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Exclusividade no crédito consignado: um olhar sobre a decisão do Banco Central

Agenda 17/01/2011 às 14:09

No dia 14 de janeiro de 2011, a Diretoria do Banco Central decidiu vedar quaisquer atos que impeçam ou restrinjam o acesso a operações de créditos no Brasil, o que reflete e atinge, primordialmente, recente prática em gestão pública, consistente em acordar a exclusividade da exploração da folha de pagamento de servidores públicos com a concessão de crédito pessoal para este público.

Da leitura atenta da recente decisão do Banco Central publicizada por intermédio da Circular 3.522, apreende-se que trata-se de vedação ampla a qualquer ato que implique restrição ou empecilho ao acesso de clientes a operações de créditos ofertadas, em outras palavras, trata-se de defesa ampla do princípio constitucional da livre concorrência, cabendo destaque a consignação em folha de pagamento por tratar-se do fato que atualmente enseja a necessária reafirmação do princípio [01].

A decisão do Banco Central para além de impedir futuros atos que impliquem reservas de mercado no crédito consignado revive preceitos econômicos regulamentados na Constituição Federal – de um lado, a defesa da concorrência, e por outro, a regulamentação apropriada da atividade econômica – equilibrando a mão invisível do Estado de Smith sem prescindir de organização política que garanta instrumentos para a correção de falhas do mercado [02].

Meritória a decisão, mas não basta, pois incapaz de retroceder e anular os atos pretéritos já praticados, o que pode significar mais alguns meses ou anos de encolhimento da oferta de crédito no mercado, com inexoráveis impactos para a economia brasileira.

Contemporaneamente o problema tal qual se apresenta não pode mais ser entendido ou julgado em simplória dualidade onde de um lado está o liberalismo econômico e de outro a mão forte e regulamentadora do Estado, e não apenas por que ambos modelos já se mostraram frágeis se não forem híbridos, mas por que modernamente é impensável um modelo que exclua a Comunidade como um dos seus pilares de sustentação, conforme sistema proposto por Boaventura de Souza Santos, para quem o Mercado e o Estado, para se realizarem plenamente, apoiam-se no poder e na dominação, enquanto a Comunidade tem suas raízes na renúncia à submissão do outro pelo poder e põe sua fé na integração com o outro pela solidariedade. E se o paradigma do direito foi operacional para o Mercado e para o Estado, porque se associa indissoluvelmente à coerção, não pôde, nem poderá servir à Comunidade, que pede a consciência moral do dever para com o outro, que importa em alguma forma de renúncia e de respeito pela singularidade do outro [03]".

Se percebe-se um modelo unicamente entre o mercado e o estado, o tempo da escassez de crédito em circulação não importa, pois os prejuízos, neste microcosmos podem ser posteriormente reparados com medidas compensatórias aos prejudicados – mas ao perceber-se que há na relação um terceiro – a comunidade, como pode-se compensar a escassez de crédito em circulação? Qual a compensação possível para o retrocesso coletivo de uma sociedade? E qual a efetividade de tal sanção, ainda que fosse possível prevê-la?

Mas uma vez que a livre concorrência é princípio da ordem econômica no Estado brasileiro, a decisão do Banco Central, não inova, pelo contrário, apenas reafirma, em sua esfera de competência, princípio constitucional já consagrado desde 1988, uma vez que o princípio da livre concorrência é anterior a própria política de fomento do crédito consignado na economia brasileira, formulada com o intuito, bem sucedido, de diminuir os juros e universalizar o acesso ao crédito no Brasil.

É importante não esquecer do que se trata a consignação em folha de pagamento – é mera forma de pagamento de uma obrigação, assim como são formas de pagamento o débito em conta corrente ou mesmo o pagamento em cheque. Lembrando disso, a equivalência de um acordo entre um governo e um banco para a exclusividade na exploração do crédito consignado de uma localidade é absolutamente idêntica a um contrato entre um governo e um banco para fornecer exclusividade de débito em conta corrente ou ainda de uma prefeitura e um banco para que naquela cidade os servidores municipais só se utilizam de cheque de determinada instituição financeira.

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Este tipo de ato, cujo vício atinge preceito de ordem pública, de interesse de toda a sociedade, e portanto provoca, na origem, malefício, é determinado, no Direito, como nulo, pois seu vicio é insanável e não possibilita qualquer validação que lhe dê contornos jurídicos. Exemplo de ato nulo seria a admissão no serviço público sem concurso público. Já o ato anulável é, pois, o ato passível de correção. Exemplo seria o ato praticado com vício de competência, que ratificado pela autoridade competente, passa a ser válido.

Apenas por exercício de argumentação, o ato jurídico pelo qual se firma contrato dando exclusividade ao crédito consignado seria anulável (e não nulo) se se pensasse que o Poder Executivo, ao firmar contrato de exclusividade com apenas uma instituição financeira, em detrimento de tantas outras, não seria competente para fazê-lo pois sua competência estaria restrita a dizer qual modalidade de consignação em folha de pagamento é admissível naquela localidade e os critérios de credenciamento para as entidades, cabendo ao servidor público escolher, dentro daquele universo, com qual instituição quer contratar. Ou seja, olhando apenas para a relação laboral, que deve maior isonomia por tratar-se de administração pública, o estado-empregador estaria usurpando a competência do servidor – e este ato seria passível de convalidação, por exemplo, por um sindicato que representasse toda uma categoria – com toda a dificuldade de admitir-se que sindicato seria esse. Mas tratando-se de ato que fere a organização econômica não há qualquer autoridade ou representação que detenha competência, em uma sociedade democrática, para convalidar ato que contrarie princípio constitucional, portanto nulo de pleno direito.

Direito é bom senso. E na falta deste deve o intérprete se valer da hierarquia das normas, lembrando que um princípio é sempre superior a uma regra. E esta sempre superior a qualquer transação. Desta forma, quaisquer acordos que sejam feitos em detrimento de um princípio consagrado no Direito brasileiro, primordialmente um princípio constitucional, são eivadas, em sua origem de vicio, e uma vez que este revela-se insanável, são nulos de pleno direito.

Tratando-se de defesa da concorrência, lembramos que a análise das condutas anticoncorrenciais estão a cargo do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão ligado ao Ministério da Justiça, que, pela competência que lhe é atribuída pela Lei nº 8.884/94,  tem o papel de reprimir infrações à ordem econômica, tais como: cartéis, vendas casadas, preços predatórios, acordos de exclusividade, dentre outras.

No entanto, tratando-se de administrações públicas, o Direito Administrativo conta com uma particularidade, é que, diferentemente do Direito Civil, os atos, quer sejam nulos, quer sejam anuláveis, podem ser reconhecidos diretamente pela Administração (de ofício), conforme prenuncia a Súmula n.º 473 do STF.

Esta particularidade, conhecida como Princípio da Autotutela, não é mera liberalidade, mas sim é um poder-dever das administrações públicas, que se afina com a finalidade do Estado: a promoção do bem comum. Ao rever cláusula de exclusividade, percebendo-a nula, pois eivadas de vício, os entes federativos caminham para o processo de desjudicialização da gestão pública, ganhando celeridade e confiabilidade, ao passo que demonstra respeito aos servidores públicos.

Para além dos efeitos regionais, a declaração de nulidade destes contratos contribui para o pacto federativo e devolve à consignação em folha de pagamento seu papel mais nobre, mote que levou o Banco Central a publicar sua decisão: a disseminação do crédito e a promoção da inclusão financeira para todos os brasileiros.


Notas

  1. O art. 1º da Circular 3.522 tem a seguinte redação: Art. 1º - Fica vedada às instituições financeiras, na prestação de serviços e na contratação de operações, a celebração de convênios, contratos ou acordos que impeçam ou restrinjam o acesso de clientes a operações de crédito ofertadas por outras instituições,inclusive aquelas com consignação em folha de pagamento.
  2. Neste sentido, Fábio Konder COMPARATO afirma que a regulamentação da concorrência surgiu da necessidade de que a liberdade de acesso ao mercado, decorrente do liberalismo econômico, não se transformasse em uma licença em prejuízo do próprio mercado e da concorrência. COMPARATO, Fabio Konder. Concorrência Desleal. Revista dos Tribunais, n. 375, p. 30.
  3. Apud PASSOS, J.J. Calmon de. Direito de Solidariedade - Publicada no Juris Síntese nº 49 - SET/OUT de 2004.
Sobre a autora
Maria Gabriela Moya Gannuny El Bayeh

Advogada em São Paulo, mestranda em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL BAYEH, Maria Gabriela Moya Gannuny. Exclusividade no crédito consignado: um olhar sobre a decisão do Banco Central. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2756, 17 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18288. Acesso em: 22 dez. 2024.

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