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A doação voluntária de sangue como pena restritiva de direitos

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Agenda 16/12/2010 às 14:53

A pena consistente na doação de sangue somente pode derivar de transação penal e de suspensão condicional de processo, não de condenação, por sentença.

Sumário: 1. As penas restritivas de direitos. 2. A prestação de serviços à comunidade. 3. A doação de cestas básicas. Natureza jurídica: prestação alternativa inominada (CP, art. 45, §2º). 4. A doação de cestas básicas e as transações. Crítica 5. O surgimento da ideia da doação de sangue. 6. A doação voluntária de sangue como modalidade de pena restritiva. Implantação. 7. Questionário suficiente sobre a doação de sangue. 7.1. Outras notas importantes. 8. Conclusões. 8.1 – Aspecto Jurídico. 8.2 – O veio humanitário.


1. As penas restritivas de direitos. No Brasil, as penas restritivas de direitos foram disciplinadas pela primeira vez, na reforma de 1984, limitando-se a infrações cuja pena não alcançasse o patamar de um ano, e às culposas. As penas restritivas previstas naquele momento histórico eram de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública; proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo; limitação de fim de semana; e, multa.

O perfil de admissão de penas não privativas de liberdade foi acentuado logo após, com a Constituição Federal, em 1988. Em seu art. 5º, XLVI, a Carta Magna garantiu fundamentalmente que a individualização da pena seria disciplinada por lei ordinária e estabeleceu como penas, entre outras, a privação ou restrição da liberdade; a perda de bens; a multa; a prestação social alternativa; e, a suspensão ou interdição de direitos.

As penas restritivas de direitos, uma vez admitidas pela Lei Maior, receberam, dez anos mais tarde, relativa inovação através da Lei 9714/98, que alterou o Código Penal. O art. 43 do Código Penal trata das penas restritivas de direitos e foi reescrito, passando a prever além daquelas mencionadas acima, as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibição de frequentar determinados lugares e a prestação alternativa inominada.

Ampliou o âmbito de incidência das penas restritivas. Essas são autônomas e substituem as penas privativas de liberdade de crime cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro) anos e desde que não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça, ou se for culposo. São autônomas porque não são acessórias, independem da imposição de sanção detentiva (reclusão, detenção ou prisão simples), como leciona Damásio de Jesus (Código Penal Anotado, p. 178); e substitutivas, porque individualizada a pena privativa de liberdade, o magistrado poderá substituí-la pela restritiva. Pode-se dizer que o legislador, sabiamente, optou pelo não encarceramento do criminoso que pratica infrações de leve e médio potencial ofensivo, consciente da falência do sistema penitenciário.

No consistente artigo "Em busca da Legalidade das Alternativas Penais", apresentado no I Congresso Brasileiro de Execução de Penas e Medidas Alternativas, realizado em Curitiba no ano de 2005, a Promotora de Justiça paranaense Mônica Louise de Azevedo citando Claus Roxin e diversos outros penalistas de renome, aponta caminhos para a superação da pena corporal fora da clausura do sistema penitenciário, com ênfase às medidas alternativas em infrações leves e de médio potencial ofensivo. Ponderou, aliás, que o festejado penalista alemão "observando os avanços e retrocessos dos últimos séculos da história das idéias penais, arrisca um prognóstico para o direito penal do século XXI, que acredita continuará existindo como fator de controle social secularizado: a gradativa substituição da pena privativa de liberdade por outras penas ou conseqüências jurídicas ao ilícito; a supressão definitiva das penas corporais, por se constituírem em atentados contra a dignidade humana; o retrocesso da utilização da pena de prisão e o surgimento de novas formas de controle eletrônico e de medidas terapêuticas sociais, além da maior utilização do trabalho comunitário e da reparação civil do dano. Justifica esta previsão pela inexistência de vagas e recursos financeiros para executar a pena de prisão de forma humanitária e pela impossibilidade de punir a maioria dos delitos com ela".

A falência do sistema prisional e a adoção de medidas inovadoras que atinjam o mesmo fim proposto pela pena, sem encarceramento, fizeram surgir três anos antes da modificação da codificação penal, a Lei 9099/95 que abarca infrações de menor potencial ofensivo – as contravenções penais e, atualmente, os crimes a que a lei comina pena máxima não superior a 2 (dois) anos –, e detém como objetivos maiores a reparação do dano à vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62, in fine). Inspirada na mitigação do princípio da legalidade e no consensualismo, o diploma permite a barganha entre o acusador e o autor do fato e seu advogado. O art. 76 preceitua que o órgão ministerial, ao oferecer sua proposta de acordo, poderá oferecer transação penal consistente na aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas. Há mais. No art. 89, ao oferecer a denúncia – nos crimes em que a pena máxima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano –, o órgão ministerial, nos crimes previstos em qualquer lei, poderá propor a suspensão condicional do processo, mediante condições determinadas.

Tanto na transação penal como no sursis processual, é praxe dos integrantes do Ministério Público, e até dos querelantes – nas ações penais de natureza privada – ofertarem propostas que contenham penas não catalogadas, como por exemplo, a doação de cestas básicas, que se tornou "coqueluche" em nossa nação, por seu caráter altruísta, pedagógico e socializante. Registre-se que, não obstante o teor das propostas, o agente do delito e seu advogado podem repeli-las ou questioná-las visando seu abrandamento. É a busca do consenso.

No mesmo diapasão, insere-se o foco principal do presente trabalho: a doação de sangue. E esta, diferentemente de qualquer outra pena restritiva de direitos, pressupõe contato pessoal entre o magistrado ou conciliador com o agente para explanação das nuances específicas desse ato de benevolência. Em outros termos, como se exporá, no curso deste trabalho, a pena consistente na doação de sangue somente pode derivar de transação penal e de suspensão condicional de processo, não de condenação, por sentença. É pressuposto inarredável o contato humano entre juiz, Ministério Público, agente e seu patrono. Nas palavras de Sérgio Salomão Shecaira, "O processo de aplicação da pena deve ser dialógico" (Prestação de Serviços à Comunidade, p. 90).

Explica-se: somente após o autor da infração e seu advogado optarem, dentre as propostas ministeriais, por aquela concernente à doação de sangue é que lhe será apresentado um questionário inicial com as exigências mínimas para o ato. Ultrapassada esta etapa, será lavrado o acordo a ser homologado judicialmente. Isto porque nem todos estão aptos a doar sangue, fator que, por si só, inviabiliza um decisório com semelhante determinação.


2. A prestação de serviços à comunidade. Dentre as penas restritivas, estou convencido que a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é a que mais aproxima o autor do fato, nas infrações de menor potencial ofensivo, ou o réu, nas de médio potencial, de seu semelhante e o torna um cidadão útil a si – melhoria na autoestima –, à família – da qual não fica segregado – e à sociedade – por receber algo concreto em seu prol e aprova a não segregação do semelhante. Essas penas têm a natureza de respeitar o homem em seu bem maior – a dignidade –, porquanto de sua aptidão e habilidade pessoal é que será determinado o que realizará em favor da comunidade. O autor da infração cumprirá a pena, trabalhando para a sociedade. Objetivamente, favorece a comunidade em que vive.

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Observa-se em Guilherme de Souza Nucci, pensamento similar. Dispõe o doutrinador que "Trata-se, em nosso entender, da melhor sanção penal substitutiva da pena privativa de liberdade, pois obriga o autor de crime a reparar o dano causado através de seu trabalho, reeducando-se, enquanto cumpre pena" (Código Penal Comentado, p. 235).

E por seu caráter de cidadania e inserção ou reinserção social, pode ser considerada a mais adequada, para a maioria dos casos.

Ensinava Shecaira já dizia, no início da década de 90, que "No direito europeu e norte-americano – e nas legislações mais recentes e modernas – é a prestação de serviços à comunidade a principal alternativa penal à provação de liberdade de curta duração (...). Em um país que apresenta um quadro com grande número de pessoas que cometem pequenos delitos (especialmente crimes contra o patrimônio) e, de outro lado, que tem uma situação crônica de presídios superlotados, a prestação de serviços à comunidade é medida eficaz a ser incentivada como alternativa à pena prisional de curta duração" (ob. cit., pp. 90-91).

E quais são os momentos processuais rotineiros para sua imposição? São três: a) transação penal em crimes de ação pública ou privada; b) suspensão condicional do processo, no procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95; e, c) suspensão condicional do processo, no rito ordinário do Código de Processo Penal ou especial de Lei Extravagante. Qualifiquei como rotineiros, uma vez que há situações excepcionais, como na emendatio libelli e na mutatio libelli em que no curso do processo, com a instrução praticamente finalizada, descobre-se o cabimento dos institutos despenalizadores.

A prestação de serviços à comunidade, em grande parte do Estado de São Paulo, é desenvolvida por órgão afeto à Secretaria de Administração Penitenciária denominado de Central de Penas e Medidas Alternativas, e que o torna um braço forte e importante para as Varas de Execuções Penais.

Em sua estratégia de ação, a Central de Penas realiza convênios com diversas entidades públicas e privadas, de modo a propiciar um leque de alternativas para o agente. Após entrevista prévia, o atendente, ciente do perfil do entrevistado, indica a instituição mais apropriada para o trabalho e, estando o agente concorde, será encaminhado para cumprir sua pena. De forma efetiva e palpável, o condenado retribui para a coletividade o mal que praticou.

Alberto Silva Franco esclarece que "é ele obrigado a prestar pessoalmente, durante certo número de horas semanais que se prolongam por tempo predeterminado, tarefas gratuitas junto a determinadas entidades, públicas ou particulares. Ao fazê-lo, é evidente que não dispõe mais do tempo livre correspondente a essas horas semanais já que, sob acompanhamento, vê-se na contingência, nesse espaço temporal, de realizar, sem remuneração, algum tipo de trabalho." (Código Penal e sua interpretação, p. 285).

E o art. 149, §1º, da Lei de Execuções Penais, prescreve que "O trabalho terá a duração de oito horas semanais e será realizado aos sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho, nos horários estabelecidos pelo Juiz".

Emana claro do esposado que é da essência da prestação de serviços a realização de um trabalho personalíssimo exercido pelo agente em dia e horário que não afetem o seu labor diário. Daí poder ser realizado em finais de semanas e feriados ou em horário compatível com aquele.

Por esta razão que quando da primeira ideia de implantação da doação de sangue no Brasil, foi coibida pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, interpretava-se como modalidade de prestação de serviços à comunidade, o que, por interpretação ampliativa, não deixaria de ser. No entanto, em voto da lavra do erudito ministro Celso de Mello, a interpretação foi restritiva e o sonho foi afastado até o início deste século. Naquela oportunidade, o STF foi instado a se manifestar acerca de sentença em que magistrado fluminense substituíra a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos consistente em doação de sangue. Pelo voto, a mesma foi cassada e determinada que outra fosse prolatada (HC 68.309/DF). No voto, o Ministro Celso de Mello destacou que "A exigência judicial de doação de sangue não se ajusta aos parâmetros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentes à própria inteligência da expressão legal ‘prestação de serviços à comunidade’, cujo sentido, claro e inequívoco, veicula a ideia de realização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter exclusivamente laboral. Tratando-se de exigência conflitante com o modelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ou substitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la".

Como ciência que é o Direito evolui e com o passar dos anos, surgia a doação de cestas básicas como a salvação dos mais humildes. E os integrantes do tripé jurídico encararam a novidade e, foi encontrada no próprio ordenamento jurídico – o Código Penal –, a qualificação técnico-jurídica para enquadramento do instituto. E, por idênticos fundamentos, a doação de sangue deve receber o mesmo enquadramento e se tornar uma realidade paulista e nacional igualmente simpática aos olhos da sociedade.


3. A doação de cestas básicas. Natureza jurídica: prestação alternativa inominada (CP, art. 45, §2º). A mesma afinidade que nutria pela pena restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, passou a me seduzir a pena alternativa inominada, por permitir a doação de cestas básicas para entidades que a revertem em prol de pessoas carentes. E idêntica simpatia me veio porque, agora – nunca é tarde para a consecução de objetivos sociais relevantes –, vislumbrei que a doação de sangue é tecnicamente idêntica.

Existe um adensamento doutrinário no sentido de que a doação de cestas básicas é uma prestação inominada. Não obstante, essa mesma doutrina pondera que a pena em questão – prestação alternativa inominada –, tal qual posta no diploma penal, ofende princípios basilares de Direito Penal e seria inconstitucional.

No escólio de Renato Marcão, respaldado por Cezar Roberto Bitencourt e Damásio de Jesus, "A pena de prestação de outra natureza ou inominada padece de flagrante inconstitucionalidade, já que equivale a uma pena indeterminada, contrariando o princípio da reserva legal albergado no art. 1º do Código Penal, de prestígio constitucional, conforme decorre do disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal" (Curso de Execução Penal, p. 267).

É que o § 2º, do art. 45 do diploma penal dispõe que "No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza".

Acrescenta Renato Marcão que "Conforme asseverou Cezar Roberto Bitencourt, ‘em termos de sanções criminais são inadmissíveis, pelo princípio da legalidade, expressões vagas, equívocas ou ambíguas. E a nova redação desse dispositivo, segundo Damásio de Jesus, comina sanção de conteúdo vago, impreciso e incerto’" (ob. cit., p. 267).

Cezar Roberto Bitencourt, mesmo após criticar a pena inominada por ser indeterminada e, por conseguinte, violadora do princípio da reserva legal, arremata afirmando que essa pena seria, na realidade, "uma espécie substituta da substituta da pena de prisão!". E, como a substituição da prestação pecuniária se dá por uma prestação de outra naturezae dependente da aceitação do beneficiário, certamente é dotada de caráter consensual (grifei). E quem seria o beneficiário da pena convertida? Defende, com razão, que é "o beneficiário do resultado da aplicação dessa pena pecuniária, que, como afirmamos, tem caráter indenizatório (Tratado de Direito Penal, vol. I, pp. 518-519).

No mesmo sentido, a lição de René Ariel Dotti (Penas Restritivas de Direitos - críticas e comentários às penas alternativas. Lei 9.714, p. 100): "O Juiz não pode aplicar pena que não esteja expressamente prevista na lei. Trata-se de reafirmar o princípio da anterioridade da lei quanto à definição do crime e o estabelecimento da sanção".

Perfilha a mesma linha de entendimento, Luiz Flávio Gomes (Penas e Medidas Alternativas à Prisão, p. 64). Luiz Flávio lembra que Beccaria há mais de duzentos anos já postulava não só a existência de lei para a criação de delitos e penas, senão também a vinculação do juiz ao texto legal e, sobretudo, a legitimidade exclusiva do legislador para criar tais leis.

A despeito das respeitáveis críticas doutrinárias, o texto legal propiciou a abertura de um espectro de penas alternativas ao magistrado, com o fito de permitir, sempre, a transação, desde que evite o encarceramento e respeite os lindes constitucionais para tal fim. Caso o autor da infração não esteja em condições de arcar com determinada prestação alternativa nominada, um rol de opções lhe pode ser oferecido para atender à exigência estatal do cumprimento da pena.

Se o intérprete atentar para a redação do § 2º poderá inferir que na doação de cestas básicas, o dispositivo é atendido em toda a sua amplitude. Conquanto se critique a redação aberta, sujeita a toda espécie de interpretação subjetiva judicial, a doação se amolda perfeitamente ao disposto.

Vejamos: para distribuir cestas básicas, o magistrado criminal cadastra uma série de instituições em sua Vara, aptas e com estrutura para o recebimento e distribuição das mercadorias aos mais carentes da comunidade. A instituição deve ser reconhecidamente de utilidade pública e prestigiada nos meios sociais pelo seu trabalho em favor dos mais necessitados. Com este pré-requisito fundamental, preenche-se o tópico do dispositivo atinente a se houver aceitação do beneficiário. Como o art. 45, § 1º exige que seja "entidade pública ou privada com destinação social", o cadastramento é o bastante.

E a proposta ministerial de doação de cestas básicas a uma instituição de caridade aceita pelo agente constitui-se, então, na formalização de uma pena restritiva de direitos inominada. Neste acordo homologado judicialmente, o autor da infração assume a obrigação de entregar, dentro de certo lapso temporal, determinada quantidade de cestas básicas.

A doação de cestas básicas é, portanto, modalidade de prestação alternativa inominada não pecuniária homologada judicialmente.

Damásio, ao discorrer sobre o indigitado polêmico parágrafo e discutir as críticas sobre sua redação, defende que prestação de qualquer natureza como está na Lei significa, de fato, pecuniária ou não (grifei). E contradiz a maioria da doutrina ao asseverar que o dispositivo se encontra em consonância com as Regras de Tóquio, uma vez que estas recomendam ao juiz a aplicação se necessário e conveniente de qualquer medida que não envolva detenção pessoal. E acrescenta: "Medida liberal corresponde, entretanto, ao ideal de justiça, pela qual ao juiz, nas infrações de menor gravidade lesiva cometidas por acusados não perigosos, atribuir-se-ia o poder de aplicar qualquer pena, respeitados os princípios de segurança social e da dignidade, desde que adequada ao fato e às condições pessoais do delinquente" (Código Penal Anotado, pp. 188-189).

Damásio, em meu sentir, está coberto de razão ao defender que a prestação pode ter natureza pecuniária ou não, porquanto a lei ao prever a substituição da prestação pecuniária por prestação de outra natureza permitiu aos envolvidos no negócio jurídico a ser travado entre partes e juiz, escolher uma pena que corresponda aos ideais preconizados pela Carta Magna, desde que não privativa da liberdade e ajustada à realidade do agente.

Nessa esteira, Celso Delmanto et alli orienta que excluída a prestação pecuniária, a prestação de outra natureza "poderá consistir, v.g., na doação de cestas básicas ou em serviços de mão-de-obra" (Código Penal Comentado, p. 165).

Sem destoar, Mirabete declina que "se houver aceitação do beneficiário, ou seja, do ofendido ou da entidade pública ou privada com destinação social, a prestação pecuniária poderá constituir-se, por decisão, do juiz, em prestação de outra natureza, como o fornecimento de cestas básicas, por exemplo." (Código Penal Interpretado, p. 295).

Também Fernando Capez pugna, ao cuidar da prestação inominada, que "a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outra natureza, como, por exemplo, entrega de cestas básicas a carentes, em entidades públicas ou privadas. A interpretação, aqui, deve ser a mais ampla possível, sendo, no entanto, imprescindível o consenso do beneficiário quando o crime tiver como vítima pessoa determinada." (Curso de Direito Penal, p. 358).

O Pleno do STF, em voto da lavra do Min. Joaquim Barbosa, nos autos do Inquérito 2.721/DF, em 08.10.2009, deu por correta a decisão judicial que homologou a doação de cestas básicas, como pena alternativa, fundamentando que "O crime investigado é daqueles que admitem a transação penal e o indiciado cumpre os demais requisitos legais do benefício. Embora haja controvérsia sobre a possibilidade de a prestação pecuniária efetivar-se mediante a oferta de bens, a pena alternativa proposta pelo Ministério Público - doação mensal de cestas básicas e resmas de papel braile a entidade destinada à assistência dos deficientes visuais, pelo período de seis meses - atinge à finalidade da transação penal e confere rápida solução ao litígio, atendendo melhor aos fins do procedimento criminal".

O STJ tem como fora de discussão que a doação de cestas básicas consiste em modalidade distinta da prestação de serviços à comunidade, tanto que a rejeita como substitutiva daquela em sede de execução, caso inviável seu cumprimento por parte do condenado. Se o condenado não puder cumprir a prestação de serviços estipulada, deverá o juiz das execuções impor-lhe outra, adaptada à sua aptidão, sem substituí-la pela doação de cestas. Veja-se o seguinte aresto: "A competência do Juízo das Execuções Criminais limita-se à alteração da forma de cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade aplicada pelo Juízo Criminal processante (CP, art. 59, inc. IV), ajustando-a às condições pessoais do condenado e às características do estabelecimento, da entidade ou do programa comunitário ou estatal’ (Lei 7.210/84, art. 148), sem, contudo, substituí-la por pena restritiva de direitos diversa" STJ (HC 38052/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 10/04/2006).

Os tribunais estaduais trilham no mesmo sentido.

Na doutrina, encontramos opiniões divergentes para a natureza jurídica da doação de cestas básicas. A juíza Rosana Navega Chagas, titular de Vara de Juizado Criminal de Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro, em artigo específico onde defende a doação de sangue, distingue a pena de prestação de serviços à comunidade da prestação social alternativa prevista no texto constitucional aduzindo: "Frise-se que tal modalidade de pena, muito embora assemelhada, não é igual a pena alternativa da prestação de serviços à comunidade, uma vez que a lei tem por um dos seus princípios básicos não conter palavras inúteis. Em síntese, existem razões, de ordem técnica, para a nova denominação, e que consiste, a toda evidência, na criação de uma nova modalidade de pena alternativa a da prisão, quando couber".

Depois de muita reflexão sobre a melhor disciplina da natureza jurídica da doação de cestas básicas, convenci-me, graças à doutrina, que se insere no contexto da prestação inominada escudada no art. 45, §2º, do Código Penal. E, nesse diapasão, firmei o entendimento de que a doação de sangue, igualmente, deve receber idêntico tratamento.

A razão é a mesma esposada, porquanto o magistrado criminal cadastra, previamente, instituições idôneas para o atendimento ao futuro doador, por exemplo, em Sorocaba é a Colsan. Feito o acordo judicial, o autor da infração é orientado a lá comparecer, onde será submetido a exames de praxe para se certificar se pode, efetivamente, doar. Coletado seu sangue, receberá o comprovante respectivo que será apresentado em juízo, para as anotações de praxe quanto ao cumprimento da reprimenda.

Atendidos estes singelos requisitos da prestação inominada e o doador terá por cumprida sua pena, prestando um serviço comunitário de alcance imensurável, beneficiando diretamente a saúde de terceiros.

E se, malgrado o acordo judicial, o autor for impedido de doar sangue, por exemplo, por estar com ou ter tido hepatite ou ser portador de hepatite C? Nessa hipótese, deverá comparecer ao Cartório onde será informado da necessidade de substituição da pena de doação de sangue. Em regra, a substituição será pela doação de cestas básicas, ainda que imposta cumulativamente.

Sobre o autor
Jayme Walmer de Freitas

Professor da Escola Paulista da Magistratura e de Pós-Graduação no COGEAE da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador do 7º Curso de Pós Graduação "Lato Sensu" - Especialização em Direito Processual Penal, da Escola Paulista da Magistratura. Autor das obras Prisão Cautelar no Direito Brasileiro (3ª edição), OAB – 2ª Fase – Área Penal e Penal Especial, na Coleção SOS – Sínteses Organizadas Saraiva vol. 14, pela Editora Saraiva, além de coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Coautor do Código de Processo Penal Comentado, pela mesma Editora. Colaborador em Legislação Criminal Especial, vol. 6, coordenada por Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, pela Editora Revista dos Tribunais. Colaborador em o Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, coordenada por Jorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva, pela Editora Quartier Latin. Colaborador em o Direito Imobiliário Brasileiro, coordenada por Alexandre Guerra e Marcelo Benacchio, pela Editora Quartier Latin. Autor de artigos jurídicos publicados em revistas especializadas e nos diversos sites jurídicos nacionais. Foi Coordenador Pedagógico e professor de Processo Penal, Penal Geral e Especial, por 14 anos, no Curso Triumphus – Preparatório para Carreiras Jurídicas e Exame de OAB, em Sorocaba. Juiz criminal em Sorocaba/SP, mestre e doutor em Processo Penal pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Jayme Walmer. A doação voluntária de sangue como pena restritiva de direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2724, 16 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18046. Acesso em: 23 dez. 2024.

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