5. Da autonomia da Advocacia Pública em relação aos governantes/Administradores dos entes presentados – uma necessidade lógica no atual paradigma
Deflui-se do exposto que o advogado público tem por função institucional auxiliar o Estado na implementação do Estado Democrático de Direito.
Tal conclusão tem por pressuposto reconhecer a força normativa do preceito constitucional que diz que todo poder emana do povo (artigo 1º, parágrafo único). E é tendo em vista os interesses do titular do poder que os agentes públicos, tal como os advogados públicos, devem balizar sua atuação.
Ocorre que o advogado público, no exercício de seu mister, freqüentemente se depara com atos administrativos contrários a esse preceito, violando leis, regras ou princípios constitucionais.
Nesses casos, conforme já dito, é dever institucional do advogado público apontar a irregularidade, seja previamente, em sua atividade consultiva, seja posteriormente, em sua atividade contenciosa.
No entanto, assim agindo, estará o advogado público, muitas vezes, contrariando os interesses dos governantes ou Administradores superiores das entidades que presenta.
Em situações como essa, o advogado público não se pode ver compelido a agir dessa ou daquela forma pelo Administrador. Vale dizer, este último não pode direcionar a atividade do advogado público, sob pena de inviabilizar o cumprimento da função essencial da qual foi incumbido pelo legislador constituinte.
Em suma, a autonomia funcional do advogado público é pressuposto indispensável para o exercício completo de sua função constitucional.
Não pode ele se ver constrangido, em momento algum, em sua atividade pelo Administrador.
No âmbito consultivo, deve ele, ao se deparar com alguma pretensão ilegal ou ilegítima, opinar pela abstenção da prática do ato pretendido, sem sofrer qualquer espécie de retaliação por sua conduta. Em seu parecer, o advogado público não pode agir apenas para dar supedâneo legal ao ato pretendido pelo Administrador.
Em sua atuação contenciosa, por sua vez, o advogado público, ao ver impugnado um ato claramente ilegal, deve ter autonomia para reconhecer tal vício.
É tendo em vista tais pressupostos que deve ser interpretado o artigo 131 da Constituição, quando diz:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Vale dizer, se é verdade que lhe cabe a função consultiva do Poder Executivo e de defesa genérica da União em juízo [67], igualmente o é que tal função deve ser exercida, no paradigma do Estado Democrático de Direito, de forma livre e autônoma, tendo em vista os anseios da população, plasmados na Constituição da República, e não necessariamente os dos governantes.
Nesse sentido, afigura-se, no entender do autor, desaconselhável o preceito contido no §1º do artigo 131 da Constituição, que diz que o Advogado-Geral da União, chefe da Advocacia-Geral da União, é de livre nomeação (e exoneração) pelo Presidente da República. Tal circunstância pode ferir a indispensável autonomia da Advocacia Pública no exercício da importantíssima função que lhe reservou a Constituição da República.
Se a Constituição quis dar ao Presidente da República um assessor jurídico especial, que o fizesse por meio da criação de um cargo, por exemplo, de Assessor Jurídico da Presidência da República. Esse sim de livre nomeação e exoneração pelo chefe do Executivo. Entende-se, contudo, que tal atividade nunca poderia ter sido conferida ao maior cargo da Advocacia-Geral da União, enquanto função essencial à justiça, sob pena de inviabilizar o cumprimento eficiente de tal tarefa.
De lege ferenda, poder-se-ia prever, tal como ocorre com o Ministério Público, outra função essencial à justiça, para preservar o sistema de freios e contrapesos das funções de Estado, que os membros da própria Advocacia Pública formassem lista tríplice para, dentre eles, o chefe do Executivo nomeasse o Advogado-Geral da União, que teria mandato por período fixo.
Trata-se, contudo, de mera sugestão, a depender de alteração da Constituição da República pelo legislador constituinte derivado.
6. Conclusões
Conclui-se, de todo o exposto, que a Advocacia Pública, no exercício de sua função, essencial à justiça, deve ficar atenta ao paradigma jurídico-institucional adotado pela Constituição da República – o do Estado Democrático de Direito.
Nesse paradigma, não mais são cabíveis quaisquer espécies de apropriações do interesse público feitas pelos governantes ou Administradores. Afinal, não são eles os tradutores dos anseios populares, decidindo, solitariamente, a melhor forma de efetivar seus interesses.
O público, na atual ordem constitucional, não se confunde com a vontade (privada) do governante. Qualquer atividade do Administrador só será legítima se estiver em consonância com as regras e princípios plasmados na Constituição e nas leis válidas, sempre tendo em vista o atendimento dos interesses do verdadeiro e único titular do poder – o povo.
É tendo em vista tais balizas que o Advogado Público deve pautar sua atuação. Só assim sua função será, efetivamente, essencial à justiça.
O dever da Advocacia Pública é defender o Estado, enquanto pessoa jurídica criada única e exclusivamente para atender os anseios, plasmados na Constituição, do povo. E, no esteio do que já foi dito, não é o governante quem dirá quais anseios são esses. Daí porque não se pode dizer, sem erro, que o Advogado Público é um defensor do governante ou Administrador. Isso ocorrerá tão-somente se a atitude destes últimos estiver relacionada com o atendimento do interesse do Estado, efetivando direitos e garantias fundamentais, e só nesse caso.
Nesse sentido, não se afigura legítima a atuação da Advocacia Pública em defesa de interesses privados ou, até mesmo, partidários dos governantes.
Não se insere entre as funções da Advocacia Pública responder a demandas propostas em face do Chefe do Poder Executivo quando este atua em interesse próprio ou de seu partido político. Aliás, tal conduta, que só empobrece, perante a sociedade, a importantíssima função reservada à Advocacia Pública pela Constituição, já vem sendo criticada, com razão, por importantes setores da sociedade, dentre os quais vale destaque a Ordem dos Advogados do Brasil [68]. A imprensa já vem destacando, outrossim, tal desvirtuamento [69].
É preciso resgatar o verdadeiro papel da Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito – defender o Estado, na medida traçada pela Constituição da República.
Enquanto servidor público que é, o Advogado Público deve pautar sua atuação de forma a atender aos anseios do seu verdadeiro "patrão" – o povo.
Mas, pode-se perguntar, como saber quais são os interesses da população? Já se disse que não são os manifestados, solitariamente, pelos governantes. Como, então, identificá-los considerando as mais díspares opiniões e vontades de cada cidadão? Não resta outra alternativa senão considerar aqueles plasmados nos princípios e regras constitucionais, sempre respeitando os direitos e garantias fundamentais lá expressos. Deve-se, ainda, ampliar os mecanismos de participação popular na formação das decisões legislativas, administrativas e judiciais. Nesses dois últimos âmbitos, a Advocacia Pública pode, e deve, tentar efetivar tal participação, garantindo, sempre, o devido processo legal e o exercício, como corolário lógico, do contraditório e da ampla defesa pelos cidadãos. Só assim será possível cumprir, efetivamente, o papel reservado pela Constituição da República à Advocacia Pública, sempre tendo por pressuposto o paradigma jurídico que a norteia – o do Estado Democrático de Direito.
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