1.INTRODUÇÃO
O estudo da natureza jurídica do amicus curiae, instituto jurídico recente dentro do ordenamento jurídico pátrio, vem causando muita controvérsia em sede doutrinária, razão pela qual o presente trabalho, sem a intenção de ser conclusivo, pretende contribuir para o esclarecimento da questão.
Distante de possuir apenas importância doutrinária, a caracterização da natureza jurídica de um dado instituto -entendida como "a classificação específica que algo possui dentro do direito" [01] - em uma ou outra forma possui íntima correspondência com as faculdades que lhe são atribuídas, "influenciando na extensão de seus poderes, determinando, inclusive sua amplitude no ordenamento" [02]. Daí a importância de se analisar o tema.
No caso do amicus curiae não é diferente. A depender da alocação que se faça do instituto, o amigo da corte poderá assumir um papel mais ou menos ativo no processo, obter um maior ou menor poder de influência nas decisões dos órgãos jurisdicionais etc. No entanto, podemos afirmar, de antemão, que, tomadas em conjunto as diversas correntes de pensamento, há um ponto de convergência: "todas criam a possibilidade de manifestação de um órgão ou entidade em benefício da corte" [03].
Desse modo, partindo da constatação acima referida, passaremos a abordar no desenvolvimento do tema as três correntes doutrinárias que gozam de maior prestígio na doutrina pátria, quais sejam, a que defende a natureza jurídica de intervenção de terceiros do amicus curiae, através de uma assistência qualificada; a que aduz ser a atuação do amigo da corte uma intervenção atípica de terceiro; e a que assevera ser a presença do amicus curiae no processo manifestação de um auxiliar do juízo.
Por fim, após o desenvolvimento sugerido, tomaremos partido de uma das três correntes doutrinárias, elencando os motivos que cremos ser os mais adequados para alocar o instituto em análise.
2.DESENVOLVIMENTO
Conforme já adiantado, parte da doutrina defende a natureza jurídica de assistente qualificado para o amicus curiae. Para os que assim se posicionam, o fato de a Lei 9.868/1999, primeira a prever a participação do amicus curiae no nosso ordenamento, ter estabelecido, no caput do seu artigo 7º, que a intervenção de terceiros está vedada nos processos de controle abstrato de constitucionalidade não é motivo que impeça a sua inclusão no rol de assistentes de uma parte.
Assim, para essa primeira corrente, forte no entendimento de que somente está autorizado a intervir em uma lide quem logre demonstrar a existência de interesse jurídico com a matéria discutida na demanda [04], a admissibilidade de órgãos ou entidades na condição de colaborador da corte deve ser precedida da presença do interesse contra ou a favor de determinada posição, bem como pelo preenchimento dos requisitos legais, que, no caso da Lei 9.868/1999, subsume-se na relevância da matéria e na representatividade do postulante (a constatação deste último requisito justificaria a presença do adjetivo "qualificada" junto ao substantivo "assistência").
A principal idéia extraída dessa corrente de pensamento é a de que o interesse na resolução do conflito a favor de uma das partes deve ser imprescindível e útil aos esclarecimentos prestados ao Tribunal, isto é, que os conhecimentos específicos do amicus curiae somente possuem relevância na medida em que sejam utilizados de modo imparcial e contribuam para o aclaramento da questão posta à análise do Estado-Juiz [05].
A segunda corrente, composta pela imensa maioria dos juristas, acredita que a manifestação do amicus curiae seria uma espécie de intervenção de terceiros, distinta daquelas já conhecidas [06] e arroladas no Código de Processo Civil ainda em vigor.
Conforme regra geral já relatada, somente é autorizada a intervenção de terceiros estranhos a determinada lide na medida em que demonstrem ter interesse jurídico de que a sentença seja favorável a uma das partes – assistência simples - ou toda vez que a decisão houver de influir na relação jurídica entre o assistente e o adversário do assistido, caso no qual a assistência é qualificada de litisconsorcial.
Entretanto, argumentam os que defendem a natureza especial ou atípica de intervenção de terceiros do amicus curiae que a vedação acima citada (art. 7º da Lei 9.868/1999) está relacionada com a assistência, porquanto que neste caso se exige o interesse jurídico. Ao contrário, em todas as hipóteses de admissão do colaborador da corte se observa um processo objetivo, ou seja, sem a presença de interesses subjetivos diretos, o que acarretaria a ausência da necessidade de demonstração de interesse jurídico, bastando, por exemplo, tão-somente a existência de interesse econômico.
Assim, sendo a proibição do ingresso na lide daqueles que não demonstrem os requisitos acima referidos mera política legislativa, nada impediria, para os defensores dessa linha de pensamento, que uma lei nova pudesse modificar esse entendimento restritivo. Destarte, toda vez que uma norma de caráter geral autorize o ingresso do amicus, estará criada uma nova e especial forma de intervenção de terceiros [07].
Por fim, a terceira e última corrente doutrinária defende que a natureza jurídica do colaborador da corte é a de auxiliar do juízo. Tal linha de pensamento é, dentre as encontradas na doutrina, a que conta com menos adeptos [08].
Para os defensores dessa tese, o fato do auxiliar assumir uma posição neutra diante das partes, unicamente interessado em municiar o Tribunal com argumentos para a melhor solução da lide, é suficiente para distanciá-lo de qualquer outra corrente ideológica que exija a presença de interesse jurídico ou econômico.
Portanto, é notório que o auxiliar não intervém para salvaguardar direitos subjetivos próprios, não é parte no processo e não alega pretensões jurídicas em favor de nenhuma das partes, limitando-se a apresentar observações sobre questões de fato e de direito atinentes à controvérsia que poderiam revelar-se em auxílio para uma das partes, ou, mesmo ao contrário, ser desprovida de caráter ad adiuvandum e melhor voltadas à definição objetiva do quadro probatório e normativo [09].
De acordo com Mirella Aguiar, "não há como se conceber a necessidade de intervenção do ‘amigo da corte’, haja vista que a atuação deste sujeito processual é aceitável inclusive quando inexiste interesse em intervir, já que a finalidade do instituto não é outra senão a de propiciar auxílio ao juízo" [10].
Concordamos com a última das correntes, pelos motivos que passamos elencar.
Com a vênia dos que se posicionam em sentido contrário, parece-nos que no atual estágio de desenvolvimento do direito, onde a participação social com o objetivo de conceder mais legitimidade às decisões jurisdicionais é o norte a se seguir, ideia originada no pensamento de Peter Häberle, notadamente na obra denominada "Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição", exigir do amicus curiae, a cada intervenção, como o fazem os que lhe atribuem a natureza de assistente qualificado, a presença de interesse jurídico com a situação fática e a matéria discutidas na demanda é diminuir o papel reservado aos jurisdicionados no desenvolvimento da justiça.
Com efeito, a máxima pluralização do debate jurídico-processual é fator que contribui para a legitimação das decisões proferidas pelo Estado-Juiz, para o caráter democrático que devem deter os órgãos incumbidos de distribuir justiça e pacificar as pendengas sociais e, principalmente, para possibilitar que a sociedade tenha, de modo direto, através das suas instâncias representativas, vez e voz no debate jurídico, mormente no constitucional, caso da Lei 9.868/1999.
Por outro lado, não nos parece ser a melhor doutrina a que defende ser o amicus curiae uma espécie sui generis, especial,de intervenção de terceiros, distinto da assistência – única que seria vedada diretamente pelo ordenamento -, já que somente neste caso seria necessária a demonstração do interesse jurídico.
De fato, a primeira constatação a fissurar a tese esposada pela segunda corrente reside no argumento de que é a lei processual que exige de todos os terceiros, assistentes ou quaisquer outros, que pretendem ingressar no processo o interesse jurídico, não obstante sabermos se tratar de mera opção legislativo-processual. Tal fato, aliado à constatação de que o interessado não é parte inicial no processo, é o que justifica a essência da intervenção de terceiros, seja em processos subjetivos ou em processos objetivos, como os que ocorrem, por exemplo, no controle abstrato de constitucionalidade. Não fosse assim, as lides seriam verdadeiras aventuras nas quais todas as pessoas, físicas e jurídicas, poderiam intervir quando bem quisessem e desejassem. Balburdia processual maior não haveria.
Outro argumento em desfavor da natureza jurídica de intervenção atípica de terceiros do amigo da corte é a de que a sua atuação ficaria dependente de lei prévia que o isentasse da demonstração de interesse jurídico. Aqui cabem as mesmas afirmações feitas anteriormente: a atuação do amicus curiae deve ser pautada pela ideia de maior legitimação que a sua participação traz à decisão formulada, bem como à democratização do acesso à justiça, e não pela presença ou ausência de interesse jurídico. O auxílio não vem em socorro da parte autora ou ré, recorrente ou recorrida, impetrante ou impetrada, arguente ou arguida etc., mas sim em auxílio imediato do órgão (geralmente corte) julgador e mediato de toda a sociedade, na medida em que contribui para a solução da peleja. Tal característica poderia aplacar, inclusive, o ímpeto imediato que toda parte litigante tem de recorrer de uma decisão desfavorável, haja vista ser a conformação final do processo construída em bases mais plurais.
3.CONCLUSÃO
Tendo em vista o exposto, concluímos que a melhor doutrina é aquela que defende a natureza jurídica de auxiliar do juízo do amigo da corte, a uma por ser mais condizente com o atual estágio de desenvolvimento do nosso ordenamento jurídico, cuja Norma Fundamental se apelidou de "cidadã"; a duas porque uma atuação mais livre e neutra do amicus curiae contribui para a legitimação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário; e, a três porquanto a ausência de comprometimento com a tese de uma das partes litigantes permite que a atuação do colaborador da corte na elucidação de fatos e direitos seja mais calcada na defesa do interesse público mediato presente em todas as lides, principalmente naquelas em que os anseios da sociedade são decididos.
Referências bibliográficas
AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus curiae: coleção de temas de processo civil — estudos em homenagem a Eduardo Espínola. Salvador: JusPODIVM, 2005.
BUENO FILHO, Edgar Silveira. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: CAJ — Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago., 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br.> Acesso em: 20 nov. de 2010.
DIDIER JR., Fredie. Direito processual civil: tutela jurisdicional individual e coletiva. v. I, 5. ed. reform., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2005.
PEREIRA, Milton Luís. Amicus curiae: intervenção de terceiros. Revista do Centro de Estudos Jurídicos (CEJ). Brasília: n. 18, p. 83-86, jul./set., 2002.
PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues del. Breves considerações sobre o amicus curiae na ADIN e sua legitimidade recursal. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre terceiros no processo civil (e assuntos afins). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
ROCHA, João Marcelo. Direito tributário. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ferreira, 2005.
Notas
- ROCHA, João Marcelo. Direito tributário. 4. ed. rev. e atual.Rio de Janeiro: Ferreira, 2005, p. 24.
- AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus curiae: coleção de temas de processo civil — estudos em homenagem a Eduardo Espínola. Salvador: JusPODIVM, 2005, p. 47.
- PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues del. Breves considerações sobre o amicus curiae na ADIN e sua legitimidade recursal. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre terceiros no processo civil (e assuntos afins). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 62.
- Segundo Fredie Didier Jr., a intervenção de quem não é parte no processo se justifica, em regra, por manter ele um vínculo com a relação jurídica discutida, o que conferiria ao processo civil brasileiro uma natureza/característica fechada. In: DIDIER JR., Fredie. Direito processual civil: tutela jurisdicional individual e coletiva. 5. ed. rev., ampl. e atualiz. Salvador: JusPODIVUM, 2005, p. 268.
- Como um dos maiores defensores dessa linha de pensamento, Edgard Silveira Bueno Filho assim se manifesta: "Embora a lei diga que não é possível a intervenção de terceiros nos processos de controle direto de constitucionalidade, e o regimento interno do STF haja proibido a assistência, o fato é que a intervenção do amicus curiae é uma forma qualificada de assistência". In: BUENO FILHO, Edgar Silveira. Amicus curiae:a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: CAJ — Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago., 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br.> Acesso em: 20 nov. de 2010.
- AGUIAR, op. cit., p. 52.
- São defensores dessa linha de pensamento, Milton Luiz Pereira (In: PEREIRA, Milton Luís. Amicus curiae: intervenção de terceiros. Revista do Centro de Estudos Jurídicos (CEJ). Brasília: n. 18, p. 83-86, jul./set., 2002.), Gustavo Binenbojm, Dirley da Cunha Júnior, Antônio do Passo Cabral, Carlos Del Prá, dentre outros.
- A propósito, ver o prefácio da obra de Mirella de Carvalho Aguiar, elaborado por Fredie Didier Jr. In: AGUIAR, op. cit.
- BARATA, Roberto. La legittimazione della’micus curiae dinanzi agli organi giudiziali della organizzazione mondiale del commercio. Apud: AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus curiae: coleção de temas de processo civil — estudos em homenagem a Eduardo Espínola. Salvador: JusPODIVM, 2005. p. 57.
- Ibid., p. 52.