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Brasil: discriminação étnica e guerra civil.

O Brasil perdeu o bonde da modernidade

Agenda 17/01/2011 às 16:01

Os pais (idealizadores) do Império, que foi fruto da declaração da nossa independência frente a Portugal (em 1822), jogaram fora uma oportunidade de ouro para mudar o rumo da história do Brasil (até então colonial) e reconciliar as várias etnias (seus vários grupos sociais) existentes na época. O Estado brasileiro, em lugar do progresso optou pelo retrocesso. Nasceu dividido, separado e discriminatório.

Nossa atual guerra civil (decretada contra determinados grupos étnicos) podia ter sido evitada. O Brasil poderia ser mais igualitário (tanto quanto os Estados Unidos, por exemplo). Os privilégios de classe já deveriam ter desaparecido.

E por que não desapareceram? Porque a mentalidade europeia colonizadora (autoritária, segregadora, desigual) foi mantida pelos construtores do Estado brasileiro imperial (em 1822). A autopreservação foi o fator preponderante. Autopreservação da etnia dominante (européia), em detrimento das etnias dominadas (africana, índia, mestiça). Preservação do statu quo. Visão discriminatória e obscurantista do mundo. Refutação da modernidade. Repulsa aos dominados (cf. Luís Mir, Guerra civil – Estado e trauma). Esse foi um erro crasso na fundação do Brasil. Erro persistente, aliás.

Não passaram os olhos nos velhos filósofos gregos. Já desde Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) os habitantes da polis eram definidos como criaturas humanas (não eram coisas). Aristóteles dividia as criaturas vivas em duas espécies: (a) animais e (b) seres humanos. Os últimos distinguem-se dos primeiros pela sua capacidade de pensar, de ordenar as percepções em categorias ou classes, em síntese, de pensar racionalmente.

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Os excluídos etnicos (os depossuídos) não foram considerados "seres humanos" com direitos e obrigações nem no tempo do Brasil-colônia, muito menos na era imperial. Em 1822 a maior população do Brasil não era considerada gente (ser humano). Um Estado que discrimina a maior parte da sua população também não é um Estado (moderno). O sistema político manteve a escravidão. Economia fundada na escravatura. Que significa exploração do ser humano, condenada duramente pela modernidade.

Max Weber (citado por Luís Mir, Guerra civil) dizia que o Estado (moderno) deveria ser estruturado pela racionalidade, generalidade e abstração (modelo racional de governo de acordo com normais gerais e abstratas). Nada disso caracterizou o governo imperial, que continuou confundindo o público com o privado (patrimonialismo), a autoridade com a propriedade (regime escravocrata), a política com a economia (de servidão), sem eliminar os feudalismos e os privilégios das castas dominantes.

Estado escravocrata não combina com Ilustração (que defendia a emancipação do ser humano, tal como foi defendida, por exemplo, por Kant, em 1784). Dessa forma fica decretada a não autodeterminação dos despossuídos. Não são seres com capacidade de autodeterminação. Ficam, portanto, fora da organização estatal (sem serem sujeitos de direitos). País sem autonomia individual (para alguns) e sem justiça social, posto que os direitos só valem para uma classe (a classe etnica dominante).

O Estado brasileiro nasceu, destarte, em relação a uma parte da sua população, pré-iluminista, pré-moderno (e, em certo sentido, continua assim até hoje, frente aos discriminados). Seus cidadãos não são iguais. A sociedade é hierarquizada. Há superiores e inferiores sociais (ou estruturais). Igualdade política e social foi um sonho anulado ab ovo (desde o princípio). Optou-se (desde a origem) pelo obscurantismo étnico. Pelas trevas da desigualdade (presentes até hoje).

Aos privilegiados as benesses do Estado (a "mãe gentil"). Para conter os seres inferiorizados decreta-se a guerra civil (contra eles). O ovo da serpente (violência congênita ao estado) foi lançado. Quase 200 anos depois do nascimento do Estado (autoritário) brasileiro ainda estamos colhendo frutos dessa divisão etnica irracional. O Brasil é o sexto país do mundo em taxa de homicídios (cerca de 25 mortes para cada 100 mil habitantes) e um dos mais desiguais do planeta. Quem plantou discórdias, conflitos, guerra, paralelamente a alguns projetos modernizadores incontestáveis (não se pode negar o avanço do nosso país em muitos aspectos), só pode mesmo colher (na atualidade) muita violência (de todo tipo).

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Brasil: discriminação étnica e guerra civil.: O Brasil perdeu o bonde da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2756, 17 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18284. Acesso em: 23 nov. 2024.

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