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Fundamentos teóricos do funcionalismo teleológico-racional em Claus Roxin: algumas considerações

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Agenda 15/12/2010 às 17:27

5. PENSAMENTO SISTEMÁTICO E DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL: PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS

Pode-se afirmar, de forma alguma isenta de críticas ferozes, que a dogmática jurídico-penal é a ciência do Direito Penal. A afirmação é singela, mas tormentoso tem sido o debate acerca de seu conteúdo e do significado de diversos termos que a compõem [41]. A simplicidade do enunciado encobre as querelas acerca do conceito de ciência [42] – de ciência jurídica, em especial – do método a ser utilizado por esta suposta ciência e das tarefas que deve cumprir [43].

No dizer de ROXIN:

A dogmática jurídico-penal é a disciplina que se ocupa da interpretação, sistematização e desenvolvimento (Fortbildung) dos dispositivos legais e das opiniões científicas no âmbito do Direito Penal [44]

A designação "dogmática" advém da palavra grega "dogma", que tem significado de opinião [45] (tratar-se ia, no caso, da opinião dos juristas). Porém, além disso, não parece ser equivocado entender que "dogmática" se refira, também, à aceitação da lei como dogma, consubstanciada no princípio da proibição de negação, que veda ao jurista desconsiderar a disposição da lei [46].

Tem-se, portanto, que a construção dogmática consiste na ordenação das proposições científicas, sendo-lhe vedado prescindir da referência à lei (ou, mais amplamente, ao ordenamento jurídico [47]) que analisa.

A tarefa primordial conferida à dogmática jurídica tem sido a de construção de um sistema logicamente ordenado que relacione os diversos conceitos entre si, visando à eficaz aplicação da lei [48]. Por sistema, entenda-se a clássica concepção de KANT, que é a adotada por ROXIN, segundo a qual um sistema seria a "unidade dos múltiplos conhecimentos sobre uma idéia", "totalidade de conhecimentos ordenada sob princípios" [49].

A questão controvertida, uma vez admitida a necessidade do sistema, acaba sendo a de quais elementos devem integrá-lo, quais seus fundamentos e quais conhecimentos devem ser levados em consideração quando de sua construção.

A preocupação com a dogmática e seu método lógico-dedutivo não é nova. Já transcrevemos a mordaz crítica de HUNGRIA [50], supra.

BRUNO distinguia três momentos dentro da ciência do direito penal, os quais denominava exegese, dogmática propriamente dita e crítica. Ao último atribuía a missão de aprimorar o sistema, de lege ferenda.

Com efeito, para o mestre brasileiro, a crítica deveria ser informada pelos princípios da política criminal e da criminologia, mas não interferia no momento de interpretação da lei, apenas apontando caminhos para melhorias sistemáticas e legislativas:

Por fim a crítica, que se deve inspirar, não só em princípios próprios da dogmática, mas ainda na política criminal e nas ciências causal-explicativas do crime, considera os elementos do sistema positivo vigente em confronto com as novas exigências práticas e jurídico-científicas. [...] Com isso não se abalam a eficácia e o prestígio da lei vigorante, apenas se prepara a sua reforma oportuna para o Direito futuro. [51]

Isso se deve à concepção de política criminal que adotava, claramente concorde com o célebre aforismo de LIZT [52] (que dizia ser o direito penal [a dogmática jurídico-penal] a barreira instransponível da política criminal [53]):

Mas, para isso ela [a política criminal] deve, como observa Exner, desempenhar dupla tarefa: determinar quais os fatos anti-sociais que devem ser definidos crimes e estabelecer as medidas de que o Estado se deve valer, diante deles, para a defesa social, não como função normativa estatal, como sugestão de aperfeiçoamento dos meios de combate à criminalidade. [...] A sua posição é sempre adiante do Direito vigente [...] Embora distinta do Direito Penal, penetra nele intimamente através da crítica, fornecendo a esta os mais importantes subsídios. [54]

É dizer, a política criminal traduzir-se-ia na ciência do "dever-ser do dever-ser". Sua tarefa seria a de apontar caminhos para o desenvolvimento do direito legislado, não mais que isto.

Sobre o ponto incide a tese inovadora de ROXIN, que traz a política criminal para dentro do sistema dogmático do direito penal.

Anote-se que, na construção de um sistema, deve-se escolher por um sistema classificatório ou um sistema teleológico [55].

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A fim de assegurar que a resposta dada pelo sistema dogmático a um problema por ele proposto seja "justa", isto é, responda aos anseios da política criminal, ROXIN estrutura todo seu sistema com base nas valorações político-criminais.

A fundamentação toda do próprio sistema dogmático passa a ser o fim político-criminal que o Direito Penal deve desempenhar, traduzido na proteção de bens jurídicos, efetivada pela cominação e aplicação de penas. O direito, como produto racional da sociedade moderna, traduz valorações que o homem faz acerca da realidade.

Não se admite uma suposta "natureza das coisas" como fonte nem como fundamento de nenhum direito.

Lembre-se que, não obstante reconhecer as muitas vantagens do pensamento sistemático [56], ROXIN concorda com várias críticas a ele dirigidas [57], e por isso reconhece a importância do pensamento problemático, pugnando, portanto, por uma "síntese fecunda" [58], já que julga o sistema um recurso dogmático indispensável [59]. O resultado final pretendido é um sistema aberto.


6. POLÍTICA CRIMINAL E SISTEMA DOGMÁTICO

Como visto, a construção de um sistema teleológico já caracterizava as teorias fundadas no neokantismo, e ROXIN parte dessa premissa. Mas adverte:

O progresso está, principalmente, em substituir-se a vaga orientação a valores culturais do neokantismo por um parâmetro sistematizador especificamente jurídico-penal: os fundamentos político-criminais das modernas teorias da pena. [60]

O cerne da tese é justamente a construção de um sistema dogmático fundado em diretrizes político-criminais. Põe-se, desde o início, em posição oposta à de LISZT, que defendia uma rigorosa separação entre política criminal e direito penal [61].

O Direito Penal deixa de ser a "magna carta do delinqüente", para se tornar um instrumento da própria política criminal, não só de garantia individual, mas também de proteção de bens jurídicos.

No pensamento do autor, a dogmática não deixa de atuar, portanto, como fortalecedora das garantias individuais [62]. Mas ao lado desta função, a interpretação da lei penal privilegia o sentido teleológico da lei penal, isto é, a imputação de um injusto a um agente culpável, para que se aplique a sanção penal.

O conceito de política criminal vem aqui englobar os princípios expressos e implícitos no ordenamento jurídico no que dizem respeito ao direito penal [63]. A "política criminal" deixa de ser "a ciência que estuda os meios para o combate ao crime", tornando-se uma ferramenta muito mais abrangente no sistema roxiniano, pois vai fazer parte da argumentação do dogmático [64].

As valorações político-criminais permitem um sistema aberto, no sentido de que pode ser modificado para melhor regulação dos fatos da vida (a "matéria jurídica"), impedindo que o sistema dogmático se feche em si mesmo, com respostas automáticas e insatisfatórias, baseadas em premissas arbitrariamente colocadas e imutáveis [65].

Um sistema fechado não seria satisfatório, também, porque pode não ter a resposta para um dado fato da vida [66]. "Questões sem solução" são inadmissíveis em direito.

Os esforços se sistemáticos agora se darão em conjunto com a política criminal. Esta fornecerá o conteúdo das categorias do sistema, orientando-o a seu fim. Ela deixa de contemplar o sistema para conformá-lo diretamente:

Os pontos de vista valorativos reitores, que constituem o sistema do Direito Penal, só podem ser de índole político-criminal, pois os pressupostos da punibilidade têm, naturalmente, de se orientar segundo os fins do Direito Penal. Sob esta perspectiva, as categorias fundamentais do sistema tradicional são vistas como instrumentos de valorações político-criminais, que se mostram indispensáveis também para um sistema teleológico. Os direitos humanos e os princípios do Estado de Direito e do Estado Social integram as valorações político-criminais e, através de sua vigência supranacional tornam-se "pedras base do Direito Penal europeu". [67]

Assevera ROXIN que as valorações político-criminais devem ser extraídas da própria ordem jurídica. O intérprete argumentaria dentro das linhas mestras já traçadas pelo legislador, observando o "sentido literal possível" da lei [68]. O sistema dogmático político-criminalmente fundado não admite soluções contra legem, mas já oferece subsídios para correção da legislação [69].

Aqui, portanto, é proposta uma nova perspectiva de argumentação para a dogmática jurídico-penal.

Procura o autor, assim, infirmar as críticas que lhe poderiam ser dirigidas, fundadas no dogma da "segurança jurídica".

As categorias da teoria do delito não são vistas como "compartimentos estanques", como se dava em sistemas de cunho classificatório, senão como os diversos aspectos valorativos de uma unidade real única e indissociável que é o delito [70].

Não obstante o sistema seja normativamente fundamentado, construído com base nas valorações de política criminal, não pugna ROXIN por um normativismo puro [71]. Os dados da realidade são importantes, pois permitem a apreensão escorreita do fato ocorrido, e, com isto, possibilitam a solução adequada.

O que o autor nega é uma fundamentação ontológica do sistema, sob pena de se incorrer em uma falácia naturalista, mas não que se ignore a realidade, pois é esta que deve ser regulada pelo direito. Não é tarefa da dogmática teorizar sobre o ideal, mas auxiliar na solução de casos concretos.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas breves reflexões sobre a teoria em estudo, ainda que não de todo fundamentadas, se impõem, à guisa de encerramento. Tomem-se, pois, apenas como tópicos para eventuais debates.

Pretendeu-se, no Direito, a construção de sistemas classificatórios, por pensadores impregnados por filosofia naturalista, filosofia de verdades eternas, de saberes inquisitoriais.

Ora, uma ciência que se diz normativa não pode, nunca, limitar-se a descrever uma realidade, senão que a ordenação de conhecimentos se dirige a um fim outro que não o mero ato de conhecer: o de ordenar.

Destarte, a tentativa de construir um sistema teleológico e aberto nos parece de todo louvável, e pode-se dizer que ROXIN logrou êxito em inúmeros aspectos de seu empreendimento.

De um sistema teleológico é que deve ocupar-se o jurista. Um tal sistema demonstra, de início, sua razão de ser. Em sistemas "classificatórios", tem-se uma ideologia camuflada, um fim esmaecido, ingênua ou conscientemente, e o resultado é um palco para sutilezas arbitrárias.

O sistema teleológico do delito, ao afirmar claramente os fins do Direito Penal, permite uma aplicação da lei consentânea com uma "idéia de justiça", fundada naquilo que "é devido", e, ao mesmo tempo, proporciona critérios para controle do poder punitivo e da criminalização de condutas.

A rejeição a fundamentos de cunho ontológico para qualquer teoria jurídica parece hoje já dominar o pensamento jurídico, notadamente em razão da crescente identidade entre a filosofia do direito e a filosofia do direito constitucional. Igualmente, o repúdio ao formalismo, já é lugar comum.

A superação do entendimento naturalístico do tipo objetivo é digna de aplauso, e já pode ser considerada vultosa contribuição do funcionalismo para a dogmática penal.

Todavia, a teoria ora analisada pode ser criticada sob a ótica do atual estado da dogmática jurídica, em tempos de neopositivismo. É possível considerar o recurso à política criminal como um recurso retórico a fim de fundamentar o sistema teleológico, o que é dispensável. O sistema deve sim ser teleológico, ou não servir de nada, como afirmam ZAFFARONI/BATISTA [72].

Digna de adesão, ademais, a opinião dos citados autores, quando dizem que o pensamento jurídico europeu continental é carente de construções voltadas para a Constituição [73], e o funcionalismo teleológico-racional não parece ser exceção.

O sistema roxiniano, inserto na onda reformadora do pós-guerra, que rejeita o estrito formalismo, é, de fato, influenciado pelo pensamento tópico, mas não abandona o pensamento sistemático, e demonstra um reflexo desta "falta de constitucionalismo", comum no século XX, em que as disciplinas jurídicas se desenvolviam, na tradição do civil law, praticamente de modo paralelo, bem em atenção ao projeto epistemológico da modernidade.

Às voltas com uma teoria do direito constitucional, em termos, incipiente, o autor se viu forçado a uma retomada de uma filosofia dos valores, a fim de permitir um controle do poder penal na própria esfera da legalidade (muito embora, pelo menos no atual estágio de seu pensamento, deduza certos conceitos-chave, como o de bem jurídico, da Constituição).

Nota-se, ademais, na obra do autor, uma inquietante preocupação com a figura do "legislador" para a fundamentação de pontos de vista "político-criminais". Talvez haja um resquício da discussão da hermenêutica da "vontade da lei" contra a hermenêutica da "vontade do legislador".

Ainda no que tange à hermenêutica jurídica, a pretendida a limitação de "argumentar dentro do sentido literal possível" da lei, um argumento bem utilizado por ROXIN na defesa de suas teses, traduz postura que nos parece inexeqüível, à luz da atual "virada lingüístico-pragmática" da filosofia [74].

De todo modo, a dogmática funcionalista teleológico-racional do delito pode ser considerada como uma grande construção jurídico-teórica, que rendeu, e renderá, proveitosos frutos para as ciências penais e, inclusive, para a filosofia do direito.

Sobre o autor
Marco Frattezi Gonçalves

Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Marco Frattezi. Fundamentos teóricos do funcionalismo teleológico-racional em Claus Roxin: algumas considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2723, 15 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18041. Acesso em: 22 dez. 2024.

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