, aos critérios administrativos e casos concretos de promoção, bem como relativos à transferência de militares para a inatividade.
A compreensão sobre quais direitos coletivos dos militares estaduais se relacionam com a disciplina constitui desafio relevante a ser enfrentado pelos operadores do Direito na Justiça Castrense. Em três oportunidades nas quais foi chamado a se pronunciar, em ações individuais, o Egrégio Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais decidiu ser competente para conhecer e julgar pedido de redução de jornada de trabalho para militar que é responsável por filho portador de necessidades especiais. A ementa do acórdão proferido na Apelação Civil n° 77 registra que:
A competência da Justiça Militar estadual, conferida pelo § 4º do art. 125 da Constituição Federal, não se restringe ao exame dos atos administrativos punitivos. Por atos administrativos disciplinares deve-se entender todos aqueles atos que de alguma forma possam interferir na ordenação disciplinar que é característica fundamental das instituições militares.
A referida decisão considerou que:
... Não se pode imaginar que a determinação de observância da jornada de trabalho esteja fora do poder disciplinar do comandante de instituição militar. Vale observar que a injustificada falta ao serviço pelo militar é considerada transgressão disciplinar grave, conforme o disposto no art. 13, inciso XX, da Lei Estadual nº 14.310/2002, e sua conduta de chegar atrasado para qualquer ato de serviço de que deva participar é considerada transgressão disciplinar leve, nos termos do art. 15, inciso I, da referida lei. Em ambos os casos, as transgressões disciplinares autorizam a aplicação de sanções disciplinares. Portanto, não pode haver dúvidas de que o ato administrativo que dispõe sobre o horário de trabalho do servidor militar possui natureza disciplinar e a ação judicial que visa a sua anulação se insere na competência da Justiça Militar estadual, conforme o disposto no § 4º do art. 125 da Constituição Federal. TJMMG.
A questão da redução da jornada de trabalho, em decorrência de ser o militar responsável por filho que necessite de cuidados especiais, foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça Militar como relativa ao exercício do poder disciplinar também na Apelação Cível n° 97. As decisões já proferidas provocam a reflexão sobre a amplitude da noção jurídica de ato disciplinar e estimulam a defesa dos interesses coletivos por meio de ação civil pública. Certamente, a referida questão da redução da jornada de trabalho pode ser levada novamente a julgamento por meio de ação civil pública. Nesta hipótese, a decisão proferida na ação coletiva alcançaria todos os militares que se encontrarem na referida situação.
11.3 para a tutela de direitos individuais homogêneos
A ação civil pública também pode ser manejada para a defesa dos di rei tos individuais homogêneos (inciso III do art. 81 da Lei nº 8.078/1990). A previsão legal para esse caso não está no art. 1° da Lei n° 7.347/1985, que se refere apenas aos direitos difusos e coletivos. A possibilidade jurídica para a utilização da ação civil pública de corre do art. 83 da Lei n° 8.078/1990 – CDC – ao dispor que:
Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis to das as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Cabe observar que os interesses individuais homogêneos não se confundem com os difusos e os coletivos, não podendo ser caracterizados como transindividuais de na tu reza indivisível. Ao contrário, são essencialmente individuais, identificáveis e divisíveis. A classificação diferenciada em relação aos de mais interesses individuais resulta apenas da possibilidade jurídica de defesa por meio de ação coletiva. Considerando as características comuns nas quais se encontram os titulares individuais, a ordem jurídica confere certa coesão para a defesa em juízo. (TO PAN, 1993, p. 28). O jurista Hugo Nigro Mazzilli esclarece que os interesses individuais homogêneos são aqueles de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum (2003, p. 51). A tu tela coletiva destes direitos ou interesses de pende da caracterização de sua homogeneidade. O aspecto coletivo deve prevalecer sobre o individual. Não caracterizada esta prevalência, os direitos serão heterogêneos, mesmo que tenham uma origem comum, e será juridicamente impossível a tutela coletiva.
Ordinariamente, as questões que autorizam a defesa coletiva de direitos individuais homogêneos de militares não se inserem no âmbito da competência da Justiça Militar. Consideremos o seguinte exemplo: a Administração militar adquire certa quantidade de coletes a prova de balas para a proteção de policiais em serviço. Devido a problemas na qualidade do equipamento, alguns policiais acabam feridos em operações. É possível que uma ação coletiva seja proposta contra o Estado, pedindo a reparação dos danos sofridos por todos os policiais. Tal ação, por não se referir a qualquer aspecto do poder disciplinar, é da competência da Justiça Comum.
Por outro lado, quando a que tão de interesse individual homogêneo se relacionar com qualquer manifestação do poder disciplinar a competência para conhecer e julgar a ação coletiva será da Justiça Militar. Consideremos agora outro exemplo: um ato administrativo de movimentação de tropas que se fundamenta na conveniência da disciplina pode ter sido praticado com desvio de finalidade e atingir determinado grupo de militares. Caracterizada a existência de interesse individual homogêneo, uma ação coletiva poderá ser proposta perante a Justiça Militar para a comprovação do desvio de finalidade e invalidar o ato que atingiu certo número de militares. No caso, como a tutela coletiva visa invalidar um ato administrativo disciplinar, a competência será da Justiça Militar.
11.4 Improbidade administrativa
Nos últimos anos, a ordem jurídica aprimorou a tutela aos direitos massificados e regulou casos especiais de ação civil pública. Dentre eles, a Lei Federal nº 8.429/1992 tratou especificamente da ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Certamente, este é um tema que possui grande importância no cotidiano das instituições militares.
A Lei n° 8.429/1992 regulamentou o disposto no art. 37, § 4°, da Constituição Federal, estabelecendo mecanismo de responsabilização por atos que ofendam os princípios administrativos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nos incisos de seu art. 12, a lei estabeleceu que são aplicáveis em decorrência de condenação por prática de ato de improbidade administrativa as seguintes penas: perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.
A possibilidade jurídica de que um militar estadual da ativa venha a praticar um ato de improbidade administrativa é evidenciada pelo próprio texto da Lei n° 8.429/1992, já que no § 3° de seu art. 14 determina que a apuração preliminar do ato ímprobo praticado pelo servidor militar seja realizada de acordo com os respectivos regulamentos. Os arts. 14 a 17 da referida lei esclarecem que a ação civil de improbidade administrativa deve ser proposta pelo Ministério Público, mas a propositura da ação depende da existência de um lastro probatório mínimo sobre a ocorrência do ato ilícito. A gravidade das conseqüências do reconhecimento da improbidade administrativa impõe tomar-se certa cautela antes da propositura da ação, como também acontece com a ação penal pública.
Por força do disposto no art. 129, inciso III, da Constituição Federal, e art. 8°, § 1°, da Lei nº 7.347/1985, para instruir a petição inicial da ação civil pública, o Ministério Público pode instaurar o inquérito civil público. No âmbito do inquérito civil público o Ministério Público faz uma apuração preliminar sobre a ocorrência do ato de improbidade e reúne as provas necessárias à propositura da ação. No entanto, a legitimidade para a ação civil pública por ato de improbidade não é restrita ao Ministério Público. O art. 17 da Lei n° 8.429/1992 também confere à pessoa jurídica lesada pela improbidade, que é diretamente interessada no desfecho da ação, legitimidade para a sua propositura. O art. 14, § 3°, da referida lei deixa claro que, para que a pessoa jurídica interessada possa propor a ação civil de improbidade administrativa deve proceder a uma investigação preliminar. E tal dispositivo ainda determina como se deve proceder à investigação preliminar: "[...] em se tratando de servidores federais, será processada na forma prevista nos arts. 148 a 182 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e, em se tratando de servidor militar, de acordo com os respectivos regulamentos disciplinares."
No caso de ato de improbidade praticado por servidor militar, a lei determinou que a apuração preliminar seja feita de acordo com o respectivo regulamento. A expressa previsão para se utilizar o regulamento disciplinar presta-se unicamente a indicar que a autoridade administrativa militar tem o dever de proceder à apuração do ilícito. Mas, se a investigação for conduzida por meio de inquérito civil público instaurado pelo Ministério Público não há qualquer nulidade. É a própria Constituição da República que atribui ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127), e, para tanto, confere-lhe o poder/dever de instaurar o inquérito civil público. Desta forma, a previsão da Lei n° 8.429/1992 não poderia restringir as atribuições constitucionais do Ministério Público, mas apenas complementá-la.
Concluída a investigação preliminar, o poder público, seja por meio do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada, tem o dever de propor a ação de improbidade administrativa. Não é possível admitir que, uma vez constatada a ocorrência da improbidade, possa o poder público abrir mão de promover a responsabilidade do servidor ímprobo e reparar os danos matérias e extra patrimoniais causados pelo ato de improbidade. No âmbito do ilícito civil público, vigora o mesmo princípio da obrigatoriedade que se observa orientar a ação penal pública.
Cabe lembrar ainda que é atribuição constitucional do Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, bem como a defesa dos direitos fundamentais do cidadão. Certamente, se os serviços inerentes à segurança pública estão sendo prestados de maneira ineficiente, o Ministério Público tem legitimidade para propor as medidas judiciais necessárias à sua regularização. Por isso, quando o Ministério Público propõe uma ação civil de improbidade administrativa contra militar estadual ímprobo ataca essencialmente a omissão ou a ação disciplinar ineficiente da Administração militar, que não é capaz de impedir a continuidade do ilícito e responsabilizar o seu autor. Tal atuação ministerial materializa efetiva defesa ao direito fundamental do cidadão de receber do poder público os serviços inerentes à segurança pública.
10.4.1Competência da Justiça Militar
Normalmente, a improbidade administrativa de militar caracteriza um atoindisciplinado e não um ato disciplinar. O ato disciplinar é o ato emanado da autoridade administrativa militar que visa essencialmente à preservação da disciplina da tropa. Somente quando a improbidade administrativa estiver relacionada com o exercício de funções disciplinares militares a Justiça Militar será competente para processar e julgar as ações de improbidade.
Em muitos casos, é possível que a improbidade administrativa se consubstancie na prática de um ato administrativo disciplinar. Considerando-se o disposto no inciso I do art. 9º da Lei nº 8.429/1992, haverá improbidade administrativa quando a autoridade administrativa determina a transferência de militar por conveniência da disciplina, mas a real motivação constitui o atendimento do interesse particular do militar transferido. Note-se, ainda, que a responsabilidade civil por ato de improbidade não impede a responsabilidade penal pelo mesmo fato. Vejamos mais alguns exemplos: nos termos do inciso I do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, se o ato disciplinar for praticado visando a fim proibido em lei ou regulamento ou, ainda, diverso daquele previsto na regra de competência, haverá a caracterização da improbidade. Veja-se o exemplo em que um militar entra no exercício de funções de comando antes de satisfeitas as exigências legais e emite ordens disciplinares. O fato é proibido por lei, art. 329 do Código Penal Militar, e caracteriza improbidade administrativa. Da mesma forma, com base no inciso II do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, se a autoridade militar, indevidamente, deixar de praticar o ato disciplinar a que estava obrigado em razão das funções poderá caracterizar-se a improbidade. Consideremos agora o exemplo em que a autoridade militar deixa de responsabilizar subordinado que comete infração no exercício do cargo. O fato caracteriza crime – art. 322 do Código Penal Militar – e, também, improbidade administrativa.
Vale observar que a competência da Justiça Militar para as ações de improbidade administrativa somente decorre da vinculação que as questões concretas possam guardar com o exercício do poder disciplinar. Não é juridicamente possível admitir a competência da Justiça Castrense com base na previsão constitucional para a decisão sobre a perda do posto e da patente dos oficiais ou da graduação das praças. Nesse aspecto, o § 4° do art. 125 da Constituição Federal somente conferiu competência criminal à Justiça Militar, e ação de improbidade administrativa possui natureza cível.
A questão foi cuidadosamente examinada pelo Superior Tribunal de Justiça, em conflito negativo de competência n. 100.682 – MG envolvendo caso concreto submetido a exame de nossa Justiça Estadual, quando ficou decidido o seguinte:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO CIVIL DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PROPOSTA PELO MP CONTRA SERVIDORES MILITARES. AGRESSÕES FÍSICAS E MORAIS CONTRA MENOR INFRATOR NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO POLICIAL. EMENDA 45/05. ACRÉSCIMO DE JURISDIÇÃO CÍVEL À JUSTIÇA MILITAR. AÇÕES CONTRA ATOS DISCIPLINARES MILITARES. INTERPRETAÇÃO. DESNECESSIDADE DE FRACIONAMENTO DA COMPETÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DO ART. 125, § 4º, IN FINE, DA CF/88. PRECEDENTES DO SUPREMO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO.
1. Conflito negativo suscitado para definir a competência – Justiça Estadual Comum ou Militar - para julgamento de agravo de instrumento tirado de ação civil por improbidade administrativa proposta contra policiais militares pela prática de agressões físicas e morais a menor infrator no âmbito de suas funções, na qual o Ministério Público autor requer, dentre outras sanções, a perda da função pública.
2. São três as questões a serem examinadas neste conflito: (a) competência para a causa ou competência para o recurso; (b) limites da competência cível da Justiça Militar; e (c) necessidade (ou não) de fracionar-se o julgamento da ação de improbidade.
3. Competência para a causa ou competência para o recurso:
3.1. O julgamento do conflito de competência é realizado secundum eventum litis, ou seja, com base nas partes que efetivamente integram a relação, e não aqueles que deveriam integrar. De igual modo, o conflito deve ser examinado com observância ao estágio processual da demanda, para delimitar-se, com precisão, se no incidente se discute a competência para a causa ou a competência para o recurso.
3.2. Na espécie, o juízo estadual de primeira instância concedeu em parte o requerimento de suspensão cautelar dos réus na ação de improbidade, o que gerou recurso de agravo interposto pelo MP perante a Corte Estadual que, sem anular a decisão de primeira instância, determinou a remessa dos autos ao Tribunal Militar.
3.3. Discute-se, portanto, a competência para o recurso, e não a competência para a causa. Nesses termos, como o agravo ataca decisão proferida por juiz estadual, somente o respectivo Tribunal de Justiça poderá examiná-lo, ainda que seja para anular essa decisão, encaminhando os autos para a Justiça competente. Precedentes.
4. Neste caso, excepcionalmente, dada a importância da matéria e o fato de coincidirem a competência para o recurso e a competência para a causa, passa-se ao exame das duas outras questões: especificamente, os limites da jurisdição cível da Justiça Militar e a necessidade (ou não) de fracionar-se o julgamento da ação de
improbidade.
5. Limites da jurisdição cível da Justiça Militar:
5.1. O texto original da atual Constituição, mantendo a tradição inaugurada na Carta de 1946, não modificou a jurisdição exclusivamente penal da Justiça Militar dos Estados, que teve mantida a competência apenas para "processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei".
5.2. A Emenda Constitucional 45/04, intitulada "Reforma do Judiciário", promoveu significativa alteração nesse panorama. A Justiça Militar Estadual, que até então somente detinha jurisdição criminal, passou a ser competente também para julgar ações civis propostas contra atos disciplinares militares.
5.3. Esse acréscimo na jurisdição militar deve ser examinado com extrema cautela por duas razões: (a) trata-se de Justiça Especializada, o que veda a interpretação tendente a elastecer a regra de competência para abarcar situações outras que não as expressamente tratadas no texto constitucional, sob pena de invadirse a jurisdição comum, de feição residual; e (b) não é da tradição de nossa Justiça Militar estadual o processamento de feitos de natureza civil.
Cuidando-se de novidade e exceção, introduzida pela "Reforma do Judiciário", deve ser interpretada restritivamente.
5.4. Partindo dessas premissas de hermenêutica, a nova jurisdição civil da Justiça Militar Estadual abrange, tão-somente, as ações judiciais propostas contra atos disciplinares militares, vale dizer, ações propostas para examinar a validade de determinado ato disciplinar ou as conseqüências desses atos.
5.5. Nesse contexto, as ações judiciais a que alude a nova redação do § 4º do art. 125 da CF/88 serão sempre propostas contra a Administração Militar para examinar a validade ou as consequências de atos disciplinares que tenham sido aplicados a militares dos respectivos quadros.
5.6. No caso, a ação civil por ato de improbidade não se dirige contra a Administração Militar, nem discute a validade ou conseqüência de atos disciplinares militares que tenham sido concretamente aplicados.
Pelo contrário, volta-se a demanda contra o próprio militar e discute ato de "indisciplina" e não ato disciplinar.
6. Desnecessidade de fracionar-se o julgamento da ação de improbidade:
6.1. Em face do que dispõe o art. 125, § 4º, in fine, da CF/88, que atribui ao Tribunal competente (de Justiça ou Militar, conforme o caso) a tarefa de "decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças", resta saber se há, ou não, necessidade de fracionar-se o julgamento desta ação de improbidade, pois o MP requereu, expressamente, fosse aplicada aos réus a pena de perdimento da função de policial militar.
6.2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou que a competência para decidir sobre perda do posto ou da patente dos oficiais ou da graduação dos praças somente será da competência do Tribunal (de Justiça ou Militar, conforme o caso) nos casos de perda da função como pena acessória do crime que à Justiça Militar couber decidir, não se aplicando à hipótese de perda por sanção administrativa, decorrente da prática de ato incompatível com a função de policial ou bombeiro militar. Precedentes do Tribunal Pleno do STF e de suas duas Turmas.
6.3. Nesse sentido, o STF editou a Súmula 673, verbis : "O art. 125, § 4º, da Constituição não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo".
6.4. Se a parte final do art. 125, § 4º, da CF/88 não se aplica nem mesmo à perda da função decorrente de processo disciplinar, com muito mais razão, também não deve incidir quando a perda da patente ou graduação resultar de condenação transitada em julgado na Justiça comum em face das garantias inerentes ao processo judicial, inclusive a possibilidade de recurso até as instâncias superiores, se for o caso.
6.5. Não há dúvida, portanto, de que a perda do posto, da patente ou da graduação dos militares pode ser aplicada na Justiça Estadual comum, nos processos sob sua jurisdição, sem afronta ao que dispõe o art. 125, § 4º, da CF/88.
7. Conflito conhecido para declarar competente o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o suscitado.
Após esta decisão, O Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais passou a não mais admitir a competência da Justiça Militar para conhecer e julgar as ações civis públicas que não sejam propostas contra atos disciplinares ímprobos (ACP nº 06).
Nos casos em que a Justiça Comum for competente para o processo e julgamento da ação de improbidade administrativa, poderá decretar a perda da função pública do militar. Esta é uma conseqüência imediata da condenação por improbidade administrativa, conforme o disposto nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429/1992. É certo que a perda da função pública não se confunde com a perda do posto e da patente dos oficiais, nem tampouco com a perda da graduação das praças. No entanto, a perda da função pública do militar da ativa por ato de improbidade implica necessariamente exclusão das fileiras da instituição militar estadual e a perda do posto ou da graduação respectiva. A exclusão do militar, decorrente do reconhecimento da prática de improbidade administrativa, impede-o de continuar vinculado aos níveis da hierarquia militar. Não é razoável conceber que o autor da improbidade seja excluído da IME e continue a ostentar o posto ou a graduação que anteriormente o vinculava aos níveis hierárquicos. Portanto, mesmo na Justiça Comum, a perda da função do militar da ativa acarretará sempre a perda do posto e da patente ou da graduação.